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Porque jogamos, parte 1 – Huizinga e o Homo Ludens

O jogo está presente em nossas vidas de tantas formas, que às vezes jogamos sem mesmo ter consciência disso. A experiência do jogo provoca em todos nós uma série de situações e reações que parecem comuns a primeira vista (isso se deve justamente por causa da quantidade e variedade de jogos dos quais fazemos parte diariamente), mas que podem ser analisados mais a fundo. Quem sabe dessa forma não conseguimos descobrir um pouco mais sobre nós mesmos?
O professor e historiador Johan Huizinga já pensava a respeito do assunto na década de 30, quando publicou o seu Homo Ludens: o nome do livro faz referência àquele que Huizinga afirmava ser o próximo passo da evolução após o homo sapiens sapiens, ou seja: o homem que brinca.

Johan Huizinga (1872 - 1945)


Huizinga não era biólogo, mas o que ele faz em seu livro é um tratado anatômico. Da anatomia dos jogos. Porque jogamos? O que há nos jogos que nos atrai? Afinal de contas, o que caracteriza algo como jogo e pode torna-lo tão cativante? O professor dos países baixos dissecou seu objeto de estudo e de lá extraiu e nos explicou, órgão por órgão, qual a constituição do jogo. A seguir, apresento cada um dos órgãos vitais que ele encontrou, e você vai perceber que o rapazinho magrelo e frágil que joga RPG e senta na frente do professor e o grandalhão bagunceiro, jogador de futebol que senta no fundão podem ter mais em comum do que se imagina…
(digo, além do fato de ambos serem representantes da espécie homo sapiens, mas você me entendeu, né?)
A primeira – e fundamental – característica que o jogo nos apresenta é a liberdade. O jogo não está no curso da evolução natural. Você não joga porque a vida te impôs essa provação. Você joga porque há algo naquele jogo que te atrai. “Que dados Bacanas! Como é que se usa?”, “Quem será o vilão que enfrentaremos na sessão de RPG da semana que vem?”, “Qual será o placar da pelada de domingo?”, “Vou levar esse jogo só por causa dessa caixa fantástica” e outras são o tipo de pergunta que, às vezes de forma até inconsciente, fazemos a nós mesmos.
Destarte, podemos concluir que jogar é uma atividade autônoma. Você joga porque foi seduzido.
Outra característica básica do jogo é que ele não se passa em “vida corrente” ou “vida real”. O jogo é justamente a evasão da vida real – mas que fique claro que isso não quer dizer que não haja seriedade nesse fazer de conta. É que essa característica, a imaginação, faz com que, enquanto jogamos, tenhamos a ilusão de que a vida não acaba; como se fosse um moto-contínuo.
Essas duas características, observadas, nos permitem perceber que o jogo é, antes de tudo, um ato desinteressado. Uma vez que ele não pertence à “vida comum”, se situa fora do mecanismo de satisfação imediata das necessidades e desejos – e até interrompe esse mecanismo. Assim, é uma atividade temporária e autônoma, que se retroalimenta. Não obedece a interesses materiais imediatos e de subsistência. Por isso é desinteressado.

Homo Ludens, livro escrito em 1938, que serve de base para este post.


Isso nos leva à terceira característica do jogo: ele isola-se e limita-se em tempo e espaço. Sempre ocorre em um campo previamente delimitado, de formas material (quadra esportiva, mesa de pôquer, tabuleiro de damas) ou imaginária (sessão de RPG, brincadeira de polícia e bandido, charadas), deliberada ou espontânea. Acontece da mesma forma com o “lugar sagrado” dos cultos, rituais e religiões (igrejas, templos, terreiros…): são locais “fechados”, isolados, onde se respeitam determinadas regras. Mas aí eu já estou me adiantando. Retomemos o fio da meada.
Mais um traço do jogo é que, mesmo depois de seu fim, ele permanece em nós mesmos como a marca de uma nova criação que aconteceu. Se essa experiência for agradável, nós vamos querer reproduzi-la e então vamos descobrir que o jogo sempre pode ser repetido. Cada vez que isso acontece, ele ganha mais valor em nosso conceito e torna-se uma espécie de tesouro a ser transmitido e experienciado. Torna-se tradição. Cultura, por fim (e os jogadores de Pokémon, Super Mário Bros., Zelda e Sonic hão de concordar comigo).
Uma característica importante, agora: como vocês já devem ter percebido, pouca coisa está, de fato, entregue ao acaso na estrutura do jogo. Ele cria ordem e é ordem. Enquanto ele acontece, introduz uma perfeição temporária e limitada na “confusão” da vida e na “imperfeição” do mundo. Ele exige uma ordem suprema e absoluta que, se desobedecida, “estraga o jogo” e o priva de valor. Por isso jogos podem ser fascinantes e cativantes. Estão cheios das qualidades mais nobres da estética: ritmo e harmonia.
Regras determinam o que “vale” dentro do jogo; não permitem discussão ou ceticismo. Quem quebra as regras é visto pelos demais jogadores como um “desmancha-prazeres” (ou “troll”, se preferirem), alguém que está mostrando aos demais como é tênue a linha que separa a realidade do jogo do “mundo real”.
Nos jogos, assim como na vida real, os trapaceiros, hipócritas e dissimulados são mais bem tratados do que os desmancha-prazeres, que agem com sinceridade (advogados de regras, essa foi para vocês). Já os “desmancha-prazeres” da humanidade são os hereges, apóstatas, reformadores, objetores da consciência. Uma das conseqüências desse tipo de comportamento pode ser a criação de um novo regime, com visão diferente da original, como um novo jogo ou sistema (indies, essa foi para vocês).
Outro atributo dos jogos, que corrobora todos os já citados, é que há sempre o elemento de tensão. A incerteza, o acaso, o desafio. A vontade de desfazer essa tensão é que exerce fascínio. Mas não apenas isso: a tensão deve ser desfeita a custa de seus próprios esforços, e de acordo com as regras estabelecidas.
Por fim, o jogo cria um sentimento de “fraternidade” entre os jogadores. “Somos diferentes e fazemos coisas diferentes. O que acontece lá fora não nos importa” são frases que ajudam a descrever essa característica. A tendência é que esse comportamento faça com que sejam formados grupos sociais que buscam cada vez mais uma exclusividade. O exemplo máximo que temos dessa situação são os times de futebol: uniformes, “torcidas organizadas” (que levam essa história tão a sério a ponto de discutirem e entrarem em conflito consigo mesmas!), toda aquela parafernália de propaganda… Mas isso também ocorre em escala menor, como “clubes de jogadores de canastra” e… Hey, não temos aí toda uma “blogosfera RPGística”?
Na continuação desse artigo veremos (eu espero) que outras formas de classificação os jogos também já receberam e qual a relação disso tudo com nós mesmos e nossa forma de pensar.
Outra pergunta, para refletir até o próximo post: para você, jogo e brinquedo são a mesma coisa?
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