O Kobold Sarnento é facilmente uma das piores espeluncas de Malpetrim. Comida ruim, atendimento pior, acomodações ainda mais. Basta entrar na estalagem e olhar em volta, notando o pó acumulado nos cantos, a cara de desgosto do estalajadeiro, a expressão de tédio da garçonete velha, gorda e desdentada. Mesmo assim, entrei e me aproximei do balcão. Pedi por um quarto, tomando o cuidado de deixar à vista o anel de prata que trazia no dedo anular da mão esquerda. O estalajadeiro me observou com o canto do olho e me levou discretamente até um dos quartos, onde uma marca na parede indicava o local de uma porta oculta.
A sala do outro lado era o completo oposto do resto da estalagem: luxuosa, com bancos estofados, mesas de vidro e marfim, garçonetes jovens e agradáveis servindo petiscos finos e drinques exóticos. Três outros indivíduos já a ocupavam quando eu entrei – um anão caolho, a barba cinzenta cuidadosamente desgrenhada, um meio-elfo de vestes escuras, que tirava o pó de um arco longo enquanto olhava desconfiado para a entrada do aposento, e um humano loiro vestindo um manto cinzento e com um cajado coberto de runas preso nas costas, que dividia um dos bancos com o meio-elfo.
– Finalmente chegou. – disse o último, projetando o tronco para a frente em direção à pequena mesa de marfim no centro do aposento. – Vamos falar de negócios.
Concordei e me aproximei, acomodando meu corpo diminuto de halfling em um pequeno banco de madeira acolchoado. Éramos todos membros do Clube de Caça, a maior organização de caçadores de recompensas do Reinado. Sua origem remonta a séculos no passado, e hoje já se perde entre lendas e mitos: em Petrynia, dizem que foi fundado pelo próprio Cyrandur Wallas; em Yuden, buscam sua origem em heróis militares da alta cúpula; em Bielefeld, dizem que os fundadores eram membros dissidentes da Ordem da Luz. Entre os que se preocupam com esse tipo de bobagem, a história mais aceita é de que o Clube começou como um clube de caça comum, uma organização de nobres dos reinos exilados na Grande Batalha que se reuniam para praticar caça esportiva nas novas terras. Com o tempo a atividade do clube evoluiu para a caça de animais mais perigosos, como mantícoras e dragões, suas expedições tornando-se longas jornadas de aventura; e em algum momento do passado decidiram que a presa mais perigosa e desafiadora que poderiam caçar eram outros seres humanóides como eles. Estabeleceram então o primeiro estatuto do Clube de Caçadores do Reinado, ou apenas Clube de Caça, como ficou conhecido, que se empenha na caça e captura de criminosos procurados pelas milícias dos reinos.
O estatuto mudou pouco desde então. As regras fundamentais continuaram as mesmas, mesmo após os séculos de atividade: novos membros só podem ser aceitos por indicação, sujeita ainda a aprovação pelo conselho administrativo, e todos devem contribuir com uma parcela das recompensas ganhas para manter a vasta rede de apoio espalhada pelas principais cidades do Reinado, em esconderijos secretos e sedes discretas perdidas entre os distritos comerciais dos grandes centros urbanos. Dentre as mudanças que foram feitas, a mais importante e significativa foi o sistema de classificação dos caçadores, um ranking de desempenho mantido pela organização. O critério para ganho de pontos são as recompensas: basta levar até o responsável por uma das sedes uma prova da captura de um criminoso, geralmente um comprovante de recebimento da recompensa, para ter pontos proporcionais aos valores oferecidos publicamente por ele contabilizado em seu nome; o caçador então recebe um documento que comprova a quantidade de pontos que possui, enquanto um outro documento é enviado para a sede central em Valkaria. No primeiro dia de cada mês um ranking atualizado é publicado na capital e enviado para as sedes no resto do continente. Em algumas cidades mais distantes, no entanto, pode demorar até dois meses até que a nova classificação seja conhecida. Todos querem chegar ao topo: para os membros do Clube, o prestígio ganho com uma boa colocação facilmente vale o dinheiro pago à insttuição.
No último ranking publicado em Valkaria, que ainda não havia chegado em Malpetrim mas da qual eu já havia tido informações, o primeiro lugar, com quase seiscentos mil pontos acumulados, pertencia a Martin Barba Cinza, o anão caolho que se sentava na mesa conosco. Julian Fardingor, o humano, era o quarto lugar, com cerca de trezentos e cinqüenta mil pontos; o meio-elfo Tzim Coração Gelado tinha a décima-segunda colocação, com duzentos mil pontos; e eu, com meus tímidos noventa mil pontos, ocupava a décima-nona posição. Estávamos ali reunidos para discutir os termos de uma sociedade temporária, graças a uma informação que eu havia conseguido: o paradeiro de León Galtran, o criminoso mais procurado de Arton, com cerca de um milhão de Tibares oferecidos como recompensa. Mas para nós, é claro, o que realmente importava eram as centenas de milhares de pontos que receberíamos na classificação, mesmo que fossem divididos por quatro.
– Sua fonte é segura? – era Tzim quem perguntava, em um tom seco e desconfiado.
– Tão segura quanto jamais recebi.
– Não sei. Isso me cheira a armadilha. – Martin parecia exalar a cada palavra o tipo de faro que o levara à primeira colocação do ranking.
Todos se olharam desconfiados. Nos últimos meses, diversos relatos tinham se espalhado a respeito de membros do Clube que desapareceram, sendo encontrados mortos dias depois. Muitas hipóteses foram levantadas para explicar o fato: uns diziam que havia uma outra organização, formada por inimigos do Clube, em geral criminosos que fugiam da prisão ou membros que foram expulsos por uma razão ou outra, e agora se dedicavam a caçar os antigos caçadores; os mais criativos ainda sugeriam a existência de um clube secreto dentro do Clube, uma espécie Círculo Interno de membros que se cansaram de caçar criminosos e decidiram ir atrás de presas ainda mais desafiadoras – os próprios colegas de Clube. Possuíam um rankingpróprio, segundo se dizia, com classificação somada de acordo com a pontuação dos membros que matavam. Caçavam até mesmo uns aos outros: os únicos locais onde a caça seria proibida seriam seus locais de encontro, ainda mais secretos e escondidos que os do Clube principal.
– Acho que podemos arriscar. – respondi outra vez. – Mas é bom não baixarmos a guarda.
Todos concordaram. Aproveitamos a noite para fazer os últimos preparativos, repondo mantimentos e descansando. No dia seguinte partimos para o Bosque de Alliahanna, onde se localizava o esconderijo de Galtran, uma pequena cabana de madeira a poucos metros da estrada, com a entrada escondida em meio à vegetação.
Nos separamos e cercamos o perímetro do local, nos aproximando com cuidado. Caminhávamos em silêncio em meio às folhagens, sempre atentos a possíveis armadilhas. Após alguns minutos, cheguei até uma entrada lateral; abri a porta com cuidado e entrei. Do lado de dentro, meus colegas de equipe já me esparavam, mas, além deles, não havia ninguém.
– Terá fugido durante a noite? Talvez alguém o tenha avisado. – Julian questionou.
– Talvez nem estivesse aqui em primeiro lugar. – Martin parecia desconfiado, como se a qualquer momento alguma surpresa pudesse se revelar.
– Há marcas de uso recente no perímetro. – agora era Tzim quem falava, com a confiança de um perito.
– Acho que sei o que pode ter acontecido. – eu disse, me aproximando devagar do grupo. Todos se viraram para me ouvir; após poucos passos, no entanto, ouviu-se um clique vindo do ponto exato no chão onde eu havia pisado: uma rede caiu do teto, prendendo os outros três. Com uma cambalhota rápida, consegui evitar a armadilha.
A rede era bastante pesada, tornando difícil retirá-la apenas com força. As armas cortantes de Martin e Tzim estavam guardadas, e não havia como sacá-las presos daquela forma. Julian era o único que podia fazer alguma coisa além de mim: começou a recitar palavras mágicas, fazendo os olhos brilharem com um ardor flamejante. Antes que terminasse o encantamento, acertei seu pescoço com uma seta de besta, interrompendo-o.
Martin e Tzim arregalaram os olhos e me fitaram, sérios. Eu sorria maliciosamente enquanto disparava setas de besta também contra suas cabeças, derrubando-os inertes no chão. Então me aproximei para recolher meus prêmios – e não falo dos itens e dinheiro que possuíam, é claro, mas principalmente do milhão de pontos mais fácil que já conquistei no ranking do Círculo Interno.