Na primeira parte tivemos uma breve visão da trajetória do D&D — as aspirações e experimentos que nos levaram do Chainmail até a terceira e quarta edições. Rupturas no design são, como vimos, comuns em se tratando de D&D. Da mesma forma que o D&D 3E tem coisas em comum com o AD&D para ser D&D, mas suficientes divergências que o tornam um jogo distinto, a 4E se relaciona da mesma forma com sua edição anterior.
Mas algumas coisas na versão mais recente parecem estranhas… demais. Por mais que tais mudanças sejam funcionais, o estranhamento pode predispor o cidadão a uma rejeição automática, que o previne de analisar mais friamente os méritos (e reais defeitos) do sistema que se afastou de sua zona de conforto.
Esta parte tem como objetivo analisar não as mecânicas em si, mas o princípio sob que funcionam — avaliar uma ferramenta, afinal, torna-se mais fácil quando sabemos a que função ela se destina. (Se há uma mudança de forma, mas a nova forma serve aos mesmos princípios, teoricamente não há prejuízo.)
Entender, evidentemente, não significa gostar — se após a leitura você continua a desgostar, ao menos saberá por que não gosta. Com a posse desta informação, torna-se possível uma escolha consciente e, mais importante, mais eficaz em responder às suas expectativas de jogo.
Tenha sempre em mente: historicamente, o D&D sempre foi voltado ao combate. Qualquer versão. As mecânicas desta área sempre foram mais complexas e detalhadas que o restante. O modelo de personagem sempre priorizou capacidades combativas. Sua mesa pode, de repente, usar o sistema para “alto teor de drama e intriga palaciana” — mas a ficha de personagem, com locais de destaque para “Classe de Armadura” e “Bônus Base de Ataque”, permanece como um lembrete do foco pretendido.
Nisto a 4E não é uma anormalidade na história do D&D. Pelo contrário. Se a queixa principal for esta, “excessivamente combativo”, talvez D&D como um todo não seja o jogo para você. Fantasia medievalesca é o gênero mais comum de RPG, logo, o mais apoiado por diferentes abordagens e sistemas. Existem aqueles em que o combate segue um modelo mais realista (em vez de baseado em wargames, em que apenas a movimentação é naturalista, e todo o resto segue abstrações como hit points e armor class). Outros são menos “armaduras invocadas com spikes” e seguem uma estética/temática mais “histórica/mítica”. Há os sem magia, com pouca magia, magia-poderosa-mas-perigosa, magia para todos, magia customizável, etc. Existem os sem proteção de nicho (i.e. sem classes), e os que usam classes, mas não níveis. No momento em que nos damos conta de que o D&D (e seu modelo de sistema) não é “nossa única esperança RPGística”, é mais fácil aceitá-lo pelo que ele é em vez de condená-lo por não responder a cada nuance de nossas expectativas idiossincráticas. Se o D&D fosse 100% compatível com 100% dos gostos, não teríamos a motivação que levou à criação de RPGs como o Pendragon, RuneQuest, The Riddle of Steel, Burning Wheel e tantas outras abordagens, tanto temáticas quanto mecânicas, da fantasia medievalesca.
Pois então: o que há por trás dos bônus e poderes da 4E?
Da ficção para o jogo
A mudança mais radical por que passou o sistema do D&D foi uma de perspectiva. Jonathan
Tweet, sobre a 3E:
O bruxo [warlock, Complete Arcane] é evidência de uma mudança filosófica no departamento
de pesquisa e desenvolvimento no D&D. Quando fizemos as classes da 3.0, nos perguntávamos
“Como um bárbaro deveria ser?” e “Como um ranger deveria ser?” O bruxo surge de um tipo
diferente de pergunta: “Como podemos projetar uma classe que dê esta ou aquela experiência
de jogo a seu jogador?” O bruxo não é a única classe assim, mas é um exemplo claro.
Durante a atividade, o jogador — e não seu personagem — há de interagir com as regras. As mecânicas de inclinação abstrata/metagame não estão no sistema para conveniência da simulação/”realidade de jogo”. Não se pode esperar que elas atuem como a “Física da realidade imaginada” pois não foram feitas com esse propósito (tente GURPS para tal). Elas tomam tal forma para a conveniência do jogador.
O guerreiro que possui um poder marcial diário foi feito assim para instruir o jogador que usa aquele guerreiro — “uma vez por dia no jogo, seu personagem pode utilizar este recurso”. É funcional.
A noção de “poder diário” por si é problemática, todavia. Não em termos de simular ou deixar de simular — a noção é tão prejudicial ao mago quanto ao guerreiro.
“Encontro” é uma unidade de tempo totalmente abstraída, de meta-jogo. A mesma unidade pode descrever tanto uma luta que transcorre em três minutos na ficção quanto um skill challenge voltado para investigação que ocorre em duas semanas no mundo de jogo. As ferramentas mecânicas que se tem à disposição concernem apenas a mecânica da unidade de encontro.
O “dia” também é uma mecânica de andamento/recursos — mas esta está “presa” a um intervalo específico de tempo naficção. Um poder diário é um recurso mais raro/valioso em um dia de 3 encontros do que em um de 1 — o número de encontros naquelas 24 horas da história é uma função da narrativa/desenrolar da ficção/plano do Mestre, não da mecânica.
Talvez uma variação das milestones constituísse uma unidade melhor. Um poder de guerreiro utilizável a cada [Unidade Abstrata x; x = y encontros] provavelmente causaria menos estranheza que o “por dia”. Ou, de repente, o futuro está com Gamma World, que sequer usa a noção de poderes diários — tem-se somente at-will e encounter.
Interessante de usar ou ficcionalmente “correto”?
O guerreiro é uma figura icônica na fantasia D&Dêica — não raro ganha a capa do livro. A tentativa de simulá-lo “realisticamente” leva a um sistema amigável à realidade do mundo de jogo — mas pode não sê-lo em termos de gameplay. A essência desta abordagem do guerreiro é sintetizada na descrição de suas habilidades especiais constantes do D&D Basic Set, o Red Box de Frank Mentzer (1983) — um “aquecimento” para a primeira edição do AD&D –, pág. 28:
Guerreiros não necessitam de habilidades especiais para sobreviver e prosperar. Sua grande
força, pontos de vida, armadura robusta e várias armas fazem deles uma poderosa classe de
personagem.
É o que se espera da “realidade” de um guerreiro? Talvez. Mas ele também se torna uma classe desinteressante em termos de complexidade em jogo.
A 3E foi um enorme avanço de design em relação ao AD&D, um tanto confuso e arbitrário para os padrões de hoje. Os feats, uma inovação (dentro do D&D), permitiram ao guerreiro uma maior flexibilidade e complexidade — opções, afinal. (Tal abordagem amigável à customização já havia sido experimentada no AD&D, vide Player’s Option: Skills & Powers de 1995, bem como, ao longo da edição, com os kits.) Nem só de boa armadura, bônus para acertar e DV altos vive o guerreiro.
Mas não se trata de complexidade em jogo. Diversas escolhas em termos de talentos, CdPs, itens mágicos são uma complexidade pré-jogo. Aquela cadeia de talentos, no fim das contas, será toda canalizada em um bônus ou dois que modificam uma ação em jogo apenas, “eu ataco” — geralmente com ataque total e seus iterativos por BBA alto (a única expressão de dano respeitável a que o combatente tem acesso). A customização do guerreiro consiste apenas em hipertrofiar as poucas opções que a classe possui.
E enquanto o guerreiro se contenta com meia dúzia de manobras e ações de ataque total de bônus anabolizados, o jogador do mago ou clérigo se delicia com: o equivalente de uma artilharia mágica (que não se restringe apenas a dano — limita as ações dos adversários, impõe-lhes condições); tem a seu dispor métodos exóticos de movimento (vôo, teleporte); invoca criaturas para dominar o campo de batalha — e se tudo mais falhar, uma transformação de Tenser provê o acesso à caixa de brinquedos do guerreiro.
O mago, naturalmente, possui tudo isto em virtude da “realidade” da magia que se tenta codificar no sistema de sensibilidade simulacionista (tênue). Bom para a simulação, mas… bom para o jogador? É justo penalizar com poucas (e pouco impressionantes) opções o que se resume apenas a uma escolha estética de “amadura + espada” em vez de
“camisolão + varinha mágica”? (A escolha entre o guerreiro ou o mago que existem apenas na imaginação me parece total ou predominantemente estética.)
Papéis de aventura
Enquanto a 4E divide seus papéis — que foram melhor traduzidos como funções — em agressor (striker), controlador (controller), defensor (defender) e líder (leader), a 3E optava por uma configuração distinta:combatente, conjurador arcano, conjurador divino e ladino. (Também expressa com um menor número declasses genéricas — combatente (warrior), conjurador (spellcaster), especialista (expert) –, o mesmo padrão usado pelo Primeira Aventura e melhor aplicado pelo True20.)
Este modelo de quatro funções “de aventura” (para distinguir das “de combate” da 4E) é quase o “DNA do D&D” pois nada mais são que as classes de personagem originais — fighting-man, magic-user e cleric. O ladino vem depois.
Estas são os modelos para todas as demais classes que surgem. O AD&D explicita tal genealogia através da divisão de suas classes de personagem em grupos — cada um correspondente a uma “função de aventura”. Warrior engloba guerreiro, ranger e paladino; Wizard, o mago, o ilusionista e demais especialistas (que possuíam pré-requisitos específicos de atributos); Priest inclui clérigo e druida; Rogue inclui o ladrão e o bardo.
A função ladino (rogue) — a classe era ladrão (thief) — foi uma adição posterior à primeira versão (1973). Antes do ladino, as funções se distribuíam como segue: o guerreiro se encarregava de “combate puro”/direto — ataques ilimitados, dano mediano, alta chance de acerto, armadura e hit points bons; o clérigo, de magias de cura (cure wounds, raise dead) e defesa/proteção (Protection/Evil 10′, Bless, Find Traps); o mago, magias ofensivas (uso limitado, alto dano e/ou efeitos adicionais como área — fireball, magic missile…) e de “utilidades” (ESP, knock, invisibility, locate object, charm person, infravision…). Qualquer outra coisa ficava a cargo de especialistas contratados (geralmente coisas de “save point” como confeccionar/avaliar itens e construir castelos).
O thief em sua versão do Basic Set de 1983 (aquele em que elfo, anão e halfling eram classes), pág. 43:
O ladrão é um humano especializado em furtividade, abertura de trancas, remoção de armadilhas e outras atividades. Ladrões são os únicos personagens que podem abrir fechaduras e encontrar armadilhas sem o uso de magia. Como o nome indica, porém, ladrões roubam (…)
(…)
Quando se aventura, seu ladrão deve evitar o perigo sempre que possível. O trabalho do ladrão é usar suas Habilidades Especiais onde necessário. As perícias de um padrão podem ser muito úteis, pois podem ser utilizadas vez após vez. Por exemplo, o usuário de magia pode utilizar um feitiço para abrir uma fechadura, mas o feitiço funciona apenas uma vez; o ladrão pode tentar abrir fechaduras sempre que desejar.
Com ele se inaugura o nicho do especialista como skill user. Não se trata de um novo nicho, mas de um desbodramento do do magic-user em termos de capacidades utilitárias/não-combativas. Há um trade-off de versatilidade (abrangência das habilidades de ladrão menor que a das magias) e poder (via de regra, uma magia lançada simplesmente funciona; habilidades de ladrão requerem testes) por disponibilidade de uso (à vontade). (A existência do trade-off não implica, necessariamente, que seja equilibrado, apenas que existe.)
Em combate, o ladrão mescla características do guerreiro (ataques corporais) e do usuário de magia (baixa defesa/durabilidade; um ataque poderoso, mas limitado), estando mais próximo deste último:
Quando um encontro ocorrer, seu ladrão deve ficar fora do caminho. Você pode tentar se esgueirar ao redor do monstro, seja para roubar tesouro ou atacá-lo por trás. Você não deve lutar corpo-a-corpo a menos que precise. Um ladrão tem poucos pontos de vida, a mesmo que alguma armadura leve possa ser usada, isto não é muita proteção.
Se o ladrão ataca o oponente pelas costas, o ataque recebe um bônus de +4 e o dano é dobrado (o multiplicador aumenta com o nível, chegando até x5). Podemos dizer que o backstab possui limitação 1/encontro. Embora seu efeitomecânico seja bem delineado em regras, as condições de ativação, por outro lado, beiram o freeform. Nos é informado que são necessárias as condições a) atacar pelas costas, b) sem que o alvo tenha ciência do personagem. O mestre pode requerer testes de Move Silently e/ou Hide in Shadows para determinar se se surpreende o alvo ou não — mas como o teste destas habilidades é secreto, na prática a decisão é do mestre. Pode-se interpretar o texto como sendo possível desferir o backstab apenas como um “first strike” que antecede o round de iniciativa — depois o inimigo se torna ciente do ladrão. Mas e se o ladrão dá um jeito de se esgueirar durante o combate para apunhalar pelas costas o monstro que está ocupado com o guerreiro?
Diferentemente das magias dos magos, a capacidade ofensiva do ladrão não é limitada por uma mecânica, mas pelo “bom senso” do mestre. A 3E corrigiu isto — mas promoveu uma invasão bárbara ao nicho do especialista.
Proteção de nicho
A ordem do dia é a proteção de nicho. Quando um jogo usa a mecânica de classes de personagem, geralmente o faz por este motivo. De acordo com W.J. Kirk III em sua monografia Design Patterns of Successful Role-Playing Games (pág. 42):
Uma das motivações primárias do uso do padrão de Classe é a de delinear claramente os nichos de personagem. Logo, é importante evitar que se façam outras escolhas de projeto que interfiram com esta divisão. Por exemplo, em um jogo de fantasia, conceder a magos a habilidade de curar invadiria o que é com freqüência considerado como sendo o domínio dos clérigos.
Proteção de nicho é como a solidariedade orgânica definida pelo sociólogo Émile Durkheim — quando se é especializado, faz-se necessário recorrer ao serviço de terceiros para realizar aquelas coisas fora da área de especialidade. Por isso se recomenda o grupo guerreiro-clérigo-mago-ladino — as classes são “aleijadas” fora de seu nicho. “Ladrões são os únicos personagens que podem abrir fechaduras e encontrar armadilhas sem o uso de magia.” Sem o clérigo, ninguém recupera hit points (significativamente). Sem o guerreiro, personagens frágeis como o mago e o ladrão ficam expostos ao combate direto. O mago melhora a ofensiva em combate e, fora dele, resolve os demais problemas de “utilidade” que fogem da alçada do ladrão. Se o mago curasse, invadiria o nicho do clérigo e o tornaria supérfluo; se o ladrão e o mago são duráveis, dispensam o guerreiro, etc.
Com a introdução das perícias, o D&D 3E quebrou a exclusividade do especialista/thief como skill user. Se antes apenas o ladino podia desarmar armadilhas, agora qualquer classe pode fazê-lo se escolher a perícia adequada (o monopólio do ladrão diminuiu para armadilhas mágicas). Para mitigar isto, especialistas possuem acesso a um maior número de perícias. Mas nada que personagens com perícias bem escolhidas e amparado por um mago não resolva.
Para compensar o golpe recebido na arena das perícias, o ladino cresce na do combate. Ele sai do lado do mago como “protegido” — além de um melhor hit die (que aumentou de d4 para d6 já no AD&D), o ladino compensa a armadura medíocre com coisas como Evasão e Esquiva Sobrenatural. A capacidade ofensiva dá um passo à frente: o sneak attack (substituto do backstab) não mais depende de posicionamento e julgamento subjetivo, mas de um efeito mecânico (perda do bônus de Destreza na CA) desencadeado por um número maior de condições e ações (como finta), que se traduz e mais usos (e maior controle por parte do jogador). Graças às opções de personalização (o maior avanço da 3E sobre o AD&D), as habilidades especiais permitem um ladino mais focado em defesa (Defensive Roll, Improved Evasion, Slippery Mind) ou ataque (Opportunist, Crippling Strike). (Esquivo Hábil e Vigarista Brutal?)
(O outro especialista, o bardo, permanece semelhante ao que era no AD&D. Tinha menos habilidades de ladrão que o thief — apenas Climb Walls, Detect Noise, Pick Pockets e Read Languages — mais a habilidade única de influenciar as reações de grupos de NPCs, o que se traduziu em lista/pontos de perícia um grau abaixo do ladino (até porque ele pode suplementar o departamento de utilidade com suas magias). Em combate, não faz “dano de mago” como o ladino, mas “suporte de clérigo” — mas compartilha com o ladino, o fardo de não fazer isto tão bem quanto sua “matriz conjuradora”.)
Se assumimos aventuras com mais superfície que dungeons, se supõe armadilhas (o foco das habilidades Trapfinding e Trap Sense) menos frequentes — o peso da classe recai em suas perícias, recurso que, não mais exclusivo, deixa de ser o pilar central do nicho. O ladino agora é um guerreiro rápido-mas-frágil que compensa baixa defesa com evasão e alto ataque. (O ranger, por sua vez, é uma espécie de intermediário. Retiradas suas habilidades mais situacionais — como fizemos com as armadilhas do ladino –, o ranger é um ladino com capacidade de dano diminuída e durabilidade — hit die, armadura — aumentada — ou um guerreiro com melhor dano e menor hit die.)
Com as perícias “nivelando o campo” fora de combate, a diferenciação dos nichos começa a se dar na direção de funções de combate — a 4E formalizou e levou a coisa adiante.
O especialista pode ser dito como um combatente que faz algumas “coisas de conjurador”. E o que faz um conjurador?
Equilíbrio
Além das perícias que toda classe possui, o conjurador tem suas magias. Elas permitem utilidades (que ou superam perícias, ou as melhoram com bônus que chegam a +30) e ataques estupidamente poderosos — mas são limitadas, cada magia funciona apenas uma vez. Tal limitação de uso compensa a potência — em níveis baixos somente. Como já vimos,guerreiros são lineares, magos são quadráticos — e capazes de contornar todas as limitações que deveriam mantê-los equilibrados. Desequilíbrio é menos sobre poder em si e mais sobre monopólio da ação.
Robert Donoghue (um dos autores do FATE, com Fred Hicks e Leonard Balsera) escreveu um interessante artigo sobre equilíbrio:
Sou um grande crente na idéia de que a melhor medida de equilíbrio de jogo não é poder do personagem, stats ou qualquer coisa do tipo, mas sim tempo de holofote. Isto quer dizer quanto tempo cada personagem (e, por extensão, seu jogador) consegue empregar realizando coisas e se divertindo em vez de assistir os outros realizando coisas e se divertindo. (…)
Frequentemente, o holofote tem uma dentre duas formas — cenas e momentos. Considera-se que o personagem possui o holofote quando tem uma função significativa a desempenhar. (…) O mago e o ladrão estão ambos a invadir o vestíbulo do vigário, mas se o ladrão é o único com as habilidades para fazê-lo, então é uma cena de holofote para ele, mas não para o mago. (…)
Momentos, por outro, tomam lugar dentro de cenas. São chances de o personagem brilhar, fazendo aquilo que faz bem ou de outra forma criando momentos memoráveis no jogo quando fizeram algo legal. No exemplo de invasão anterior, pode ser a cena do ladino, mas o mago pode ter seu momento de destaque quando ele dissipa o espírito guardião que o ladrão perturbou. Não é um problema com que o ladino poderia ter lidado facilmente, então é absolutamente um momento para o mago, mesmo que ele tenha pouco a fazer no restante da cena.
Distribuir o holofote entre os personagens é um trabalho do mestre, que planeja/conduz a ação de maneira que todos os personagens tenham uma fatia equivalente de momentos e cenas de destaque. (Não é impossível equilibrar conjuradores quadráticos desta maneira, mas a tarefa do mestre se torna dura uma vez que, quanto mais alto o nível, mais o mestre deve ser criativo de modo que seus obstáculos/restrições não sejam facilmente superados por magias cada vez mais potentes e versáteis.)
Outra forma de fazê-lo é com um sistema de distribuição de autoridade narrativa, recurso popular entre diversos designers de jogos indies/hippies. Tal ferramenta lida diretamente com a partilha do spotlight, i.e. sem o passo intermediário de regular nível de poder dos personagens para atingir o mesmo fim. Na prática, o mestre delega parte desta tarefa aos próprios jogadores, geralmente dentro das limitações de uma mecânica que faz as vezes de algoritmo de distribuição (como Aspectos/economia de Fate Points no FATE). RPGs como Dresden Files RPG e Buffy usam este controle transferido para equilibrar níveis díspares de poder — slayers (como a Buffy e a Faith) são mais poderosos; white hats (como o Giles ou a Willow — antes de se tornar “arquibruxa”) são menos poderosos, mas contam com mais recursos de controle narrativo. A Buffy pode lutar melhor que todos, mas o jogador da Willow tem maior controle narrativo, usado como coincidências e adição de detalhes oportunos, que pode ser usado para compensar as fraquezas desta personagem e lhe permitir seus “momentos de Buffy”.
Distribuição de controle narrativo não é uma coisa com que todos se sentem confortáveis (pois quebra lixo “sagrado” como a odiosa prática do railroading), então o D&D 4E tentou resolver este problema com outra abordagem. O Rob Donoghue prossegue:
Comece com a premissa de que a maioria das cenas na 4e são lutas. Isto não é estritamente verdade em número, mas esmagadoramente verdade em termos de tempo empregado. Ao fazer todos os personagens competentes em combate, toda cena de combate é uma cena de holofote para todos os personagens, e ao fazer a distribuição de poderes seguir o mesmo padrão entre as classes, a distribuição de momentos é aproximadamente equivalente também. (…)
Mesmo que os usuários sejam muito rápidos na resolução dos combates, a maioria dos recursos do sistema e da criação de personagem conduz a este tipo de cena (qualquer edição, caso você tenha esquecido). E em uma sessão de D&D, enquanto as situações não combativas são variáveis em dinâmica e natureza, o combate é uma constante. Variam o terreno, os adversários, a causa e as conseqüências do combate na história — mas o combate em si segue sempre as mesmas regras. Como não se usam mecânicas de distribuição narrativa, cabe ao mestre fazer a partilha do spotlight quando planeja a aventura, de modo a dialogar com a ênfase que cada jogador definiu através dos componentes não-combativos de seu personagem.
(Apenas a figura sádica do mestre grognard-gygaxiano planejaria uma aventura com base em, por exemplo, perícias que os personagens não possuem — “A minha aventura é assim, quem mandou não construírem os personagenscorretamente?”. Para nossa sorte, tal estilo caiu em desuso em anos mais recentes. Faz mais sentido — o objetivo é “diversão para todos” e não “diversão do mestre ao extravasar suas fantasias de poder/de escritor de romances frustrado”.)
Sem as limitações dos corredores da masmorra, as situações nas aventuras na superfície variam enormemente (selvagem ou urbana? — nobreza ou submundo? Uma fuga, investigação ou negociação?). A distribuição das perícias foi a forma usada para impedir que o ladrão monopolizasse toda a ação não-combativa — cada perícia por si é uma “esfera não-combativa” completa.
O monopólio das utilidades que os conjuradores “vazaram” para thief já está, no momento da 3E, tão diluído/distribuído que não se presta para nichos bem definidos. O “arquétipo de aventureiro” (função não-combativa, “de aventura”) é menos definido pela classe e mais pelas escolhas do jogador. As classes ainda fazem exercem certa força na forma da lista de perícias, orçamento de graduações e os valores das habilidades-chave que a classe favorece — o que é facilmente contornado com talentos, classes de prestígio, etc. Caiu o nicho do especialista — “especialista” se tornou uma área ampla dentro da qual cada personagem (e não classe-arquétipo) tem um nicho próprio.
Papéis de combate
A “especialidade” (ação não-combativa) se tornou uma arena compartilhada — molde que o combate, em teoria, sempre seguiu. Mesmo as classes “não-combatentes” possuem, desde o D&D original, atribuições específicas no campo de batalha — guerreiro segura, mago explode, clérigo “buffa”, etc. Na prática, contudo, os conjuradores quadráticos têm todas as ferramentas para travarem os combates sozinhos. Podem compensar as baixas defesas e durabilidade — auto-buffs, vôo, conjuração de criaturas (“combatentes de bolso” que mantêm os adversários a uma distância segura) — e colocam o alto dano do ladino na miséria (algumas capazes de eliminar inimigos sem passar pela etapa intermediária de “erodir PVs”).
Os papéis de combate da 4E são um esforço de fazer com que a divisão já existente de nichos de combate não se perca na intenção. Em vez de uma preocupação com simulação, a preocupação se volta ao jogo — “guerreiros lutam na linha de frente e seguram os oponentes que causariam problema ao resto do grupo — que habilidades podemos incluir para que ele seja o melhor nisso?”. Se o mago causar dano demais, pisa nos dedos do ladino — mas o mago é um caster ofensivo, e a solução encontrada é fazer com que a artilharia do mago se concentre em efeitos especiais (área, condições, “campo minado”/efeitos ambientais), mas mais modesta no dano. “Mas como pode uma coisa mundana como a facada de um ladino causar mais estrago que uma explosão mágica do mago?” O que é mais importante: o jogador do ladino sentir que seu personagem é realmente bom naquilo que deve fazer, insubstituível dentro do grupo; ou regras que descrevem “realisticamente” uma realidade que sequer existe às custas do jogador que tem seu personagem rebaixado a “coadjuvante” apenas porque fez uma escolha tematicamente “errada”?
Os papéis de combate nada mais são que o esqueleto funcional da formação “clássica” — guerreiro/defensor; clérigo/líder; mago/controlador; ladino/agressor. Descrevem apenas combate pois é a única coisa que resta para as classes além do texto descritivo — as habilidades não-combativas deixaram a divisão das classes e se tornaram algo próximo de um “recurso comum”. (Que serventia teria um protetor de nicho — i.e. classe — em um campo onde divisões de nicho são tênues e facilmente contornáveis?)
“Classes conceituais”
Uma idéia estranha, mas que tem seus adeptos: a de classes (e, conseqüentemente, seus esqueletos funcionais) não descrevem funções práticas, mas, sim, conceitos. O mago não é artilharia/utilidades/baixa durabilidade/limites de uso — é o cara com o chambre cafona cheio de estrelinhas, chapéu pontudo, barba branca, etc. Sob este ponto de vista, são estas coisas que se escolhe ao escolher um mago.
Logo, é melhor, assumindo o objetivo de “contar boas histórias”, arquétipos conceituais como “especialista” e “conjurador” — “conjurador” é “saboroso”; “controlador” é árido, powergamist. Mas já vimos que, apesar dos nomes véu de Maya, tais papéis são funcionais, baseados em divisão de tarefas/solidariedade orgânica do grupo de personagens.
Afinal, uma boa história precisa que o grupo seja composto por um mago, um clérigo, um ladino e um guerreiro? Claro que não. Uma boa história depende do grupo (o sistema pode dar uma força, mas a interpretação é uma função da atividade, isto é, do que fazem os usuários). Quatro guerreiros, sem nenhum mago, clérigo ou ladino, podem gerar ótimas histórias — afinal, eles podem ser tudo o que restou de um exército dizimado, e é este tipo de circunstância de história que fomenta uma boa história, e não a combinação “correta” de clichês.
O “grupo arquetípico” tem a ver com o funcionamento mecânico — as partes do sistema prevêem um grupo com habilidades variadas. Não falhe em ver a floresta por causa das árvores — não é o mago de vestido cafona por si que é necessário para o funcionamento do sistema, mas aquilo que ele faz em termos do sistema.
O modelo “árido” da 4E, na prática, expande o leque de conceitos — as fontes de poder, quando combinadas às funções, permitem que o grupo funcione mecanicamente (i.e. funções complementares) sem a necessidade de forçar este ou aquele conceito. O grupo não precisa de um “carola oficial” — precisa de um cara que cuide da recuperação/buffs. O clérigo é apenas uma das possíveis formas que um leader assume — que agora pode ser substituído, sem prejuízo, pelo warlord (marcial), bardo (arcano), ou mesmo pelo ardent (psiônico). Cada uma destas classes pode “jogar diferente”, mas o projeto prevê que cumpram a mesma função no grupo.
Quer jogar com um papa-hóstia, mas o Juquinha, maldito seja, já “tomou” o posto do clérigo com aquele irritante warlord? Você pode tentar o avenger (agressor divino) ou invoker (controlador divino) — além do paladino (defensor divino), mas esse não é novidade. O guerreiro não é redundante com o bárbaro porque este agora é um striker. O ladino é facilmente substituído pelo warlock.
Ah, mas então deixou de ser D&D! D&D de verdade é sobre guerreiro-mago-clérigo-ladrão — se você substitui este último pelo bruxo, então temos outro jogo. Certo? Eu penso que não. D&D em específico me fala sobre um grupo organicamente complementar — mas, por ser um RPG, é um jogo que me fala sobre imaginação, e não acredito que o modelo cooperativo-orgânico (necessidade do sistema) tenha o direito de proibir minhas escolhas temáticas (ou, se não proíbe, as penaliza com funcionamento sub-ótimo). O pareamento função-fonte de poder é menos uma ode ao MMORPG e mais uma forma de manter o modelo de classes (difícil imaginar o D&D sem elas) ao mesmo tempo que diminui as restrições de conceito-temática.
(A única limitação é a ausência de um controller marcial. E na melhor tradição do público RPGístico, “se vocês não fazem, nós fazemos”, foram criadas algumas classes caseiras destinadas ao nicho do martial controller. Uma delas, o Guerrilheiro, você encontra em um .pdf bem acabado — ele controla o campo de batalha através de tiros, explosivos e armadilhas, que possuem uma palavra-chave própria. É uma classe que cairia como uma luva para engenhoqueiros goblins os usuários de pólvora em Tormenta.)
(Claro que tal liberdade temática requer acesso a suplementos — controller e striker divinos (e leader arcano) requerem o Player’s Handbook 2; o defensor arcano, o Swordmage, requer o livro do jogador do Forgotten Realms.Nas fontes posteriores, todavia, se tomou o cuidado de concentrar todas as opções em um livro apenas. O PH 2 possui todos os quatro papéis para a fonte Primal, o PH 3, todos os da fonte Psiônica.)
Cada um no seu quadrado
Os quadrados do grid de batalha ganharam enorme atenção já na 3E. Sem o mapa, perdem-se opções incluídas no sistema para adicionar profundida tática ao combate — ataques de oportunidade, por exemplo, que adicionam risco (custo) ao uso de determinados recursos em jogo.
De pés para quadrados é uma mudança funcional. Alcance de ataques, área de magias: eles são medidos em quadrados (tanto que o Livro do Mestre traz diagramas dessas áreas, em quadrados), e pés/metros são um intermediário. Para evitar uma constante divisão por 5 (ou por 1,5 na versão brasileira em metros), optou-se por cortar o intermediário.
Se os norte-americanos tivessem tido a decência de aderir ao sistema métrico, o bom senso provavelmente haveria de assegurar que 1 quadrado = 1 metro. Isto teria poupado todo o dano causado pelos quadrados meta-joguísticos à suspensão de descrença de incontáveis jogadores pelo mundo.
Curiosidade: o padrão de quadrados (como medida da velocidade do personagem, etc.) já era usado no Star Wars SAGA. (Que não é alvo de críticas por isto.)
Cada coisa em seu quadrado
O D&D 4E formaliza outra divisão que se verifica na prática do jogo: “modo de combate” e “modo narrativo”.
O modo tático é o momento em que o sistema de combate entra na jogada. Para fins de manejo, o tempo é medido por uma unidade abstrata (rodada, turno…), assim como o espaço (quadrados, hexágonos…), e também a ordem de ação — na ficção, todas as ações da rodada ocorrem simultaneamente, mas usa-se uma ordem artificial de iniciativa para fins de gerenciamento.
O modo narrativo é que se conhece por “resolver no roleplay” — as ações são todas descritas via narração, com o mestre descrevendo ambiente, reações, e pedindo testes (geralmente de perícia) de acordo com a necessidade. Neste modo, tempo e espaço deixam de usar o padrão abstraído turno/quadrado e tornam a utilizar metros, minutos, horas, etc (ainda que de forma solta e aproximada).
O que causa estranheza a alguns é o esforço deliberado em manter cada um dos modos “em seu quadrado”. A proteção de nicho que atua sobre as classes no contexto combativo (o ponto central do sistema do D&D desde a origem) não é a mesma que se aplica no contexto narrativo. As ferramentas mecânicas usadas em um dos modos (salvo algumas exceções, como certos usos de perícias e poderes de utility) não recebem a permissão de se infiltrar no outro.
Para alguns isto causa a impressão de um sistema desencontrado — o modo de combate é parametrizado milimetricamente, e cada personagem conta com um vasto menu de habilidades combativas, cada qual amparada por uma mecânica precisa a fim de evitar quaisquer dúvidas ou ambiguidades no momento do uso. Os personagens possuem diferentes tipos de defesa, as armas possuem especificações, diferentes modos de deslocamento (movimento,shift, vôo…) são tratados caso a caso.
Em contraste, o modo narrativo parece uma bagunça — ainda que ele siga a tendência de abstração que permeia o sistema, o detalhismo anal-retentivo do sistema de combate não se faz presente. O suporte mecânico para tal modalidade beira o freeform visto em vários jogos hippie-narrativistas.
Frente a tanta disparidade, como eu sou capaz de dizer que o projeto do sistema é bom? Coerência em relação ao modo narrativo à parte (assunto do tópico seguinte), tal divisão rígida pode ser dita benéfica por evitar interações mecânicas imprevistas e potencialmente disfuncionais. Magias de vôo na 3E são “absolutas” — voa-se da mesma maneira tanto dentro quanto fora de combate. Ocorre que o valor/eficiência da habilidade não pode ser o mesmo em ambas situações, visto que são essencialmente diferentes.
Na 4E, rolam “bizarrices” como teleporte acessível desde o primeiro nível de personagem. Como assim?! Mover matéria viva de A a C sem passar por B deveria ser difícil, coisa de “mago experiente”. Isto, claro, apenas se aceitamos o sistema como descrição da “realidade” fictícia. Em combate, teletransporte de curta distância como um modo exótico
de deslocamento não quebra o jogo — o teleporte possui maior potencial de quebradeira fora de combate, pois permite aos personagens simplesmente ignorar toda a sorte de distância ou obstáculos que deveriam ser um desafio apropriado àquele momento da campanha.
Tal tipo de teleporte “não-porradeiro” ainda existe — na forma dos rituais, que nada mais são que as
magias do “modo narrativo”.
Modo narrativo
Parecem espécies totalmente distintas RPGs como o D&D e os narrativistas como o FATE, PDQ, Houses of the Bloodedou Lady Blackbird. Não devemos esquecer, todavia, que o fato de serem todos RPGs lhes dá mais similaridades que diferenças. Todos definem o personagem via alguma espécie de valor numérico, usam um mecanismo de maior ou menor aleatoriedade para definir resultados, têm como cerne da atividade a resolução de problemas/situações hipotéticos/imaginados, etc. Por serem jogos do mesmo substrato RPGístico, princípios que
funcionam em um podem ser tomados de empréstimo para resolver uma necessidade similar em
outro.
Nos RPGs narrativos, a parte mecânica atua como invólucro que permite que àquele fragmento de narração influenciar o jogo mecanicamente. Nisto nada há de nebuloso. A forma como se resolve a narrativa que ativa a mecânica, por outro lado, é subjetiva. Tal subjetividade é uma característica positiva neste tipo de sistema (feature, not a bug). De acordo com Robin D. Laws em seu HeroQuest 2.0 (não confundam com aquele da caixa baseado emAD&D), pág. 5:
Quem prospera?
É um fato inevitável que todo RPG favorece certos conjuntos de habilidades dos jogadores.
Onde alguns jogos recompensam memorização, um instinto para matemática, e a disposição
para esmiuçar múltiplos livros de regras em busca dos super-poderes mais úteis, HeroQuest
faz a balança pender para o lado da improvisação criativa, acuidade verbal, e uma
familiaridade com as técnicas e estereótipos da ficção popular.
A subjetividade é uma forma de valorizar certas habilidades do jogador — ela não é uma fraqueza, mas algo intencional com o intuito de incentivar improviso e aplicações inusitadas dos conceitos do personagem. Uma vez que isto tenha sido resolvido verbalmente pelos envolvidos, a decisão acordada é revestida por uma casca mecânica (“invocar o
Aspecto”, por exemplo) que fornece à decisão subjetiva uma forma objetiva de interagir com a matemática do sistema.
A abstração mecânica é importante aqui. Quanto mais abstraída, mais geral — mais elementos temáticos distintos a mecânica comporta. Os conflitos do Mouse Guard são mais gerais que o combate do D&D — este pode ser usado para modelar um conflito social, mas não sem uma operação de reinterpretação em larga escala que acaba por originar um novo sub- sistema (o melhor exemplo que conheço são os conflitos sociais que o Alexandre Draco escreveu para o D&D 4E).
Neste tipo de sistema, troca-se detalhismo por flexibilidade e velocidade. Detalhismo é interessante, mas é “caro” — consome não só recurso de páginas no livro, mas também a memória do jogador; se não se quer depender tanto da memória, perde-se em velocidade na consulta dos livros. (Este problema pode ser atenuado via clareza visual do texto, tabelas de fácil acesso e hand outs como cartas ou fichas/contadores — um designer gráfico pode
contribuir muito nesta frente.)
Um sistema altamente abstraído, por outro lado, consome poucos recursos — o de Lady Blackbird, por exemplo, cabe inteiro em metade da ficha de personagem.
Em D&D, cujo foco é o combate, o sistema para isto é extremamente detalhista (o que não está necessariamente
atrelado a “realismo”). Mesmo o D&D 3E — qual a proporção de talentos, habilidades de classe e magias voltadas exclusivamente ou ao menos parcialmente ao combate? O capítulo sobre combate é extenso, e muito do de magia está voltado a considerações táticas como área das magias e hierarquia de efeitos. Na 4E isto não é diferente.
Se se fosse prover o mesmo detalhismo às regras que cobrem o restante das situações concebíveis, teríamos um volume imenso. Como o D&D utiliza a maior parte de sua “verba” com o combate, uma forma econômica de prover suporte à maioria das ações não-combativas que os jogadores podem vir a inventar é com um sistema abstraído.
É isto que faz o skill challenge — prover um suporte mecânico suficientemente abstraído para ser geral. É o combate em seu mais alto grau de abstração — o desafio possui “pontos de vida” (número de sucessos a atingir), e o mesmo se dá com o grupo (o número de testes em que podem falhar). Ocorre que para conseguir “atacar” e erodir tais “pontos de vida”, deve-se fazê-lo via descrição, “no roleplay” — de acordo com a descrição que o jogador faz frente à situação descrita pelo mestre, este mestre pede o teste da perícia que melhor se encaixa. Usa-se a criatividade do jogador, mas é a capacidade do personagem que define a chance de sucesso.
Tudo numa boa?
Nem tudo. O skill challenge pode ser usado como descrito anteriormente se o usuário se utiliza de conhecimento externo ao livro de regras ou teve contato com materiais posteriores, como o Dungeon Master’s Guide 2, que dá uma boa revisada e clarificada na bagaça.
A estrutura do desafio tolhe a criatividade — enquanto o nível do desafio e sua mecânica de complexidade são gerais (e muito úteis), a relação (definida de antemão pelo mestre) de perícias utilizáveis é restritiva. Se o desafio é solucionável com testes de História, Religião e Natureza, mas jogador propõe uma ação adequada ao contexto da ficção que foge do escopo destas perícias? O livro diz para aceitar (Dungeon Master’s Guide, pág. 75), mas com restrições — dificuldade aumentada ou permitir tal teste apenas uma vez.
As próprias descrições das perícias (usos específicos com dificuldades associadas) lhes dotam de certa rigidez. Se limitamos o elemento narrativo do skill challenge, ele se transforma em uma seqüência repetitiva, puramente mecânica, de rolagens. (E se aceitamos a instrução do tópico Informing the Players — DMG, pág. 75 –, em que o mestre pode informar logo de saída as perícias possíveis — em vez de descrever a situação, os personagens agirem via narração e só depois disso a perícia entra como invólucro –, os riscos são grandes.)
O Essentials faz um esforço na questão das perícias — além dos usos “clássicos”, cada perícia possui uma pequena lista com sugestões de “usos improvisados”, que basicamente expandem o escopo das perícias — História não é apenas o conhecimento de fatos históricos, mas qualquer outra capacidade que se pode esperar de um “historiador”.
Suplementos também trazem mecânicas como backgrounds, que dotam o personagem de “lembretes” temáticos que podem modificar as descrições do personagem. Um mercador tem à disposição usos (i.e. possibilidades plausíveis, dentro do tema, de descrição) de Blefar distintos daqueles do arsenal de um membro da nobreza.
Se bem utilizada, a mecânica pode ser usada para modelar situações bastante inusitadas. O Robert Donoghue, que contribuiu com material para o Player’s Handbook 2, disponibilizou em seu blogue um dos desafios de perícia criados para o livro, mas não utilizado na publicação. O desafio trata de melhorar as condições de vida em uma cidade entre aventuras. De acordo com suas ações, os personagens criam melhorias que beneficiam saneamento,
segurança, nível de corrupção, etc.
Usando o paradigma dos challenges, um mestre hábil pode não só modelar situações não mais previstas explicitamente pelas regras (forjar um item, por exemplo) como também incluir o restante do grupo nesta atividade que seria essencialmente solitária na 3E. Outros membros do grupo podem se utilizar de socialização (onde encontrar a melhor matéria-prima?) ou de ladinagem (roubar a matéria-prima), história (“artífices usavam tal liga pelos motivos tal e tal”), e qualquer outra coisa que os envolvidos venham a bolar. Como desafios prevêem a possibilidade de recompensas materiais em caso de sucesso (DMG, pág. 76), temos uma forma de premiar o grupo com o item que foi “forjado” no desafio.
4E é só combate
Mesmo com a necessidade de melhoras (ou não teríamos as tantas clarificações e revisões), os skill challenges — em conjunto com o “padrão” de narração + testes ocasionais — fornecem as ferramentas para resolver a grande maioria das situações externas ao combate.
Em termos de regras, poucos recursos são consumidos — tudo utiliza a mecânica de perícias, com extras ocasionais (backgrounds, themes…). Adicionalmente, o sistema conta com outro sub-sistema de não-combate, focado
majoritariamente nas áreas de “efeitos especiais” e “construir coisas” — os rituais. Quando se vê a lista de poderes de classe do Mago, aquilo deveria se chamar “mago de combate”: todas são magias para prejudicar direta ou indiretamente oponentes. Ele tem algumas cantrips (poderes at-will de nível 1) com efeitos não-porradeiros, mas é detalhe.
Claro que o mago (ou o clérigo, ou o druida, etc.) não perderam suas magias não-violentas — elas estão “escondidas” no sistema de rituais, construído para funcionar no “modo narrativo” de jogo. Todas aquelas magias idiossincráticas e queridas como Tenser’s Floating Disk, Magic Mouth e Comprehend Language continuam ao dispor dos personagens. Ocorre que seu tratamento mecânico é específico para o uso a que se destina. Aqui a nomenclatura também tende ao
“vídeo-gamismo” — em vez dos nomes de escolas da ficção, os rituais são divididos por sua função: Criação, Adivinhação, Exploração, Restauração… Novamente, é o caso de conveniência de uso, não de simulação.
A construção mecânica é funcional. Magias como Endure Elements, em sua forma de ritual na 4E,
apresenta modificações operadas com o uso em mente. Em vez de beneficiar uma criatura apenas, o ritual é capaz de proteger todo o grupo (seguindo a tendência de priorizar a ação coletiva). Buffs rituais costumam ter duração de 24 horas — de modo a evitar a contabilidade dos buffs em minutos.
Ainda que o sistema de regras influencie, de maneira mais ou menos pronunciada, os rumos do jogo, a presença de mais ou menos combate é algo que depende, em última instância, da vontade dos envolvidos (ou do mestre, se os jogadores não têm uma postura ativa). Que magia seu mago conjura com mais freqüência, mísseis mágicos ou disco
flutuante? Na 4E, a razão da freqüência não muda — mais rituais (disco flutuante) se as aventuras envolverem mais exploração/interação que combate, e mais poderes (mísseis mágicos) se lutas forem um componente central da ação. O formato das ferramentas pode ter mudado, mas elas ainda servem aos mesmos propósitos.
(Curiosidade: a adição das Práticas Marciais, “rituais mundanos”. Usam exatamente a mesma mecânica dos rituais, mas possuem efeitos “pé no chão” (para o padrão do D&D, claro) como fingir-se de morto através de controle corporal, forjar uma arma melhorada ou preservar um cadáver com técnicas de taxidermia. O custo em ouro representa materiais (como os fluidos de embalsamar), e quando não há custo material (controle corporal, por exemplo), este se dá com o gasto de um pulso de cura (“custo em determinação”).Interessante, mas não estritamente necessário — rituais estão disponíveis para personagens de qualquer classe, desde adquiram a capacidade, que só é automática para os tipos conjuradores, com o gasto de um talento.)
Quests
Apenas a formalização de algo que também sempre existiu. Como a maioria das aventuras começa mesmo? Com o recebimento de uma missão. O sistema apenas fornece instruções — que absurdo, o livro querer te instruir em vez de te atirar em uma rotina de tentativa e erro! — de como distribuir as recompensas e de como usar as quests.
E as quests aqui não se dão naquele modelo medonho dos MMORPGs, com coisas do tipo “reúna X unidades do item tal” ou “mate Y monstros específicos” — mas se você realmente curte esse tipo de coisa, você encontra no SRD do Pathfinder — ou será que, se feito por eles, se torna, magicamente, mais “interpretativo”?
Se você de fato leu os textos referente às quests, sabe que os tipos de instrução fornecidas têm mais a ver com história do que quests de MMORPG — como confrontar os jogadores com missões de objetivos contraditórios (o que os faz pensar sobre o assunto, em vez de “missão? vamos completar e pegar o pagamento, no questions asked“) e também usar quests pessoais, amarradas a elementos do background do personagem — efetivamente criando um mecanismo eficaz de recompensa por interpretação, muito semelhante às Keys do The Shadow of Yesterday. (“Regra como invólucro”)
Para um RPG que deveria ser um MMO de papel, o suporte que o D&D 4E dá às considerações de história é mais explícito e funcional que o de muito RPG “de verdade”. Compare o formato das quests com a seção sobre premiação de história do Livro do Mestre do D&D 3.5.
Qualidade e quantidade
Poderes de classe são “todos iguais”? Em um dado nível, várias classes podem possuir um poder que causa os mesmos 3[A] de dano. Logo, é seguro afirmar que são iguais — mas apenas em exame superficial. Dois ataques podem causar dano de 3[A] — mas quais os outros efeitos? Esse dano é ditribuído em um burst, desloca o adversário, permite que você se mova, inflige alguma condição adversa, provê alguma vantagem aos aliados que ataquem o mesmo alvo? Se se concentra menos nos números absolutos e mais na maneira com que tais números serão usados, as diferenças são claras.
Os poderes deslocam a diferença entre as classes do campo quantitativo para o qualitativo. Nas versões anteriores do D&D, as classes se diferenciavam por números (pontos de vida, capacidade de ataque) e número de opções. Na 3E, ignorados fatores de Constituição, guerreiro e mago no 1o. nível possuíam 10-4 PVs, respectivamente; em se tratando de combate corporal, a eficácia do mago equivale a 50% da do guerreiro; nem precisamos comentar a disparidade de opções que ambas classes possuem à disposição. Na 4E, houve um esforço para nivelar estas diferenças quantitativas — o guerreiro ainda é mais robusto que o mago, mas a relação é 15-10. Acertar ataques deixou de ser tão importante —
o desenvolvimento do sistema se concentrou no que acontece quando os ataques acertam, e diferencia as classes por este critério.
(É uma diferença que possui similaridades com a mudança do sistema de combate do 3D&T quando passou a usar Força de Ataque e Força de Defesa. Joguei uma longa campanha de Pokémon com o sistema antigo — aquele que, pra acertar ataques, era necessário rolar abaixo do valor de Habilidade. Era doloroso usar pokémons de Habilidade 1 ou mesmo 2 — errava-se a todo o instante. Sob o sistema novo, aqueles pokémons não errariam a maioria dos ataques — a Habilidade, em vez de limitar o acerto, passa a influir no que ocorre na ocasião do acerto — no caso do 3D&T, dano. Parece um arranjo mais interessante — qual é a graça de fazer toda aquela mandinga com os dados apenas para errar totalmente o ataque, o que faz com que sua ação tenha um valor zero, efetivamente perdendo-a?)
Nomenclatura problemática e pontos de vida
Como muito na 4E, a nomenclatura às vezes atrapalha. “Poderes” possui um forte sentido (ainda mais entre o público nerd) de “super-poderes”. Para se chegar a “um guerreiro com esses super-poderes é um Cavaleiro do Zodíaco” é fácil. E se fossem chamados de técnicas? Ou manobras? Ou mesmo o tradicional “habilidades de classe”?
O mesmo se dá com os pulsos de cura — a palavra “cura” costuma ter o efeito de retirar a abstração dos hit points, fazendo com que sejam percebidos como “saúde” ou “vitalidade” — no Brasil, a tradução opta deliberadamente pela confusão, chamando de “pontos de vida” os “pontos de acerto”.
Os healing surges, pelo que se pode intuir por seu funcionamento, são uma espécie de “reserva heróica” abstrata. Por certo ângulo, podemos até vê-los como os ferimentos de fato — como as conseqüências do FATE, que, em conflitos físicos, tomam a forma de ferimentos que “absorvem” stress damage (como com os hit points, se você “zera” o stress,
está fora do conflito). Sob esta lógica, os healing surges seriam “conseqüências retroativas” — um dano “de maior magnitude” (pulsos de cura) que se opta por sofrer para continuar ativo (hit points) no conflito. A diferença é que, em vez de absorver o dano (ou ser “danificado”) no ato do ataque, o pulso permite “editar” posteriormente o dano
sofrido. Tudo na abstração.
Se tomamos os hit points como a abstração que são, o gasto de um pulso de cura não “fecha” ferimentos — o modelo mais próximo é um resgate das reservas de determinação que permite ao personagem agir a despeito do ferimento. O ferimento ainda está lá — ou talvez não esteja, vez que os ferimentos por si já são abstratos no D&D — não é como se fosse um The Riddle of Steel em que se o ferimento é direcionado a uma parte específica do corpo e tem efeitos de acordo com o dito local. Nada nas regras requer que se especifique que aqueles 8 pontos de dano sejam um talho no braço ou algo similarmente concreto — pode ser uma preferência sua, mas o sistema não é obrigado a concordar com suas idiossincrasias.
O healing surge aparece como “determinação” em casos como um skill challenge fracassado, em que os personagens perdem um pulso como conseqüência (e também como custo dos “rituais” marciais).
Alguns poderes de classe (e a perícia Socorro/Heal) parecem estranhas por que “não curam” — elas permitem que o personagem-alvo gaste um pulso. Na ficção, isto é fácil de se ver como… um curativo/paliativo. As bandagens ajudam a manter a coisa limpa e protegida, mas quem vai desempenhar o trabalho é o seu corpo. Associado a coisas assim, servem como mecânica de cadenciamento/recursos — em combate, só se pode usar o second wind (que permite usar um pulso em combate) uma vez no encontro apenas — para outros usos, se depende do colega. A pegadinha é: a ação é dele, mas o recurso de cura é seu. (Ainda que existam entes no sistema que curam “de fato”, i.e. sem usar pulsos do alvo.)
Podemos estabelecer aqui uma regrinha informal: o efeito só fecha ferimentos “magicamente” se restaura hit points sem consumir pulsos do alvo (em geral aqueles de “recupera como se houvesse usado um pulso”). Se ocorreu uso do surge, o ferimento está lá e vai cicatrizar conforme plausível para a história — a recuperação de hit points significa somente que o ferimento não incomoda ou debilita.
Talvez não precisássemos de um recurso tão duro de entender se usássemos uma ferramenta de cadenciamento menos problemática que os hit points, que sempre geram confusão e divergência quando se tenta significá-los na ficção. Em seu blogue, o Rob Donoghue escreveu um texto interessante sobre o assunto, no qual ele hipotetiza
uma possível solução — hit points atuam no acerto do golpe. O personagem teria à disposição ações de defesa do tipointerrupt que permitem gastar qualquer quantidade de seus “hit points” no ato da defesa — se passar por esta defesa, provoca dano de fato (ferimentos mesmo, pros quais ele imagina um sistema quantizado de ferimentos).
O efeito de cadenciamento é o mesmo — ao longo do combate, os hit points se vão erodindo, e, quando zeram, más notícias. Na ficção, contudo, não se abana a questão com “ah, o golpe pegou de raspão” (difícil de engolir em se tratando de espadões à Final Fantasy ou… armas de fogo). A mudança que ocorre é que se o golpe de fato pega de raspão, isto é ocasionado pela “ação defensiva” do personagem na ficção. É um modelo igualmente abstrato, mas que parece mais simples de aceitar.
Se os surges são problemáticos, a culpa não é deles, mas sim da matriz dentro da qual funcionam — os hit points. Mas você está familiarizado com esses, então é mais confortável pôr a culpa no “novato” do que ver os defeitos na “coisa querida”.
Fim da segunda parte
Passadas as considerações de anatomia, abordemos as de ecologia. Mesmo que não se veja nada de errado com o sistema em si, não se pode negar que as condições de seu nascimento estão envoltas em escândalo e sujeira. OGL e GSL, ou “quando nossos parceiros se tornam inimigos” — ou não?
Ainda: estética. Não influencia tanto seu jogo quanto o material textual, mas faz parte do produto e, como meio de expressão, a arte transmite uma mensagem sobre o jogo. Qual seria o idioma imagético “de direito” do D&D?
Madonna, Cyndi Lauper, Lady Gaga — e quem será a… Britney Spears dessa história?
(Se eu deixei escapar algum ponto relevante sobre o sistema, peço desculpas e me proponho a remediar tal omissão acidental.)