RPG é uma clássica experiência de imaginação compartilhada. Não precisa ser filósofo versado em Kant ou Sartre para saber disso. A partir daí, entramos em um dado sobre essa atividade tão amada: ela fere, com violência diversa, nosso direito de pensar sobre uma história. O RPG, em suma, é um jogo não só de dados – é um jogo de vontades briguentas sobre o-que-não existe-mas-que-seria-bacana-se-existisse.
Esse papo tem razão de ser: tenho, em minha mesa de D&D, um jogador insatisfeito. Bobagem, lugar-comum, coisa à toa… mas, de qualquer forma, se é pra pensar isso como mestre-narrador e se é para seguir uma máxima da escola do Tio Nitro de “deixe seus jogadores felizes e empolgados” (teoria a qual me filio sempre que posso), então vamos tentar decompor o problema.
O motivo da insatisfação é o que me inquieta: ao que parece, depois de meses de observação, conversas e desentendimentos rápidos e passageiros, chego a conclusão de que o problema está na necessidade dele (e na minha eventual incapacidade) de dividir a moral da história.
Explicando melhor: sofremos de um caso bastante comum de incompatibilidade ocasional de expectativas narrativas. Fora de contexto parece a descrição de um relacionamento amoroso do tipo gato-e-rato, mas estou certo de que não é esse o caso. De um lado, como narrador, tenho minha própria visão do papel de ideias em cenários de fantasia: deuses, cleros, códigos morais… bem como de tendências: bondade, maldade, neutralidade… Uma visão que tenta, juro, se valer de um dialógo razoavel e de um relativismo bastante vivo. Ainda assim, como pessoa, como alguém que tem sua forma particular de determinar o que é divertido (para mim, claro), tenho meus limites. Não consigo sustentar, de bom grado, por exemplo, campanhas vilanescas. É uma limitação narrativa, estética, moral, psicológica e blábláblá. Sempre entendi Dungeons & Dragons como um jogo de heróis (ou o máximo de anti-heróis). Como narrador, me sinto profundamente feliz ao ver jovens personagens ganhando fama e sucesso ao destroçar banditos e vilões memoráveis.
Outra limitação: não consigo ver D&D como God of War. É simples: divindades me parecem parte necessária das histórias. Elas existem como marcos narrativos excelentes, mas também como uma forma de “regular” a verossimilhança dos mundos de fantasia (da maior parte, acho). De modo que, não consigo narrar bem uma campanha do gênero “morte ao Panteão”. Não me diverte, não me atrai, por mais que eu saiba que daria uma história fantástica e digna de grandes contos.
Eis dois exemplos de discordâncias que tem afastado este bom amigo da mesa. Naturalmente esta é uma leitura minha do debate. Eu ficaria muito feliz de vê-lo aqui, lançando o outro lado da questão. Como não acredito que isso venha logo, ensaio uma reflexão sobre esses problemas.
O papel do narrador é propor uma história divertida, negociando sempre os limites da mesma. Como narrador, entendo que devo me alimentar de boa ficção, de boas ideias do mundo real e de várias doses de mistura de uma coisa e outra. É assim que pensamos história diferentes, regulando verossilhança (na maioria das campanhas) com o fantástico. Não é uma fórmula mágica. É só a minha leitura da atividade.
Mas, se é relativamente fácil tratar de ficção e contar histórias recheadas de impossibilidades divertidas (dragões, magos, druidas, minotauros, labirintos ancestrais) não é fácil cruzar algumas linhas. A nossa flexibilidade acaba esbarrando em tons diversos da expectativa que criamos com as histórias. Quantos narradores já puniram personagens jogadores por má conduta! Matar a velhinha, xingar o velho e poderoso mago, trair os amigos, roubar o Templo… Esse é o dever do narrador? O narrador é a voz e o braço da “ordem” no mundo de ficção? Cabe a ele manter “tudo” no lugar? Se as grandes histórias de fantasia são sobre heróis tentando corrigir algum mal feito ao mundo, não é imediatamente claro que o narrador representa o mundo “ordenado”, esperando que os PJs “completem o serviço”?
Minha primeira reflexão sobre o tópico me diz que, se colocada dessa forma, a postura do narrador soa como autoritária e malvada. Nada que os personagens façam parecer poder escapar da premissa básica do que é “certo”. Sistemas de tendência (desde tempos imemoriais) vem fazendo o papel de garantir este acordo. Seu personagem deve agir dentro do espectro de bondade/neutralidade que o narrador espera. Fora disso ele é parte do enredo, parte daquilo que deve ser combatido pelos PJs para que exista história. Mas além da própria tendência parece existir algo que já incorporamos como mestres: o hábito punitivo que torna o jogo algo meio que carregado de paredes e limites. Se seu personagem mata a jovem filha do guarda – uma criança indefesa – ainda que não exista um sistema de tendências, será que tudo ficará bem? Como seu narrador reagirá?
Do outro lado temos a possibilidade de histórias abertas, como as criadas e pensadas nos tempos velhos do antigo Mundo das Trevas (não conheço tão bem o novo para comparar com destreza) ou como no saudoso mundo de Arkanun/Trevas. Ali, meio que por conta de certo interesse autoral, a lógica sugere histórias sem clichês éticos, com jogadores interpretando personagens amorais ou até imorais e jogando o soturno drama da noite dos monstros. Aqui o narrador ganha o papel de torturador. Ele deve mostrar a maldade profunda no mundo e reavivar a ideia de que ingenuidades não serão perdoadas. O mundo é escuro e maligno e qualquer tentativa de corrigi-lo é tolice. Não há salvação completa para o cenário – talvez apenas pessoal, como no caso de Golgondas e etc. Enfim, a história ensina a sagacidade que existe em ser monstruoso, como um personagem de contos atormentados deve ser.
Será que é fácil empregar o segundo modelo a histórias medievas/fantásticas? Se o grupo de personagens jogadores é o Mal ou o Caos no mundo, saqueando cidades, chantageando pessoas, escravizando donzelas ou trucidando deuses… sobre o que é a história? Sobre suas ambições? Sobre suas vitórias sangrentas? Sobre a sanha de vilões em promover sua vontade? Qual é o papel do narrador neste caso? Servir como uma voz distante que em algum momento punirá o grupo vilânico com o envio de heróis PdMs? Ou o papel do narrador é servir como uma máquina capaz de fornecer desafios de forma neutra? A segunda opção existe, de fato?
Não é fácil dividir algo tão pessoal como o direito de pensar o que se quer. Nesse sentido, uma tarde simples de diversão pode se tornar complicada se você pensa a dinâmica do RPG como uma produção de histórias que você quer lembrar. Será que é por isso que a onda de sistemas mais simples e voltados para mecânicas de tabuleiro tem ressuscitado? Será que entrar nos meandros da ficção e pensar questões morais ficou para trás, como algum tipo de moda perdida dos anos 1990?
Estou curioso para saber o que vocês acham (e tomara que achem alguma coisa…).