Ícone do site RPGista

Herói com rosto africano

 
Herói com rosto africano 1O mito é um sonho coletivo; o sonho, um mito pessoal”.
E então você se alimenta de fábulas… todas essas estórias brilhantes de heróis, reis e rainhas, dragões e feiticeiros fizeram sua cabecinha de moleque solitário e sonhador, não é mesmo?
Mas qual a origem de todos esses mitos?
Quer ouçamos com divertimento a mistificação onírica de algum feiticeiro de olhos injetados do Congo, quer leiamos com arrebatamento apurado traduções esparsas dos sonetos do místico Lao-Tsé…”
Joseph Campbell, Herói de Mil Faces
Sério, seu Campbell? Os mitos de África são “mistificações” que devem ser ouvidas com “divertimento”? Não merecem a mesma reverência e fascinação as lendas e estórias provenientes do continente que originou todas as outras lendas e estórias?
Sejamos francos: a África não representa nada para o imaginário da humanidade. Quando se fala em África, vem logo em mente guerra, fome, pobreza, animais selvagens e tribos. E em que essas tribos acreditam? Ah, é tudo um monte de uga-bugas supersticiosos, dialetos rudes. Não têm cultura.
Certo. Só que eu vou provar que não.
As Origens das Mitologias Africanas
Os pequenos sonhos não têm grande importância; contudo, se o cara tiver um sonho realmente grande, desses que abalarão as estruturas dessa lama de mesmice, então toda a comunidade deve ser reunida para ouvi-lo. Ao menos é o que dizem os habitantes da floresta de Elgon, na África Central.
Assim como os primeiros humanos iniciaram suas jornadas heroicas no continente africano, as grandes mitologias consagradas pelo mundo ocidental originaram-se todas nos primeiros sonhos de África; acredite se quiser, fábulas da criação miraculosa do mundo, menções ao parto virginal, lições do pecado original, narrativas da morte e ressurreição de um líder espiritual, relatos de um dilúvio, registros da viagem da arca e os símbolos do cálice, espada e cruz, floresceram primeiro nos contos e estórias ao redor da fogueira desses muitos de pele escura, milênios antes do advento do cristianismo e outras mitologias europeias.
No entanto, quantos podem hoje dizer que conhecem os grandes deuses e heróis das lendas achantis, lundas, zulus e quicongos tão bem quanto conhecem os deuses nórdicos, celtas e gregos? Por que somente os poderosos entre os europeus aparecem nos livros, filmes e jogos? Por que não crescemos nos alimentando com as estórias dos grandes caçadores, sacerdotes, feiticeiros e guerreiros do continente africano?
Aliás, por que diabos nem conhecemos essas estórias?
Na escolinha, me ensinaram que eu descendo de ex-escravos. E só. Nunca me esclareceram acerca das organizações políticas, das filosofias, religiões, trajetórias e glórias dos ancestrais meus. Só que eu nunca aceitei que os sonhos de força e coragem existem apenas na Europa e que eu descendo de tribalistas primitivos, não, não. Daí que fui ler, estudar, buscar essas origens por conta própria… e, a partir de agora, vou dividir um pouco com vocês. E provar que as lendas de África não são “mistificações divertidas de feiticeiros com olhos injetados.
As mitologias africanas pintam com cores próprias – muitas cores, por sinal – a carreira do herói.
Vamos aqui preencher essa lacuna de África no imaginário do mundo; no que diz respeito ao RPG, é o seguinte:
Herói Fundador
Um traço bastante comum entre os vários povos da África Subsaariana é a figura do Herói Fundador – seja ele o poderoso caçador que nunca erra uma flecha, fundador de uma pequena tribo, ou o magnânimo feiticeiro das dimensões destruidor de mundos, fundador de uma dinastia imperial.
Por exemplo, entre os quiocos muito se conta a respeito de Chibinda Ilunga, o grande herói que caça animais selvagens e inimigos por meio de poderes sobrenaturais, aquele que desposou a rainha Lueji, dos lundas, e com ela fundou o império Lunda-Quioco, no interior do que hoje é Angola e Congo. O império foi criado em algum lugar do século 11, e perdurou mesmo às investidas portuguesas, tendo seu fim por volta do século 17 ou 18. A Chibinda Ilunga é dado um status de super-herói ancestral, o maior flecheiro a caminhar sobre a Terra, inspiração para toda a população que o venera – pois, afinal, descendem dele. Com efeito, os quiocos, povo cuja origem pertence ao tronco linguístico banto, são caçadores por excelência, concentrados na região oriental de Angola, naquela fauna de extrema abundância entre o planalto de Muzamba e a nascente do rio Kwango. Todo caçador quioco presta homenagem ao seu ancestral famoso antes de qualquer atividade, e há até mesmo sociedades secretas de chibindas – título de Ilunga que, na verdade, significa: “aquele que caça com magias”.
Em toda aldeia quioco há, no mínimo, uma mulemba, árvore considerada sagrada, em homenagem a Ilunga – em muitas partes de África, acredita-se que os ancestrais, após libertarem-se das limitações da carne, vão lentamente subindo aos céus, e por isso muitos deles residem em árvores, especialmente nas mulembas, para observar e guiar seus descendentes. Há sempre muitas mahambas (paus de oferendas) ao redor de uma mulemba.
Por sinal, é a estatueta de Chibinda Ilunga que ilustra este artigo.
Outro exemplo: os ambundos de Angola tem o prodígio Sudika-mbambi por Herói Fundador. Filho do agricultor Kimanaueze, o velho, nasceu já falando, todo armado de espada e bastão, e recitando poemas de poder…
Mãe, aí vem minha espada.
Mãe, aí vem minha faca.
Mãe, aí vem minha kilembe.
Mãe, aí vem meu bastão.
Mãe, aguente firme, aí vou eu.
…no momento em que sua aldeia era devorada por terríveis monstros makishis – espécie de ogros de muitas cabeças, comedores de gente. Sudika-mbambi recitou esses palavras ainda na barriga da mãe, quando ela estava prestes a ser devorada, e então nasceu e estraçalhou o algoz de sua família apenas com o pensamento. E ele disse: “Eu sou Sudika-mbambi. No chão, ponho meu bastão; no céu, ponho um antílope”. Todos seus parentes se boquiabriram e foram incapazes de falar, enquanto um segundo filho saía da mulher, também já todo armado e falante, declarando que seu nome era Kabundungulu, o gêmeo mais novo. Usando apenas a força da mente, os dois gêmeos transformaram as ruínas da aldeia em cubatas novinhas, como se nunca houvessem sido destruídas pelos makishis. Sudika-mbambi ordenou que seu irmão ficasse para proteger os aldeãos, enquanto ia ele em pessoa caçar os malditos comedores de gente.
No caminho, encontrou quatro kipalendes – espécie de duendes sobrenaturais – com os quais formou uma aliança, uma vez que esses pequenos espíritos travessos muito se admiraram com os incríveis poderes mágicos daquele moleque humano, além de eles próprios odiarem os makishis. Mas, antes de confrontarem os comedores de gente, tiveram problemas: toda vez que saíam para caçar, sempre deixavam um dos quatro kipalendes para guardar o acampamento; aí, aparecia uma velha feiticeira, acompanhada de sua bela neta; a velha desafiava o kipalende e dava-lhe uma surra, prendendo-o debaixo de uma rocha; aí, Sudika-mbambi, por meio de seu dom de clarividência, percebia o aliado preso debaixo da rocha, e todos tinham de suspender a caçada para retornar e salvar o amigo preso. E assim aconteceu com os quatro espíritos, até que Sudika-mbambi ficou ele mesmo para enfrentar a velha.
Vamos lutar”, disse ela; “se me vencer, casará com a minha neta”. E eles lutaram.
Poderes impressionantes foram invocados para aquela batalha; usando apenas o poder da mente, os rivais levantaram rochas, removeram o curso de rios, dispararam ventanias e invocaram espíritos furiosos; contudo, Sudika-mbambi venceu no fim, matou a velha e tomou sua neta para si. “Hoje, ganhei uma vida”, comentou a jovem; “é que minha avó costumava me trancar numa casa de pedra, e eu não podia sair. Mas hoje fui libertada com Sudika-mbambi, com quem quero me casar”. E então os kipalendes retornaram da caçada, acompanhados de uma multidão agradecida. É que eles encontraram os makishis, retalharam os monstros e tiraram de seus estômagos as pessoas da aldeia de Sudika-mbambi, ainda vivas!
E assim, a aldeia foi repovoada, Sudika-mbambi se casou e foi coroado rei. Tudo isso ainda antes de completar algumas horas de vida.
Para os africanos, assim como para todos os povos da Terra, os detalhes fantásticos da nascimentos do herói, assim como todas as suas façanhas miraculosas de poder e coragem, não são concebidas para os olhos da razão, e sim para os olhos da introspecção. Podemos dizer que as ideias essenciais dos mitos, apresentadas na forma de conquistas e vitórias espetaculares desses heróis, além de servirem como exemplo, simbolizam a realização de nosso potencial humano. E as lendas de África já faziam isso há muito, muito tempo – muito antes do primeiro europeu desembarcar no continente e enxergar, com seus olhos carregados de preconceito, apenas um bando de idólatras primitivos.
Este é apenas o primeiro artigo sobre como introduzir um toque africano em suas estórias; mais relatos ainda estão por vir.
 

Sair da versão mobile