Em todo caso, o importante é ter em mente que a noção de ficção científica que se tinha um século atrás não era exatamente a mesma de hoje em dia, especialmente quando levamos em consideração aquela que era publicadas neste tipo de revista. As divisões entre ela, a fantasia e o horror não eram assim tão nítidas quanto muitos consideram hoje, e você podia encontrar em uma história do Conan um culto de seguidores de Nyarlathotep, ou em uma pertencete aos Mitos de Cthulhu um viajante espacial. Some-se ainda os próprios avanços no conhecimento científico desde então – se hoje se sabe que as perspectivas de encontrar uma civilização humanoide perdida em marte não são exatamente muito animadoras, naquela época não era bem assim.
Isso faz muita diferença aqui, pois, ao invés de seguir o caminho fácil de tentar atualizar o personagem e torná-lo mais aceitável dentro dos paradigmas e conceitos do mundo atual, desde o início se vê que o objetivo é sim o de fazer uma homenagem à série original, até mesmo com uma pequena ponta do próprio Rice Burroughs no roteiro. Afinal, em um mundo onde as Tartarugas Ninja podem virar alienígenas, quanto custaria para fazer de John Carter um executivo falido de Wall Street, do seu método de viagem espacial algum experimento secreto da NASA, ou ter a Marte/Barssom dos romances originais substituída por Gliese 581c ou qualquer outro exoplaneta semelhante à Terra descoberto recentemente? Assim, antes de imaginá-lo como uma nova Tenente Ripley, pense nele como uma variação genérica do Conan (ou do He-Man – você também vai pensar nisso ao chegar em uma determinada cena, não se preocupe; e muito embora cronologicamente ele esteja mais para o seu avô), apenas substituindo os feiticeiros e demônios místicos por tecnologias alienígenas.
Essa tentativa de se manter fiel ao clima original de “espada de planeta” (ou sword and planet) é tanto o ponto fraco como o forte do filme. Ela realmente afasta um tanto a história do zeitgeist contemporâneo, digamos assim, por forçar um pouco demais a verossimilhança e a sua suspensão de descrença para funcionar direito; não surpreendentemente, o filme tem dado já um certo prejuízo. Por outro lado, no entanto, ele consegue ao mesmo tempo resgatar algo de nostalgia das aventuras despretensiosas de fantasia e ficção científica oitentistas, na linha de um Krull, O Último Guerreiro das Estrelas ou os filmes originais de Guerra nas Estrelas (quando a licença da série ainda permitia que o seu nome fosse traduzido para a língua de cada país), por exemplo.
Isso se reforça ainda pelo fato de que ele é sim um filme muito bem feito tecnicamente, com figurino e fotografia cuidadosos, atores bem escalados e que, se não impressionam especialmente, também não nos dão muita vergonha alheia de assistir a parte por uma ou duas cenas isoladas, além de um trilha sonora mais clássica, que não se perde nas batidas eletrônicas genéricas como em tantos outros filmes de ação recentes. As cenas de ação, aliás, são bem dirigidas e escritas, e, Issus seja louvada, não há nada das orgias de câmeras lentas Zack-Snyderianas. Some-se ainda um humor bem executado, com um ótimo timing cômico, e você tem um filme de Sessão da Tarde divertido e envolvente como há um bom tempo não era feito.
Claro, ele é sim um filme de clichês, daqueles de jornada do herói mesmo, onde você tem uma princesa em perigo fugindo de um casamento forçado, um herói forasteiro com questionamentos internos a resolver, um grande discurso para inflamar o povo selvagem à guerra contra o império do mal, até algum resquício de mensagem moralista sobre a guerra e o meio ambiente (mas que, felizmente, consegue fugir de se tornar maçante e pedagógica em excesso). Mas ele é também um bom filme de clichês em cima disso, e digo isso com total sinceridade – nada de um Fúria de Titãs aqui, onde só por associá-lo com a minha experiência pessoal de jogador de RPG eu consegui tirar alguma coisa de minimamente positivo. Ele me lembrou muito mais o primeiro Piratas do Caribe, pela sua fantasia leve, despretensiosa e com ênfase na aventura sobre todo o resto. Só faltou mesmo o carisma de um Capitão Jack Sparrow para deixá-lo realmente em um patamar superior, muito embora seja feito um esforço até um pouco comovente para promover o capitão do filme de forma semelhante.
Acho interessante também falar sobre o avanço no uso do 3D, que finalmente começa a fazer alguma diferença. Pelo menos nas cenas aéreas, envolvendo as batalhas entre naves-libélula, você realmente consegue discernir alguma diferença de profundidade, e ajuda a criar assim todo um sense of wonder diferenciado. Não é nada que alguém que pague pela entrada normal vá sentir falta, é claro, e nem de longe é comparável ao que é feito em um A Invenção de Hugo Cabret, onde ele realmente se mescla a narrativa e adiciona toda uma nova camada ao enredo (sem trocadilhos); mas pelo menos você não se sente enganado por pagar o preço do ingresso mais caro, diferente de outros tantos filmes aí que saíram com o formato.
Na soma final, John Carter: Entre Dois Mundos é sim um filme bem bacana, a parte por ser uma aventura de jornada do herói bem clichê e sem grandes surpresas. Não é lá o filme que vai mudar a sua vida ou a história do cinema, mas, em meio a tantosFúrias de Titãs, Imortais e Solomon Kanes que tem sido feitos recentemente, ele consegue ser até bem acima da média, na verdade.