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Conto – Rito de Passagem

Essa é uma Fan Fiction. Os eventos descritos ocorrem paralelos aos do episódio 04 da HQ LEDD  – “Mate todos eles” . CONTÉM SPOILERS.
“Hoje é o dia mais importante da sua vida! O dia que você finalmente se tornará um homem de verdade!” – dissera-lhe o pai. As palavras ecoavam em sua cabeça assim como o barulho de passos ritmados dos demais soldados do pelotão zumbiam em seus ouvidos.
Marchavam.
As amplas ruas da cidade de Warton, apropriadas para aquele tipo de cerimônia, tinham mesmo assim ficado estreitas, apinhadas de uma multidão de curiosos que se acotovelava e empurrava para vê-los. Sobre as sacadas dos prédios e edifícios e muros, o povo lançava seu olhar ávido.
Não era para vê-los, é claro, meros recrutas prestes a se tornarem apenas gotas de água no vasto oceano que era o exército de Yuden, um dos maiores do mundo. Os prisioneiros que escoltavam ao longo do desfile é que atraíam a maioria das vistas.
A pele e os cabelos de Stefan banhavam-se em suor por debaixo da armadura de bronze e o elmo abaulado. Tentava manter a lança de ferro o mais elegantemente possível, apoiada sobre o ombro, com a ponta arranhando o céu. Quem sabe sua família não o estivesse vendo, de algum lugar?
Ao lado, seus inseparáveis camaradas, os irmãos  Sammer e Helmmer, iam conversando, entusiasmados. Eles eram a razão dele estar ali. Sentia-se mal. Há apenas uma semana atrás pensara em deixar tudo e fugir com uma garota para um lugar mais pacato e liberal. O nome do reino Sambúrdia cruzara sua mente. Arrumar um emprego, guarda-costas talvez. Não seria difícil. Podia não ser muito bom com palavras, mas era grandalhão, mal encarado e sabia usar uma espada. Queria mesmo estar ali? Não gostava de regras, mas o sonho do velho era que ele seguisse os seus passos, sua carreira militar.
“Você não pode fazer isso Stefan!” – haviam falado os amigos – “ Imagine como seu pai ficaria decepcionado, isso iria matá-lo!”.
Agora, tanto faz, pensou. Descobriu que não era o único na vida da garota. Tinha pego a vagabunda com outro. Não disse nada, não fez nada. Não valia a pena, não importava mais. Devia ser um sinal dos deuses, tinha sido um cego. Agora que finalmente recuperara a visão era simplesmente melhor resignar-se e seguir o destino que havia sido traçado para ele.
Dentro de uma jaula, sendo carregada por uma carroça puxada por cavalos, encarou os encarcerados. Pareciam apenas dois garotos inofensivos, e não havia nada de especial neles. Totalmente comuns exceto pelo gordo, que não apresentava qualquer sinal de cabelo ou sobrancelhas.Seus pulsos estavam agrilhoados por pesadas algemas que, Stefan sabia, eram usadas para impedir que magos usassem seus feitiços e sortilégios.
O boato era que aqueles dois haviam conseguido escapar da Fortaleza Hardoff, a inescapável prisão de onde quase ninguém voltava. E e da qual, quem voltava, já não era o mesmo.
Bom, talvez ela não fosse tão inescapável assim…
–  … pegaram os dois no bosque, próximo a fronteira de Bielefeld. Certeza que são agentes dos Cavaleiros da Luz. Ouvi falar coisas horríveis daquele com cabelos negros. Coisas pesadas mesmo. Dizem que ousou peitar o próprio Barba Branca, quando tentaram capturá-lo novamente! Se não fosse pelo coronel… – dizia, Sammer.
– Se não fosse pelo incompetente do seu queridinho coronel Barba Branca conduzindo a segurança da fortaleza eles nem teriam saído de lá, em primeiro lugar. Nunca engoli terem aceitado um híbrido entre as fileiras do exército. Não se pode confiar em alguém que sequer é humano, em um monstro! Não concorda Stefan?  – esbravejava, Helmmer.
– Eu… Dane-se. Chegamos. – concluiu Stefan, como sempre, ríspido e lacônico.
Inclemente a Arena Ancestal, dedicada à Keenn, a divindade da guerra, elevava-se sobre eles, sobre a cidade e sobre tudo, lançando sua sombra. Logo acima do grande portão principal a insíginia do leopardo, o símbolo de Yuden, espreitava, como um predador prestes a devorar seus corpos e almas.
 

 
O barulho dentro das entranhas da construção era ensurdecedor.
Centenas de pessoas infestavam as arquibancadas. As danças e os espetáculos, bem como a aguardada distribuição de pão e outros víveres ao populacho faminto, já haviam sido realizados.
Aquela nação, apesar de todos seus protocolos e ritualísticas funcionava como um relógio e eles, sem ter que esperar um único minuto do lado de fora, apresentavam-se agora para dar sequência ao ato principal.
Alinharam-se em uma formação circular e esparsa, ao longo das paredes sólidas e o chão arenoso e poeirento do coliseu. Uma torre, com uma pequena sacada, enfeitada com o sempre onipresente leopardo, vigiava-os na extemidade oposta ao lugar de onde entraram. Era um púlpito, frequentado não por um sacerdote, e sim por um general. Embora ninguém duvidasse que nos últimos tempos, uma estranha religiosidade, circundasse a figura altiva do chefe militar chamado Klinsmann.
Ao centro da roda formada por soldados, veteranos de um lado, e recrutas verdes, como eles, de um outro, foi depositada a jaula com os prisioneiros A frente deles apeou de seu cavalo o Barba Branca em pessoa. A presença do coronel humanoíde, inconfundível devido aos traços felinos e animalescos de seus rosto, bem como o porte de seu andar preciso e firme, desceu um verdadeiro véu de silêncio sobre os espectadores.
Alguns o amavam, muitos o odiavam, mas ninguém o ignorava.
Ele se postou sob a torre, levando a mão ao peito em saudação. Lá em cima o general Klinsmann com seus cabelo loiros de corte disciplinado balançou seu braço vestido de metal, enquanto sorvia uma taça de vinho. Observava tudo de trás dos longos óculos que o ajudavam a enxergar de longe. A luz do sol, já alto, reluzia naquelas lentes, tornando indecifrável a expressão em seus olhos. Ao seu lado sentinelas encapuzados, velhos segurando cetros cerimoniais, o protegiam. Magos, na certa.
Ele pousou a taça, levantou-se e palavras surgiram, enfim.
– Coronel Barba Branca! Aproxime-se.
Stefan que procurava pela sua família nas arquibancadas, desistiu de fazê-lo, e passou a prestar atenção à cena. O cheiro forte vindo de dentro de sua armadura e a de seus companheiros o estava deixando enjoado.
– A fuga desses dois é culpa sua. Está ciente disso? – continuou, Klinsmann.
– Sim, general. – a voz do coronel.
– Eu não disse!? – tentou falar Helmmer, mas foi logo calado por uma cotovelada precisa de Sammer.
– Há porém, uma acusação ainda mais grave. Durante a recaptura, os soldados teriam sido obrigados a poupar a vida de uma criatura não humana. Um monstro.
Uma acusação séria. O cheiro, a poeira e aquela última palavra ojerizavam Stefan. Via o coronel felino, impassível e pensou “ele também é um monstro, deve tê-lo deixado fugir.  Ajudou seu semelhante.”
– Sim. Na nova lei de Yuden, outorgada pela soberana Shivara Sharpblade, não há mais punição prevista para esse tipo de ação. Fiz o que achei prudente e justo. Declaro-me inocente. – defendeu-se o Barba Branca.
Alguns cidadãos yudenianos odiavam agora a nova regente, ainda mais que o velho Rei- Imperador Thormy e  o povo do reino de Deheon. Não foi sábio citá-la. Por outro lado havia a lei, aquela entidade imaterial que governava cada uma daquelas vidas.
– Justo? Yuden cresceu pela guerra, não pela justiça! Vermes como você e o arremedo de rainha que nos foi empurrado tornaram nosso reino uma sombra de si mesmo! Uma nação de fracos. Isto terá fim hoje. Este dia resgatára a pureza de Yuden. Hasteiem as bandeiras! – gritou Klinsmann.
Eles, os recrutas, não entendiam ainda o que estava acontencendo, mas os veteranos, a “elite” como eram chamados, sorriam satisfeitos como se soubessem que aquilo estava planejado desde o príncipio. Alguns deles desfraldaram e ergueram longas hastes metálicas, e pedaços de tecido se renderam ao vento. Nas bandeiras um novo símbolo revelou-se na forma de uma cruz estilizada.
– Sob o olhar de Keenn, o deus da guerra! Em nome do suor de nossos antepassados! Nasce aqui um berço de fortes! A semente de uma nação sem máculas. Somos o Estado Purista Independente! E não há lugar para traidores ou aberrações.
O barulho se reacendeu, e a comoção era geral. Vários aplaudiam de pé, outros estavam boquiabertos. Sammer quase soltou um palavrão pelo seu espanto, mas Helmmer retribuiu sua cotovelada anterior, com um pisão, silenciando-o. Todos os soldados rejubilavam-se com a promessa de uma guerra, talvez iminente.
Guerra? Stefan, não sabia se aquilo era algo bom, e alegrava-se e deixava a euforia geral da massa invadí-lo, ou se era ruim, e praguejava por não ter abandonado Yuden antes. Como a segunda opção era infrutífera de qualquer maneira, abraçou a primeira.
– Coronel Barba Branca! Eu o condeno à morte no fosso de Keenn! – sentenciou Klinsmann.
– Ninguém encosta no cara de gato!
De quem era aquela voz de moleque?!
Os prisioneiros. Já não o eram mais. A porta da jaula jazia escancarada e eles se colocavam ousadamente à frente, em desafio aberto aos soldados.
– Se ele não devolver minha espada todo mundo aqui morre! – disse o garoto magricela de torso nu e cabelos negros, levantando suas mãos algemadas e apontando para o coronel Barba Branca.
Veteranos aproximaram-se, fechando o cerco sobre o garoto e troçando de sua ameaça ridícula, apontando sua lanças, mas o rapaz nem se mexeu. Stefan teve como que um arrepio. Uma sensação ruim.
– Vocês não me deixam escolha! Ripp. Mate todos eles!
Os grilhões contendo as ações dos criminosos desprenderam-se. O que aconteceu a seguir foi muito rápido
O homenzinho gordo e calvo, antes preso, ergueu seus braços ao céu e uma golfada de ar se levantou, fazendo voar a areia no chão da arena e cegando os guardas. Uma esfera incandescente acendeu-se em meio a suas mãos. Suas mãos então desceram, projetando-se em um arco para frente e arremessando a bola de fogo que logo se converteu num pequeno sol.
Os soldados na linha de frente morreram apenas com o impacto. A imensa explosão levantou uma parede compacta de ar que os atingiu em cheio, arremessando-os para trás, quebrando ossos, estourando os órgãos internos. Se algum deles se levantasse, tossiria o sangue que virou seu interior liquefeito.
Só que logo em seguida veio o fogo.
A imensa onda de calor desceu sobre a arena devorando a carroça que antes servira de prisão ao garotos, e desceu se esparramando consumindo todos em seu caminho. Os mais velhos foram os primeiros a sucumbir. Os mais novos tiveram tempo de se virar e correr, mas não de escapar.
– Merda!
Sammer, havia tropeçado. Helmmer virou-se para ajudá-lo. Stefan, também se deteve, e olhou para trás. Era tarde demais. A última coisa que viu foram seus amigos, uma tímida parede protetora entre ele e o inferno deslizando em sua direção.
“Eu nem queria estar aqui!”
O fogo carbonizou sem nenhuma dificuldade os dois a sua frente, e então escapou indomado da frágil represa humana e vazou para fora comendo seu rosto, e lambendo seus cabelos. As chamas avançaram engolfando todo o seu corpo, fazendo-se sentir até em seus ossos, dobrando o bronze que o protegia e fazendo com que aderisse a pele suada como uma chapa, fritando-a a com o processo de calefação. Abriu a boca para gritar, mas não conseguiu que nada saísse dela, apenas que o fogo o invadisse e o queimasse por dentro.
O que restou dele juntou-se a imensa pira fúnebre, deixada para trás.

Vivo.
Respirou com agonia o queimado que parecia vir de seus próprios pulmões.
Aquele quarto pequeno não podia ser um reino celestial. Abriu um olho com dificuldade, mas não conseguia abrir o  outro, parecia costurado. Ardência e dor extrema tomavam alguns lugares do seu corpo, especialmente o rosto, mas sentia muitas outas partes de si mortas, como se anestesiado. Longas faixas o cobriam por inteiro, ele mal tinha forças para se mexer. Estava deitado.
–  Acordou. Seu pai esteve aqui sabia? Ele ficou orgulhoso.
Uma voz masculina, porém suave, veio do seu flanco direito, e ele só conseguiu enxergar a pessoa quando ela se colocou a sua frente. Vestia o vermelho e amarelo dos uniformes militares yudenianos, mas com os requintes das vestimentas de um nobre. Trazia os cabelos brancos penteados para trás, num corte irregular. Apesar do tom grisalho seu rosto não parecia senil.
– Parabéns rapaz. Você verteu sangue pelo seu país! Eu o invejo.
“Verter sangue?”, foi mais como se todo ele tivesse sido evaporado, de repente. O estranho atirou uma pequena medalha de ferro sobre ele, com um sorriso no canto da boca.
– Sammer! Helmmer! M-meus amigos o que…
– Eles estão mortos garoto, sinto muito. Daqueles atingidos diretamente pela explosão, você foi o único sobrevivente.
Stefan, tentou se levantar da cama que estava. Cambaleou. Se pôs andar pelo cômodo arejado e de paredes brancas.
– O que aconteceu?
– Os criminosos fugiram. Ainda não recebemos as notícias oficiais, mas parece que acusam o ex- coronel Barba Branca de mais esse ato de traição. Ele foi condenado ao Fosso de Keenn, na arena.
O jovem soldado ainda tinha dificuldade em entender se tudo aquilo estava acontecendo de verdade. Será que era tudo um sonho? Não, não havia dor nos sonhos.
– Você quase foi empilhado junto com os outros cadáveres. O descobrimos apenas depois que a arena foi esvaziada, um sacerdote ouviu seus berros. Se a sua magia não tivesse vindo a tempo… sem dúvida foi obra dos deuses. Eles o pouparam. É o seu destino. Tem planos para você!
Aquele garoto obeso e sem pelos, havia matado seus amigos, o havia reduzido a aquilo. Precisava encontrá-lo. Agarrou o desconhecido pela gola da roupa e o ergueu do chão, tamanha força empregou.
– Quem é você?!
O homem apenas sorriu, sem medo.
– Eu? O poeta laureado dessa humilde cidade, ministro da glória do recém fundado estado independente. Joseph Johst, ouvi dizer ser meu nome. Ao seu dispor. Prazer!
Largou-o imediatamente. Já havia ouvido falar dos “Ministros da glória” eram poetas e bardos a serviço do governo, registravam as vitórias e derrotas do exército e das nações, para não deixar que fossem esquecidas. Enfeitavam a realidade.
Ele estava na presença de uma autoridade.
– Preciso encontrar quem fez isso comigo, eu preciso me vingar. Eu…
– Deixe de asneiras, rapaz! – era Johst. Pela primeira vez naquela conversa, sua voz alterava-se.
– Não é hora para questões pessoais! A nação está prestes a dar um salto em direção ao futuro! Enfrentaremos tempos turbulentos até lá. Alguns dizem de rumores da esperada guerra com Deheon. Outros dizem que os deheoni tem medo. Tenho certeza que o sábio Klinsmann previu tudo isso, mas agora devemos nos preparar. Pare de ser egoísta! Pense nos outros! Pense em sua família! Você meu rapaz, é agora um símbolo! As pessoas o admiram. Não é todo dia que alguém como eles volta das cinzas. Você não é mais você mesmo. Não! Agora você representa todas as vítimas, de tudo o que está errado nessa nação! Os abusos da regente, as raças infectas e inferiores que andam em nossas ruas, a crença em deuses fracos. A tua milagrosa sobrevivência é a certeza que as pessoas tem que vamos vencer e nos livrar de tudo isso!
Stefan ouvia, mas não prestava atenção ao discurso pomposo. Sentou-se  na cama e notou um pequeno espelho apoiado sobre um criado-mudo, e o apanhou.
– Agora só falta um nome é claro! Algo para inspirar as pessoas, um título. Afinal, ouvi que você será sagrado cavaleiro. Pensei em algo relacionado a “fênix”, por motivos óbvios. No entanto,  é um animal dedicado a um deus fraco. Ummmm, deixe-me pensar. Como se chama mesmo garoto?
– S-Stefan. Me chamo Stefan.
– Não, não mais. Agora você é “Stefan, A Fênix de Keenn”. Ummmm, gostou?! Acho apropriado, digno. Genial, genial! – disse Johst enquanto se afastava em direção a porta do quarto, abrindo-a – Mas chega, por hoje é só. Vou deixar você descansar.
O rapaz mirou seu rosto, coberto por faixas, no espelho. Descobriu a boca, agora apenas gengivas e dentes. Ficou mirando sua deformidade. Um pensamento voltou a sua mente e tomou forma em sua voz, asmática.
– Eu sou um monstro.
Joseph Johst, o ministro da glória, riu, divertindo-se muito com o comentário.
– Monstro?! Você é um herói!
E a porta se fechou, deixando Stefan contemplando sua própria expressão, um sorriso macabro que permaneceria imutável em sua face, por toda a vida.

Uso da ilustração autorizada pelos criadores, AQUI.
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