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Inspiração – Um conto lovecraftiano…

 
Inspiração - Um conto lovecraftiano... 1

Caro Reinhardt,

nunca conheci meu pai. Ele trabalhava como caixeiro-viajante. Certa noite simplesmente saiu numa viagem de negócios e desapareceu para sempre da minha vida e daquela de minha mãe. Eu tinha três anos na época, e não lembro de muita coisa.

Ficamos sabendo de seu paradeiro através de uma das minhas tias. Ela tinha vindo dar as más notícias.  Por toda sua vida minha mãe falou sobre o jeito peculiar de como ela o fez,  sem dar muita ênfase nas palavras.

“Encontraram o Winfield, Sarah. Ele está morto.”

Num quarto sujo de hotel, em Chicago, foi onde o acharam.  Seu corpo rígido sobre a cama, como o de um faraó embalsamado. As pálpebras arregaladas. Os médicos atribuíram a causa de seu falecimento a um grave esgotamento nervoso.

Apesar de não ter presenciado a cena pessoalmente, a imagem de sua morte sempre veio nítida em minha mente, ficando impressa na memória. Essa lembrança me acompanhou por toda infância.

Até hoje ela assombra minhas noites.

Ontem tive outro sonho ruim. Parecia tão real. Não tinha um pesadelo tão vívido assim, desde quando eu tinha uns dez anos idade.

Estava num aposento escuro, como acontece em todos os sonhos eu não conseguia me lembrar de como havia chegado até ali. Quando dei por mim segurava em minhas mãos trêmulas uma folha de papel.  Era uma carta e o remetente um velho amigo meu, Samuel Loveman. As letras na carta eram miúdas, e pareciam encolher a medida que eu lia.

Somente após um tremendo esforço consegui, por fim,  enxergar o que estava escrito:

“Você não pode deixar de ver Nyarlathotep se ele vir a Providence! Ele é horrível – horrível além de tudo o que você pode imaginar – mas maravilhoso. Sua presença continua a assombrar mesmo horas depois de conhecê-lo . Ainda tenho calafrios ao lembrar das coisas que ele me mostrou.”

Mesmo sem nunca ter ouvido falar de Nyarlathotep antes, ou ouvido pronunciar seu nome, sentia como se o tivesse conhecido por minha vida inteira. Um andarilho e um impostor, que clamava ter saído de terras ancestrais e vagava por aí impressionando os crédulos com suas invenções e truques. Eu sabia instintivamente que sua comitiva errante, que viajava de cidade em cidade, havia chegado e ouvia as vozes de conhecidos pedindo encarecidamente que eu não me aproximasse dele. Não queria ir vê-lo, mas de alguma maneira que não posso explicar a carta de Loveman acabou me convencendo.

Acho que a curiosidade foi mais forte que o medo.


O circo do homem louco havia se estabelecido na galeria principal. Multidões insones e agitadas, abarrotavam as calçadas do lado de fora, numa noite insuportavelmente quente para aquele outono. Mesmo no sonho, eu podia perceber aquele bafo quente pairando no ar. É como se o mundo estivesse prestes a acabar, e todos pudessem senti-lo em seu âmago.

Nyarlathotep destacava-se entre os demais presentes. Era um homem alto e magro, quase um esqueleto.  Sua pele era de uma coloração escura, mas não apresentava nenhum traço negróide. Apesar da idade avançada que alegava ter seu rosto era liso e imberbe como o de um bebê. Estava vestido exatamente como eu esperava encontrá-lo; com os trajes exóticos de um charlatão. Algo que não podia definir entre um árabe e um cigano. Talvez um faraó. O que era especialmente adequado uma vez que ele e seus seguidores diziam ter vindo do Egito.

Após instantes que pareceram uma eternidade ele finalmente deu a ordem para que a multidão entrasse na galeria e o seguisse. Primeiro passamos por uma sala com estranhas máquinas retorcidas. Elas dobravam a energia ao seu redor e muitos, deslumbrados, observavam enquanto relâmpagos e fagulhas gigantescas voavam entre uma e outra.

Um homem mais exaltado gritava a plenos pulmões – isso tudo é uma farsa, eu sei quem você é!

Nyarlatothep simplesmente sorria, e seguia em frente, ao longo de lúgubres corredores.

Fomos depois conduzidos por nosso sombrio anfitrião até uma sala de cinema. A película que foi projetada na tela continha horrores indizíveis, que se confundiam na paisagem onírica. Ela mostrava a humanidade em colapso, enquanto em meio a ruínas poeirentas os verdadeiros senhores do cosmo se levantam e esmagavam a civilização. Eram deuses, mas também monstros, e apesar de serem verdadeiras encarnações do mal, não pareciam se entreter mais naquele massacre do que um homem que acidentalmente destrói um formigueiro em seu quintal.

Mas não Nyarlathotep, ele simplesmente olhava. E sorria. Parecendo se deleitar com cada momento.

A multidão dentro da sala rapidamente se enfureceu e elevou as vozes em coros acusadores de blasfêmia. Algumas delas no entanto apenas engasgavam e emudeciam num silêncio agudo.

A voz do homem exaltado se elevou novamente, e percebi que era minha própria voz – Isso tudo é uma farsa! Uma ficcção doentia!


É o que eu gritava quando me vi subitamente atirado ao lado de fora, de volta às ruas. As luzes dos lampiões apagaram-se uma a uma, e permaneci sem mais ninguém ao meu redor, envolto apenas pelo luar esverdeado.

Andei cegamente pelo trajeto até que muito tempo depois eu pude ver uma espécie de bosque com uma pequena clareira, iluminada por tochas. As pessoas que anteriormente estiveram comigo na sala agora andavam por aquele lugar como fantasmas pálidos. Vestidos em trajes brancos, eram seres desprovidos de qualquer individualidade. Caminhavam para sua danação.

Nyarlathotep já aguardava por mim. Não lembro ao certo as poucas palavras que trocamos e que tento reproduzir aqui.

– Estive esperando por você. Está atrasado. Que bom que tenha vindo se juntar a nós! Sempre se achou melhor do que todos não é? Melhor do que a massa, da escória, dos forasteiros. Bem, adivinhe? Talvez você mesmo fosse um deles. Um forasteiro. Venha comigo. Você não pertence a esse lugar.

Então eu me lembrei. Eu me lembrei de tudo.

– Espere… eu criei você! Eu criei essa história! Isso é um sonho não é?! Já sonhei com isso antes. Eu irei despertar a qualquer momento!

– Não. Você já está desperto Howard. E irá adormecer mais uma vez… quando eu me for.

– Mas quem é você? Como sabe o meu nome? O que deseja comigo?!

E pela última vez Nyarlathotep sorriu. E vi então seu olhar vazio como o de um cadáver, vi suas roupas de viajante, e vi seu rosto se derreter e assumir uma forma que era cada vez mais familiar.

E já não tive certeza de qual de nós dois ali era o criador, e qual a criatura.

O homem a minha frente, não se dignou de responder a pergunta, advinhando que eu já havia feito minha escolha. Não iria segui-lo. Não lhe importava o motivo. E observei como de homem foi se transformando em coisa, e no imenso e indescritível caos rastejante que tragou tudo a sua volta. Aqueles arrastados no redemoinho de insanidade não eram  mais o que se podia chamar de humanos, pouco pude fazer para ajudar qualquer um daqueles seres apesar de suas súplicas desesperadas. Ele partiu, retornando para algum lugar além do espaço e do próprio tempo, localizado nos abismos infindáveis entre as estrelas.

Foi lentamente que comecei a me dar conta que as forças que guiavam a existência até então haviam sido substituídas, e que tudo havia passado para o controle do desconhecido. Do inconcebível.

Mas não me importei.

Acordei em minha casa, e a primeira coisa que tive forças para fazer foi escrever essa carta… a qual ainda não decidi se realmente pretendo enviar. Não posso descrever em palavras o alívio de estar vivo e de volta a essa realidade.

O que me intriga contudo é essa sensação de não ter despertado, de estar ainda adormecido. Sinto a mais pura angústia ao pensar que tudo isso seja um sonho interminável, e estranhamente, que eu possa nunca mais voltar a ver Nyarlatothep de novo. Percebi que talvez a noite passada ele tenha desaparecido para sempre de minha vida insignificante.

E me abandonado para morrer sozinho aqui. Nesse revoltante cemitério do universo.

H.P.L – Providence, R.I ****

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