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Conto – O Paladino e o Demônio

O Paladino e o Demônio (um conto no mundo de Tormenta)

 

            Amanheceu mais uma vez na que fora a vila de Donelia, há dias as chamas haviam terminado de consumir tudo, e o que uma vez foi uma vila, agora não era mais que uma terra árida e acinzentada. Até que o tempo e a natureza se encarregassem de engolir todo vestígio da mão do homem, ou até que este decidisse deixar suas marcas novamente.

            Os dois cavalos adentravam lentamente pelo que até pouco teriam sido ruas, seus cavaleiros escrutinavam tudo com o olhar. Com esperança haveria algum sobrevivente, ou até mesmo algum corpo para prestar os rituais apropriados, já seria mais que na fazenda onde estiveram dias atrás, e onde a caçada havia começado.

            Angustiado, o mais jovem deles começou a gritar na esperança de uma resposta, mas cada segundo de silêncio apenas o deixava mais abatido. Era inexperiente ainda, e um pouco ingênuo, há apenas dois meses havia sido aceito como escudeiro do paladino que estava a sua frente. Como muitos jovens de fim de mundo e lugar algum, Ben sonhava em aventuras e gloria, queria fazer o bem e ter canções sobre seus feitos espalhadas pelo reinado.

            As pessoas imaginam paladinos de certa forma. Faz parte do inconsciente popular, ou talvez seja apenas culpa dos bardos. Armaduras brilhantes, vozes de comando, palavras eloqüentes e justiça infinita. Dessas, a última era provavelmente a única que se encaixava com Rodrick. O paladino já estava viajando a mais tempo do que o adolescente logo atrás dele sabia se locomover em duas pernas, ou talvez mais. Já vira o bastante do mundo para saber que aparência e palavras belas de nada servem quando se enfrenta aço, garras e magia.

            Paladino não era exatamente a palavra que saltava a mente das pessoas que o viam pela primeira vez. Guerreiro provavelmente sim, perigoso com certeza, bandido em mais de uma ocasião. Mas suas ações sempre eram justas e seu olhar não possuía maldade, apenas uma ferocidade implacável quando enfrentava seus inimigos. Nesses momentos era capaz de inspirar, de transformar garotos em valentes e despertar força nos desamparados.

            Não quis perder muito tempo, sabia que se alguém havia sobrevivido, ou estava escondido no meio da floresta, ou havia partido para alguma cidade ou vila próxima. Procurar seria uma distração e serviria apenas para dar mais tempo a seu inimigo de fugir. Assim que terminou de passar pela vila sem ver nada pelo que valesse a pena parar, acelerou o passo novamente. Ben o seguiu antes que ficasse para traz.

 

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            Demônios vêm em todas as formas e tamanhos. Existem quadrúpedes, rastejantes, voadores. Podem ser vermelhos, cinzas, negros. Com muitos braços, com laminas no lugar dos mesmos. Existem tantas variedades de demônios nos planos infernais de deuses malignos, quanto existe fauna nas florestas de Arton. Mas este era bastante óbvio. Dois braços, duas pernas, uma cabeça com dois olhos. A semelhança com uma pessoa terminava aí. Seu corpo era recoberto por uma crosta que lembrava a casca de certas árvores, exceto que era azul cinzento e exalava um fedor que não era comparável a nada que qualquer árvore de qualquer mundo exalasse. Sua cabeça era grande e possuía alguns pares de chifres para adorná-la, seus olhos eram negros, não brilhavam, não emanavam faíscas sobrenaturais ou auras assustadoras, eram apenas, e completamente, negros. Possuía garras maiores que os dedos, e eram tortas, pareciam defeituosas aos olhos de uma pessoa, mas eram mais fortes e afiadas que a espada que o homem no chão havia usado para tentar matá-lo e que agora atravessava seu próprio estômago.

            O deixou jogado ali, agonizando juntamente com outros corpos, alguns já mortos, outros mais infelizes. Amontoou todos, vivos ou mortos, e contemplou por um tempo o que havia feito. Sentiu-se vagamente feliz, e ao mesmo tempo vazio. Esses seres fracos mal conseguiam entretê-lo, não ofereciam resistência real, perigo. Eram moles e covardes. Seus gritos ofereciam algum prazer, e sua carne era um bom alimento. Mas queria alguém forte para enfrentar, uma conquista, algo de que se orgulhar.

            Se continuasse assim, em algum momento cruzaria com alguém forte, ou chamaria sua atenção com a trilha de morte, e então teria sua batalha. Sua forma de pensar era diferente das pessoas, sua natureza era outra. Precisava de batalhas, de guerra, de destruição. Sairia vitorioso, ou seria enviado de volta a Werra, o plano do deus da guerra, de onde havia saído em busca de glorias e conquistas além da infinita guerra na qual nasceu.

 

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            Rodrick levantou sozinho, mas não foi nenhuma surpresa. Ouviu Ben partindo durante a noite, apenas fingiu que dormia para não dificultar ainda mais as coisas para o garoto. No dia anterior passaram por uma carroça destruída no meio da estrada. Com corpos esfolados e empalados ao seu lado. Ben vomitou até as tripas, e depois disso ficou o resto do dia em silêncio, com expressão de vergonha. Para o paladino já era obvio o que planejava fazer. Frequentemente, o desejo de ser herói não está a par com o que há no coração da pessoa. Mas era melhor assim, se insistisse nesta vida sem ter nascido para ela, com certeza teria uma morte prematura.

            Sabia que estava quase alcançando seu alvo. Os restos que encontrava no caminho eram cada vez mais recentes. Se acelerasse a marcha tinha esperanças de alcançá-lo ainda no mesmo dia. E agora que estava só, poderia ir mais rápido ainda. Pois sua montaria não era como outros cavalos. Era um animal sagrado, mais forte, inteligente e robusto que um cavalo normal.

            Fez suas preces e montou sem comer. Para não perder tempo, faria pequenas refeições ainda montado no animal, o bastante para manter suas forças em plenitude, mas não para que o torpor do corpo farto pudesse torná-lo lento ou sonolento. Não precisava fazer sons específicos com a boca ou bater com o pé no corpo do animal para fazê-lo andar, eles se entendiam em um nível mais profundo que esse. Assim que subiu nele, a marcha começou.

            Gostaria de pensar que justiça seria feita, mas também acreditava que justiça teria sido evitar que todas aquelas mortes ocorressem em primeiro lugar, o que desejava agora era retribuição. Por todas as almas que se foram, por toda a vida desperdiçada e sonhos que nunca se realizariam. O cavalo acelerou mais um pouco.

 

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            Foi quase na beira do Rio dos Deuses que finalmente um viu ao outro pela primeira vez. Rodrick o avistou sentado em uma rocha ao longe. Estava imóvel, talvez estivesse descansando, talvez tivesse avistado o paladino e resolveu esperar por ele em um campo de batalha adequado. Era um campo aberto e plano, sem obstáculos e com o chão firme.

            O demônio permanecia imóvel. Rodrick chegou a certa distancia e desceu de seu cavalo, fazendo um gesto para que se afastasse. O demônio finalmente se levantou e começou a andar em direção ao paladino. Seu corpo era grande e muscular, suas garras estavam sedentas e inquietas. Sua mandíbula rígida em uma combinação de sorriso e desejo. A crosta que formava sua pele palpitava lenta e fartamente com sua respiração ansiosa.

            Todo seu ser emanava violência.

            O paladino firmou o escudo com uma mão e empunhou a espada com a outra. Seu passo era firme e constante, sua resolução absoluta. Contraiu os músculos rapidamente para acordá-los. A armadura trazia a balança de Khalmyr gravada orgulhosa no peito. Desde o começo acreditou na possibilidade de que aquela destruição não fosse obra humana ou de qualquer outro ser deste mundo. De certa forma era um alivio saber que o culpado não era um homem.

            Conforme a distancia diminuiu o passo acelerou, não houve uma pausa para apresentações ou troca de palavras inúteis. Rodrick correu. A espada em punho formando um arco descendente que o demônio já estava começando a esquivar, mas ao chegar à metade do caminho mudou sua direção e a transformou em uma estocada rumo ao rosto da criatura, que se dobrou para trás evitando um golpe fatal. Em contra ataque ele avançou como um raio pela lateral em uma investida com o corpo. Tentou segurar o braço da espada com uma das mãos, mas Rodrick a tirou a tempo e usou um golpe com o escudo para atingir a outra mão que vinha rumo a sua garganta. Mas a investida não parou, e o demônio o atingiu com o corpo, arremessando o paladino ao chão.

            Aproveitando o momento, uma nova investida, mas Rodrick se recuperou a tempo. E ainda caído, assumiu uma postura defensiva, usando as pernas para deter a investida e contra-atacando com a espada que o atingiu na coxa direita, por onde começou a escorrer um sangue escuro, quase negro. A criatura saltou para traz, surpresa. A crosta que protegia seu corpo era forte o bastante para resistir a maior parte dos ataques de aço mundano sem sofrer dano, mas aquela arma não era mundana, era mágica, mais que isso, era sagrada, e a lamina o perfurou facilmente. Era um ferimento pouco mais que superficial, mas o melhor que alguém havia conseguido neste mundo fraco.

            Rolando para traz, Rodrick ficou de pé em um movimento ágil que não combinava com todo o metal em seu corpo. Com a transpiração já começando a escorrer dentro do elmo, avançou mais uma vez. Já preparado para a agilidade da criatura, realizou uma serie de movimentos de estocada seguros e sem abrir brechas, mas que foram facilmente esquivados. O demônio abriu a boca em um urro gutural, prontamente acompanhado por um jato de chamas que obrigou Rodrick a levantar o escudo para proteger seu rosto. E aproveitando a brecha, o demônio avançou rolando pela diagonal, e levantou com um salto, atacando com garras que se incendiaram durante a trajetória. Com seu ataque ascendente atingiu o elmo do paladino com violência o bastante para arrancá-lo de sua cabeça e dilacerar o rosto agora desprotegido, criando feridas profundas, infectadas e parcialmente cauterizadas, que destruíram o lado esquerdo do rosto de Rodrick, e por pouco não cobraram seu olho.

            Superando uma dor que imobilizaria muitos, ele usou a proximidade a seu favor e investiu com uma joelhada, atingindo o abdome da criatura com a ponta de aço de sua greva e empurrando-o para traz. Seguido de forma imediata de um ataque em arco descendente no qual depositou o peso de sua fé. O demônio foi incapaz de esquivar totalmente, sendo atingido onde seria sua clavícula, arrancando um urro de dor e abrindo uma fenda até suas costelas. Se sua anatomia tivesse mais semelhança com a de um humano estaria agonizando no chão e teria perdido os movimentos de um dos braços, mas este não parecia ser o caso, pois voltou ao ataque imediatamente, e com mais fúria que nunca.

            O que se seguiu foi uma serie de ataques e contra-ataques, esquivas e bloqueios, que poderiam ter feito um campo de batalha parar para contemplar aqueles dois seres. Lados diametralmente opostos em uma balança implacável que media vida e morte sem oferecer piedade, mas que se mantinha inexplicavelmente equilibrada. Sangue e suor se acumulavam e misturavam. Gritos, urros e gemidos se confundiam. Dor e cansaço eram sentidos e ignorados.

            Depois de um tempo aparentemente eterno, em que um número desconhecido de golpes foi trocado. O demônio conseguiu uma brecha que teria sido imperceptível para a maioria, e com uma de suas mãos, que a esta altura já perdera dois dedos, atravessou a garganta do paladino, com um fino corte de lado a lado que fez jorrar sangue em tal volume, que chegou a atrapalhar a visão do próprio demônio. Em uma resposta suicida de quem não tem nada a perder, o paladino atravessou o peito do demônio com o aço sagrado de sua espada, e foi jogado longe por um chute, ao mesmo tempo em que o demônio caia ao chão.

            Já não bastasse o corpo atravessado, o simples contato com aquele metal santificado causava sofrimento a criatura, que concentrou suas forças para arrancar a lamina de seu corpo enquanto gemia de dor. O ferimento deveria matar, mas seu corpo se curava de forma sobrenatural, e dado o tempo para descansar poderia sobreviver a praticamente qualquer coisa que não fosse imediatamente fatal.

            Aproveitando a distração do inimigo, o paladino, ainda caído e moribundo, conseguiu reunir consciência o bastante para invocar o auxilio de seu patrono divino, e em segundos a maior parte de seus ferimentos estavam fechados. Deixando cicatrizes como lembranças na pele empalidecida pelo sangue perdido. Ele apalpou a garganta, para se certificar em meio ao sangue se o corte estava mesmo fechado. E ainda tonto começou a se levantar, observando que o demônio fazia o mesmo.

            Apenas com o escudo em mãos, Rodrick avançou com um grito de guerra em uma investida desesperada. O demônio copiou seu gesto, com garras em chamas e transpirando fúria. Quando se aproximavam da colisão, o paladino fez uma finta, detendo sua investida e girando pelo lado, usou seu escudo para bloquear a visão do demônio, e simplesmente soltando-o quando este fez menção de puxá-lo. Continuou avançando para o lado, e sem obstáculos recuperou sua espada.

            Ambos ficaram se encarando mais uma vez, ofegantes, esgotados, mas prontos para continuar tentando matar um ao outro.

            Foi quando aconteceu.

            Quando ocorrem grandes fenômenos as pessoas gostam de dizer que os animais estavam agitados ou que os ventos eram diferentes. Mas nada disso aconteceu. Simplesmente não houve aviso, presságio ou esperança. O céu aberto desapareceu, nuvens rubras o cobriam. O som do trovão ressoou inclemente e por todos os lados. Algo, em algum lugar surgiu, uma presença, uma coisa.

            Algo que não deveria existir.

            Eles não podiam ver o que era, nem mesmo podiam sentir, apenas sabiam que estava lá. Nenhum deles estava acostumado com a sensação de medo, um por fé, outro por simples natureza. Mas naquele momento, e por motivos que iam além da natureza ou do sobrenatural, além de qualquer coisa que qualquer um deles fosse capaz de explicar ou compreender racionalmente, era o medo que os dominava.

            Os ventos mudaram, e com eles, névoa. Algo espesso e desconfortável, enfraquecedor. Era pior que veneno, não afetava apenas o corpo, afetava a alma.

            E então a insanidade.

            Começou como sons, algo distante e minúsculo, mas tão penetrante. E surgiram, as coisas que não deveriam existir, a anti-realidade se formando a sua frente. Criaturas de formas impossíveis, de ângulos inexistentes, paradoxos da realidade. Coisas que insultavam a criação pelo simples fato de estar lá.

            Não houve necessidade de pensamento ou concordância. Houve apenas a ação. Ignorando tudo, ambos atacaram. E lutaram lado a lado. Pela realidade, pela existência. Ou talvez apenas, contra a anti-existência. Destruíram aquelas formas a sua frente capazes de desgarrar sanidade com sua mera visão, mas não se sentiram satisfeitos. Havia uma parte deles que sabiam estar perdida para sempre. Talvez uma certeza, uma segurança, ou um conforto. Algo que nenhum poeta, bardo ou filosofo jamais descrevera, pois jamais ninguém saberia que aquilo existia até perdê-lo.

            O demônio e o paladino começaram a andar lado a lado. Nem mesmo se olharam, não sentiam mais nada um pelo outro. Ódio ou desprezo não existiam mais. Rodrick ouviu os gritos de agonia de sua montaria e amigo, com certeza atacado por outras criaturas, ignorou. Por mais importante que pudesse ser em qualquer outro contexto, qualquer coisa mundana era irrelevante neste momento.

            Outras coisas estavam vindo, eram mais, eram maiores, não importava. A chuva começou, era ácida, corroia, queimava, não importava. O paladino e o demônio avançaram sem olhar para traz. As vitimas do demônio não seriam lembradas, e aquela grande batalha nunca seria cantada pelos bardos. Ninguém saberia de seus destinos. O paladino não seria recebido no palácio de Khalmyr, nem o demônio voltaria a sua terra de guerra eterna. Ambos deixariam de existir, absorvidos, anulados. Campeões anônimos que lutaram e foram destruídos pela Tormenta.

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