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Conto – Vocês

Conto - Vocês 1

Golem”.

É como vocês, humanos, chamavam aqueles como eu.  O significado da palavra se perdeu no decorrer da história, mas dizem que ela significava mal-formado. Tosco. Uma coisa incompleta. Nunca irei saber se essa era a verdade, se esse era o significado correto.

No entanto sempre acreditei que ele fosse o mais adequado.

Um golem. Uma máquina  desenhada pelo engenho do homem, forjada por suas mãos  e animada pelo sopro de vida vindo dos deuses e seus sacerdotes. Um sub-produto. A criação da criação.

É claro, eu não fui o único. Houve muitos como eu. Nunca estive sozinho.

Fomos construídos por vocês em diversos tamanhos e formatos. Com os mais diferentes materiais. Osso. Argila. Madeira. Bronze.  E os modelos que vieram mais tarde,  iguais a mim:  gigantescas estátuas de ferro, dotadas  de movimento e vontade própria.

Nossa função? No começo era apenas uma.

Matar.

Armas construídas para esmagar soldados inimigos e destruir outras armas. Ocupamos um papel importante nos conflitos entre as  famílias e os reinos. Entre os nobres. Pois certamente o processo de nossa construção era algo caro. Algo que apenas aqueles que tinham terras e recursos suficientes para se dedicar à guerra, e as recompensas que vinham dela, poderiam pagar.

Reis chegavam mesmo a competir entre si para ver qual construiria o maior golem. O melhor. O mais letal.

Se faziam isso apenas como uma brincadeira entre eles, ou por um motivo mais prático realmente não sei dizer. Mas tudo mudou depois do fim da revolução. Pois não havia mais famílias, nem homens ricos, nem guerra.

Apenas  a República.

Alguns de nós, aqueles em melhores condições, continuaram a ser utilizados para lidar com criminosos, capturar fugitivos e massacrar a resistência ao novo regime político. Mas a maioria, aqueles que haviam se danificado muito, ou que eram velhos e caros demais para serem concertados da maneira certa, foram parar no campo.

O  Grande Filósofo, o mais respeitado sábio e ancião de todos, um dos mestres conselheiros, dizia que era um desperdício e uma afronta a humanidade que vidas fossem gastas na lavoura e no sol, e que nós, máquinas, deveríamos tomar o seu lugar, trabalhando e facilitando a vida do camponês e do homem comum.

Até o dia que ocupássemos todo o trabalho pesado e todos poderiam viver como os antigos nobres.  E ao invés da guerra os homens e mulheres passariam  a empregar seu tempo se dedicando a arte, ao jogo, ao amor e à poesia.

Todos julgaram essas palavras muito belas.

E assim fomos usados: os modelos EM3 para arar o solo,  os RD2Ms para cortar a lenha, os vulgares e comuns Z1 para construir estradas e cavar canais. Servíamos para tudo.  Até mesmo para cozinhar. Lembro certa vez de ter visto  um modelo XLG–20, o próprio “inferno flamejante”,  a temível máquina assassina conhecida por seu lança-chamas, utilizando aquela mesma arma que outrora causou pesadelos em seus inimigos para aquecer sopa num caldeirão.

Mas é claro que nunca acabamos com todo o trabalho. Sempre havia mais e mais e a cada década que se passava o nosso número diminuía.

Muitos anos se passaram mas novos golens nunca foram produzidos. Diziam que era uma afronta aos deuses, um insulto e não uma homenagem ao Deus-Criador que simples humanos gerassem quase-vidas. Outros diziam que era um desperdício do dinheiro público.

No fundo vocês  simplesmente nos temiam, não é? Nascemos armas e mesmo que pendurassem selas e arreios ou nos usassem para carregar sacos, caixas e baldes nós nunca deixamos de ser armas aos olhos de vocês. Na memória dos mais velhos. Nas histórias que os mais jovens ouviam.

E assim a cada década ficamos. Sendo devorados pelo tempo, pela ferrugem e pelo descuido.

Até que um dia,  sem mais nem menos, parávamos de funcionar.

Sempre soube que seria assim. O meu fim. Vocês pelo menos sempre tiveram algo pra acreditar, algo que estaria esperando por vocês depois. Bom ou ruim. Céu, inferno ou purgatório. Reencarnação.

Mas e eu que nem ao menos experimentei a sensação de possuir carne, possuiria também uma alma? Não acredito nisso, sou apenas inteligência sem essência.  Vida reciclada. Metal frio sem espírito. Um peito sem coração e apenas engrenagens.

Quando a hora chegar, será o fim.

Nada mais além disso.

“É claro, eu não fui o único. Houve muitos como eu. Nunca estive sozinho.”

Acho que essa palavras que proferi são o que vocês chamam de mentira. Lembram-se quando eu disse que reis competiam para criar a máquina perfeita de guerra? O maior golem? O melhor? O mais letal?

Eu acreditava ser um desses experimentos.

Não sei explicar o porquê.  Sempre soube. Mesmo nunca tendo estado ativo no tempo das grandes batalhas ou da revolução. Eu despertei, eu existi, após tudo isso.

Em um vilarejo pequeno, igual a muitos outros que conheci em minhas viagens. Eu era a coisa que servia de guardião. Embora não houvesse muito para se vigiar. Um lugar pacato.

Eu era a única ameaça.

Percebia pela maneira como olhavam para cima, como apressavam o passo, enquanto eu permanecia imóvel fazendo sombra à torre da igreja local. Nunca me davam nenhuma outra função. E tudo o que eu tinha que fazer era observar.

Observar enquanto crianças brincavam aos meu pés, e quando eram repreendidas severamente por isso depois, por seus pais preocupados. Observar enquanto homens saiam para cultivar suas terras ou em carroças para vender seus produtos em cidades vizinhas. Observar enquanto as pessoas adentravam o templo e oravam e cantavam todas juntas de mãos dadas. Observar enquanto nos dias de chuva todos permaneciam em suas casas com suas famílias e eu com minha ferrugem. Observar enquanto nos dias de sol jovens casais passeavam e se perdiam em meio ao bosques.

Vocês nunca pareciam felizes, mas como eu os odiava. Como eu os amava.

Invejava.

Então um dia a sensação veio forte,  parecida com nada que eu já havia sentido. Até aquele ponto eu ainda tinha mesmo dúvidas se de fato eu  era capaz de sentir alguma coisa. Mas aquilo cancelou qualquer dúvida.

Uma vontade, um imperativo irrefreável de… explodir.

Não sabia explicar. Algo como eu imaginava ser a dor física, comprimindo algo dentro de mim. Uma ordem que havia nascido comigo. Explodir.

Podia perceber as engrenagens se ativando. Se movendo. Algo dentro da couraça de metal crescendo, cada vez  mais e mais.

Eu via, pressentia, as chamas. Faíscas. Labaredas. Visões de madeira e carne queimada. Gritos de agonia sufocados por fumaça e fuligem em meio a uma onda quente de puro calor. Uma coisa que jamais poderia simplesmente aquecer sopa como aquele velho XLG-20. Mas que transformaria todo o mundo em um imenso caldeirão.

E de alguma maneira eu iria causar aquilo. Eu desejava aquilo.

Entendia que toda minha existência girava em torno daquele único propósito, colocado ali por vocês. Aquele único instante de glória imediata.

Por isso fugi.

Um dia os aldeões caminhando  debaixo do  sol de uma manhã ensolarada devem ter percebido que a única sombra vinda da torre da Igreja era a sombra da pópria torre.

Caminhava. As vezes corria.  E os meu passos ecoaram por terras ermas e vazias durante anos. Montanhas e desertos.

No começo tudo que eu pensava era em me afastar, para que ninguém pudesse se ferir, quando o que quer que fosse que eu continha, fosse finalmente ativado.

Mas então veio outra sensação nova, que por tudo que havia ouvido falar,  se parecia terrivelmente com aquilo que chamavam de “medo”. Só que era muito pior do que poderia ter imaginado. Ainda não me acostumara com a coisa dentro de mim, era impossível se acostumar a aquilo. E a cada dia ela parecia aumentar, não sabia quanto tempo ainda demoraria para que fosse acionada. Sofria sempre, a cada instante.

De alguma forma eu não queria parar de funcionar, não ainda, não ali. Naqueles lugares remotos.  Por isso resolvi voltar. Não para o meu vilarejo. Mas para vocês.

Resolvi que procuraria pelo meus criadores, talvez eles pudessem retirar aquilo . Talvez eu pudesse  continuar a existir.

Não era uma grande perspectiva. Mas era a única que eu tinha.

Por certo tempo pensei que o vilarejo fosse o único lugar habitado que existia do mundo. Um lugar único. Eu estava enganado.

Em meio as minhas viagens encontrei uma sucessão infinita de outros vilarejos, aldeias, recantos e lugarejos sem significância, por estradas velhas e cantos escuros do mundo. As pessoas, suas cores, e os sons que saiam de suas gargantas mudavam conforme a distância que eu percorria. Mas no fim parecia que eu estava vendo apenas uma pequena variação da mesma coisa.

Em todos os lugares as mesmas rotinas, as mesmas necessidades, os mesmos males.

Acho que isso não mudou nem mesmo quando eu encontrei o que vocês chamavam de “cidades”. Vilarejos muito grandes e sujos onde muitas e muitas pessoas se comprimiam em meio construções de pedra, ferro e madeira. E onde haviam altas torres e muros.

Do alto daquelas torres minha aproximação podia ser percebida de longe. Quando eu finalmente chegava aos muros havia uma porção de guardas e vigias me interrogando, coçando a cabeça – Não esperávamos nenhum carregamento para essa tarde. Aliás aonde estão as mercadorias que está transportando? Aonde está o seu dono?

Quando dizia que eu não tinha um dono isso causava olhares e comentários intrigados.  Eu dizia estar em busca do meu criador, da minha origem, do lugar onde fora fabricado. Quase sempre isso levava a rebuliços e pessoas curiosas.

– Pensando bem nunca vi esse modelo. É muito maior que um RDM2M. Além disso é feito de ferro. Será que foi fabricado nas antigas provincias do leste? – dizia um.

– Não, não me parece com um modelo das fábricas do leste. Talvez seja um modelo de guerra do antigo reino de Prokoiev – dizia outro.

A busca não era muito frutífera, mas sempre me dava um novo horizonte para alcançar. Novos lugares para visitar. Uma nova pista para seguir.

Felizmente vocês jamais pediam para que ficasse, ou que fosse aproveitado para algum serviço. Era “grande demais”, diziam. “Essa coisa é um perigo ambulante. Um monstro.” “Pode acabar pisando em alguma criança. Um golem não registrado e sem dono? Isso é irregular demais. Não quero estar com uma coisa dessa se um dos fiscais do governo aparecer por essa bandas”.

As vezes um capitão da guarda mais ousado sugeria aos brados que eu deveria ser “desativado”. Mas então tudo sempre se resumia a mesma pergunta feita com pernas trêmulas e voz gaguejante.

– Voluntários? Voluntários?!

Espadas e lanças em mão, os soldados olhavam para mim. Olhavam para cima. E desistiam de dar qualquer passo à frente.

Sem dizer mais nada eu seguia o meu caminho.

Projeto Xeque-Mate.  Demorei anos para descobrir sobre ele. Sobre seu significado. Sobre mim.

Aparentemente nem todos os magos e sacerdotes levavam seu juramento de fidelidade aos monarcas como uma coisa séria. Na verdade acredito que não davam a mínima nem para os reis, nem para o povo. Viviam em seus mundos particulares.

Mas não todos se limitaram a isso. Um belo dia um grupo dessas pessoas ilustres, jovens dominados pelo tédio, chegou a conclusão que era seu dever tomar conta do mundo no lugar daquelas outras  pessoas incapazes de compreender a verdade, a arte, a beleza.

Fingindo trabalhar a favor de seus respectivos governos eles conjecturaram uma arma que poderia acabar com a guerra. Todas as guerras. Uma arma  não só capaz de matar um monarca e toda sua família. Não só capaz de pulverizar os muros de um castelo ou uma fortaleza. Mas capaz de erradicar um reino inteiro.

Eu era a tal arma.

Mas o o que aconteceu com eles? Chegaram atrasados.

A revolução chegou na frente. Um dia alguém simplesmente bateu a mão com um tapa de leve  em seus ombros cansados e disse – “Muito bem. Serviram bem a causa. Agora deixem tudo isso para lá e voltem para as suas bibliotecas.”

Aqueles que recusaram esse gentil convite para se retirar foram mortos. Usados como exemplo.

Foi um bom exemplo.  Eles voltaram para suas bibliotecas, seus laboratórios, seus templos e o seu tédio. E nunca mais saíram de lá.

Esses  jovens, os meus criadores, aqueles que agora eu perseguia com tanto afinco, haviam se tornado pessoas velhas. Muitas haviam esquecido o passado. Outras prontamente fingiam tê-lo esquecido.

Sondei inúmeras aldeias, monastérios e lugares ainda mais inacessíveis. Não foram poucas as vezes que cheguei  ao meu destino para saber que um dos antigos integrantes do projeto havia morrido há apenas alguns dias. Vítima de alguma doença que irremediavelmente havia tomado seu corpo, que já existira por tempo demais.

Um atraso irremediável.

Mesmo assim não desisti. Mesmo com a angústia da morte que habitava minhas engrenagens, um morte que crescia sempre mais e ameaçava cobrir todo o mundo com sua sombra.

Durante todo aquele tempo de busca, juntei  as informações que tenho hoje. Apenas a pergunta pela qual eu realmente ansiava por uma resposta não fora respondida. Como continuar existindo? Como detenho essa coisa dentro de mim?

Encontrei então um dia numa caverna, a pista que poderia finalmente me levar à uma resposta.  Um velho sacerdote. Um eremita vivendo isolado do resto do mundo.

– Lembro de você. Sim, eu o construí. Mas não, eu não sei como parar isso. Procure por ela. O tempo… O tempo não passa para ela! Sim, ela saberá como. Procure pela feiticeira na Torre de Marfim – disse ele.

O eremita morreu logo depois de proferir essas palavras. Só que dessa vez eu não me atrasara.

Dessa vez meu corpo enferrujado tinha um novo destino para perseguir. Talvez, um destino final.

Então eu finalmente vi.

Algo que era impressionante, mesmo após todos esses anos de viagem. Vocês não compreenderiam a visão se eu a descrevesse. Precisariam estar lá, e ver com seus próprios olhos.

A Torre de Marfim. Um colosso branco se elevando  incólume e solitário em meio as casas da pequena cidade e a modesta muralha que a protegia. O imenso edíficio se projetava como uma enorme lança ferindo os céus, e mesmo eu me sentia diminuído diante de sua majestade e  esplendor.

As casas que o cercavam, as nuvens cinzas que saiam de suas chaminés sempre acesas, a pequena praça barulhenta do mercado e todos aqueles bosques, rios e descampados ao derredor dos muros, tudo aquilo não era diferente do vilarejo que eu deixara.

Fui recebido por uma comitiva de guardas armados e camponeses curiosos. Montada em um cavalo e vindo à frente de todos estava ela.

A feiticeira.

Embora cavalgasse sua montaria com o ar de uma amazona inponente, não aparentava ser mais do que uma criança. Suas roupas de um exótico azul marinho, esvoaçavam vaporosas ao vento, assim como o gorro de várias pontas que trazia em sua cabeça. Mas apesar das vestimentas de ar bufo, ela era de uma beleza cortante. Cabelos mais escuros do que a noite, olhos pérfidos de lince de um  tom claro e indefinido que refletia o brilho ofuscante do dia.

No rosto trazia um sorriso permanente, para mim, pobre máquina, completamente indecifrável.

Erguendo sua cabeça para cima, pude notar que ela me olhava, com divertido interesse.

– Tive notícias de sua aproximação. Tenho muitos mensageiros. Muitos insóltitos e fiéis mensageiros – disse ela. – Ainda assim devo dizer que estou admirada. Quando o vi pela primeira vez você não passava de números e desenhos numa folha de papel. E aqui estás: o arauto da destruição, o matador de reis. O que deseja de mim?

E por um momento, apenas um momento, foi como se eu deixasse se sentir completamente a ameaça oculta que se revolvia em meu peito de ferro, e eu esqueçesse do meu propósito por estar ali.

Demorou. Pareceu uma eternidade.

Mas finalmente minha voz rangida e férrea, conseguiu se projetar para fora.

Eu expliquei tudo. Como um paciente explica à um curandeiro humano os males de que padece. Falei de minhas viagens e de minha dor. Da sombra, das chamas e da morte.  As palavras saíram tortas e retorcidas.

Uma fraca e amarga ressonância que ecoou pelo ar

– Não se preocupe meu gigante. Venha! Venha para dentro de nosso muros, e divirta-se! – ela disse num tom quase afetuoso, para algo que era quase-vivo.

E então sua mão diminuta se pousou sobre minha perna esquerda como um pássaro frágil que se pousa sobre os galhos de um carvalho. E a sua voz se ouviu mais uma vez, enfática.

– Não se preocupe! Eu encontrarei uma solução!

Os dias na cidadela transcorriam lentos e ensolarados. Não sei se por ordens diretas dela, da feiticeira, mas naquele lugar vocês todos me tratavam bem e ninguém parecia me temer.

As pessoas acenavam quando passavam por mim, crianças jogavam bola e brincavam ao meus pés. Em algumas noites eram organizadas festas para me distrair onde lanternas de papel eram amarradas em balões e lançadas ao céu, onde pareciam uma revoada de estrelas.

Aquele ímpeto de explodir que me trouxera ali ainda se fazia vivo alguma vezes, mas parecia uma fera adomesticada. Quase não me incomodava mais.

Todos os dias ao entardecer a Feiticeira saía por uma das grandes sacadas que se projetavam do alto da torre e vinha se encontrar pessoalmente comigo. Mesmo que ela fosse uma criatura milenar, muito mais velha do que eu, mais antiga talvez do que os antigos reinos, ela parecia nutrir um interesse sincero em nossas conversas.

Afinal estivera longe do mundo por muito tempo e queria saber como as coisas estavam, o que eu havia visto, os lugares que eu havia visitado.

– Meu interesse é meramente científico – dizia muitas vezes sorrindo.

Mas pensei compreender aquela sua curiosidade. No fundo acredito que ela também se sentisse solitária em meio à vocês. Era um ser único, além do ordinário. Vivendo fora do tempo. E a coisa mais parecida com ela naquele mundo era eu, frio e quase-vivo artefato metálico.

Durante aqueles dias comitivas de serviçais analisavam cada pormenor de minhas engrenagens e hordas de ferreiros raspavam minha ferrugem e faziam os concertos necessários.

No entanto o mal que eu sentia ainda estava lá. Oculto.

Quando a noite chegava  e ela se despedia, do alto de sua torre, podia me olhar sem ter que inclinar a cabeça para cima como todos os demais faziam. De igual para igual.

Ao fim de cada noite ela dizia que eu não me preocupasse e sorria com benevolência – Encontraremos uma solução!

Naqueles lentos e longos dias e noites, em algum lugar no leste distante, eu fui quase- feliz.

Aquela rotina se repetiu por jornadas incontáveis, mas nunca ninguém parecia próximo de encontrar uma cura para o meu mal. Apenas a Feiticeira sorria e me dava a certeza de que ainda havia esperança.

No entanto a cada entardecer eu podia sentir a sombra da morte no meu interior voltando a crescer.

Uma cascata infinita de chamas e luz.

Até que uma certa e inesperada tarde pude ver pessoas se aglomerando na praça central. Instalavam um gigantesco mecanismo que parecia ser alimentado com a energia de  grandes cristais inseridos em cavidades no chão.

Corri para lá.

Ela me esperava no lugar costumeiro. Na hora costumeira.

Quando me aproximei deu ordem para que gigantescos aparatos fossem introduzidos em minha couraça externa. Diversos homens subiram por andaimes e em guidastes enormes, num processo demorado. Quando tudo foi devidamente colocado, pude sentir a eletricidade percorrendo todo o meu corpo.

Eu apenas olhava para ela sem entender, e ela apenas sorria de volta.

Após o último de vocês ter me deixado, e depois que os andaimes foram retirados, ela finalmente falou.

– Como está meu querido gigante hoje? Tem gostado daqui? As pessoas tem tratado você bem?

Eu respondi afirmativamente meneando a cabeça.

– Pois saiba então que hoje chegou o dia! Finalmente deixará de sofrer, e não precisará ferir ninguém! Já testei esse mecanismo miraculoso em que venho trabalhando e tenho certeza que irá funcionar.

Um tremor se apossou de  mim sob a couraça, tentei exclamar alguma coisa mas não conseguia. Aquele. Aquele era o momento pelo qual eu tanto tinha esperado. Finalmente seria livre e poderia viver em paz entre vocês, sem ser atormentado pelo medo e a culpa.

– Sim, sim, meu gigante! Uma solução. Finalmente uma solução.

E a sua mão diminuta se posou sobre o metal frio que era o meu corpo novamente.

A máquina foi ligada. Ela rangeu e vi os cristais se acenderem. Um zunido ensurdecedor tomou a praça a medida que um véu de luz começava a me envolver.

– Não tema. Vai terminar logo – ela disse.

E quando eu menos esperava, ela veio súbita e repentinamente.

A liberdade.

Tudo havia desaparecido. A torre. A cidadela. A feiticeira.

E eu acordei nessa devastação fria e gelada. No céu enxerguei uma estranha aurora dançante em diversas cores e nada mais além disso. Por quilômetros e quilômetros eu andei deixando pegadas, mas ao meu redor, e para onde quer que eu olhasse, havia apenas um inferno branco de neve sem fim.

Senti que as chamas ainda estavam dentro de mim, e nunca antes tão ansiosas para sair e varrer o mundo.

Assim eu compreendi.

A máquina não fora construída para curar, mas para no momento certo me transportar até o destino do qual eu fugira. As terras ermas e remotas, onde isolado eu jamais poderia respresentar um mal para qualquer um de vocês.

Uma solução ela disse. E por acaso aquela não era uma?

Vocês sabiam de tudo isso. O tempo todo.

Senti uma imensa saudade de tudo, daqueles longos dias ao sol e aquela lembrança se espalhou por mim enquanto meu corpo permanecia ali. Metal frio em meio a devastação gélida. Me senti pela primeira vez vivo e entendi o que era a vida, pois estava prestes a deixá-la.

Abri a boca, tão poucas vezes utilizada, e um longo e agudo lamento férreo varreu o nada.

De meu peito uma esfera incandescente emergiu e começou a inflar. Uma explosão se elevou como uma onda quente alcançando as nuvens e envolvendo tudo o que existia até o oceano. Evaporando o inferno branco.

Talvez aquela luz  seria avistada  longe dali, como um enorme pira no céu. Por todos vocês. Por ela. Bastando para isso inclinar a cabeça para cima e olhar em direção ao norte.

A explosão cessou. O enorme vácuo que criou deu origem à uma colossal tempestade.

Por fim, mesmo a grande tempestade morreu. E permaneceu apenas o silêncio.


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