Ícone do site RPGista

Personagem além dos Números

Olá, Joes e Sues. Contarei um causo sobre a criação de um personagem que poderá servir como um guia prático em momentos de desespero.
Certa vez fui convidado a fazer parte de um grupo que já estava jogando. A narradora usava um sistema próprio, com seus méritos e falhas; interessante. Como quase sempre sou o narrador, não pude desperdiçar a chance de interpretar apenas meu personagem. O sistema era baseado em classes num mundo fantástico pseudomedieval e no grupo havia um Guerreiro, um Monge (interpretado pelo namorado da narradora), um Mago, uma Bárbara (interpretada por um cara) e uma Ladra. Ela me disse que colocaria mais dois jogadores (uma garota e eu) e que sobraram as classes Arqueiro e Clérigo. Cansado de interpretar npc curandeiro, escolhi a outra opção.
As classes não eram pacotes fechados como em D&D, o que era ótimo. O diferencial do Arqueiro é que ele era o melhor na característica Mira e enxergava com mais precisão que os outros. Depois de ouvir sobre o sistema, a classe e o cenário, disse a ela que teria o histórico pronto no dia seguinte, para fazer a ficha e jogar. E aí veio o desafio: criar a estória.
Conflito. Tenha essa palavra em mente quando criar um personagem. O que ele quer? O que tenta impedir? O que não deve fazer? O que é obrigado a fazer? Alguém sem conflito é vazio. A maioria dos sistemas informa em números e termos esquisitos o que o personagem sabe fazer, mas não como ele age, se porta ou sente o mundo ao redor. Pense em si mesmo e responda às perguntas anteriores para ter uma noção.
Eu comecei pensando num nome. Geralmente é a última coisa em que o jogador pensa, mas não funciona assim para mim. O nome pode te ajudar a transmitir a personalidade. Escrevi algumas palavras tentando associá-las: arco, arqueiro, flecha, seta, caçador, rastreador, mata, mira, sobrevivência e lince. Juntando tudo, imaginei um caçador que usa o arco como arma principal. Veio um nome: Dart Lynx. Dart é dardo, flecha ou seta em inglês. Lynx é lince em inglês. Ele tem olhos de lince. É um nome sonoro mas o Dart lembra o mestre Jedi maligno. Troquei por Deavon, ficando Deavon Lynx.
O passado. Jogadores também o ignoram com frequência. Ele ajuda a descrever como o personagem aprendeu o que sabe. Conhecimento não vem com o vento. Partindo da ideia de que Lynx é um caçador, como ele aprendeu a caçar? Onde? Quando? Por que razão? Deavon viveu sua infância em uma pequena vila onde a subsistência vinha da floresta próxima. Sua família fazia trabalhos em couro e artesanato com madeira, vendendo em vilas maiores. Numa dessas viagens de negócio, sua vila foi atacada por ladrões, resultando na morte de quase todos os moradores e de sua mãe e irmã mais nova. Era costume o filho mais velho ir com o pai às vendas. Isso garantiu a sobrevivência de Deavon. Ele procurou pelos criminosos e pediu ajuda no reino, mas foi ignorado. No final de sua adolescência, deixou seu pai com parentes e decidiu que encontraria os malfeitores e faria justiça. Prometeu a si mesmo não deixar outro massacre acontecer. Desde então as florestas são o que ele tem como lar.
Perceberam? Algo aconteceu em sua vida para que ele se tornasse quem é. E ele tem uma meta a cumprir. Ele tem parentes e adotou o sobrenome Lynx para não deixar pistas sobre sua identidade. Ele é um sobrevivente. Bem melhor do que simplesmente “Arqueiro órfão, o cara que dispara flechas”.
Coloque defeitos. Um personagem sem defeitos é ridículo! Escolha pelo menos um ou dois. No caso de Lynx, ele é um cara que conhece as florestas como a palma da mão, é muito bom no que faz, o que o pode torná-lo arrogante. Pensei em algo mais específico. Como ele é um caçador e sobrevivente, decidi que ele só se alimenta do que caça ou colhe. Vocês pensarem que sou louco ou burro, mas não. Este defeito terrível faz parte do contexto do personagem, faz sentido. Ele não é muito sociável, já que passa a maior parte do tempo com animais (os matando!). Pessoas espalhafatosas, como bardos, o irritam um bocado. E ele tem personalidade forte, sabe se comunicar, mas se acostumou a ser um lobo solitário. Ele tem uma pequena cicatriz no rosto, nada feioso, mas o diferencia das demais pessoas. Ele se virou na floresta sozinho. Com certeza cometeu erros e foi ferido em alguma ocasião.
Quando apresentei o histórico para a narradora, ela ficou me olhando com uma cara estranha. Achei que Lynx seria vetado antes de pegar na ficha. Na verdade, ela ficou impressionada, pois lá já tinha toda a ficha pronta, sem dar trabalho, segundo palavras dela. Joguei algumas sessões até o jogo ser interrompido. Foi divertido.
Agora vocês conhecem Deavon Lynx, um personagem que criei há alguns anos e que gosto muito. Não é o mais original do mundo mas consegui dar a ele uma personalidade, vida. Não, não tenho mais a ficha dele, a narradora se mudou e não a vejo faz muito tempo.
Como exercício, que sistemas conseguem emular o Arqueiro Deavon Lynx? Ganha uma praga de libanês quem disser D&D!
Até.

Sair da versão mobile