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O hóspede

Olá,
Esta semana o Leonel Domingos, grande amigo, leu este meu despretensioso conto e surgiu com a idéia de que eu o postasse aqui.
Peço desculpas antecipadas, pois não sou escritor, este é apenas um hobby que se une ao RPG e a leitura dos verdadeiros escritores.
A idéia surgiu com a perspectiva de um jogo de RPG com cenário contemporâneo (final do século XX e início do XXI), porém permeado do universo fantástico tão presente na fantasia medieval e no folclore geral. Espero que gostem.
Grande Abraço,
Antonio Leandro.
O hóspede

E esta ave estranha e escura fez sorrir minha amargura
Com o solene decoro de seus ares rituais.
“Tens o aspecto tosquiado”, disse eu, “mas de nobre e ousado,
Ó velho corvo emigrado lá das trevas infernais!
Dize-me qual o teu nome lá nas trevas infernais.”
Disse o corvo, “Nunca mais”.

O CORVO (recorte)
(de Edgar Allan Poe)

As cidades são barulhentas. A amálgama de sons tece o mantra que passa despercebido para os homens em seus próprios afazeres. Mesmo os que habitam a madrugada das metrópoles odeiam o silêncio, nas ruas ele é o pior dos presságios, como o prenuncio de morte, um réquiem para os que não pertencem àquele lugar. Camilla e seu parceiro Duncan acabarão descobrindo da pior maneira que não devem confiar no silêncio, “Nunca mais”.
Já passava das duas quanto um GT 500 vermelho encostou junto à sarjeta. O reluzente cavalo prateado contrastava com a escuridão e a sujeira úmida da rua, chovia e podia-se ouvir a cacofonia do rap em algum bar ou boate ali por perto. Os dois ocupantes permaneceram em silêncio por alguns segundos como que esperando ter certeza se estavam no lugar certo.
Dentro do carro Camila passava o dedo rapidamente sobre símbolos estranhos em um pequeno livro de bolso e movimentava os lábios como se tentasse memorizar as palavras. Vestia botas altas, jeans e uma camisa com a estampa do Bob Marley, que julgava trazer-lhe sorte, os cabelos presos sob um lenço branco contrastavam com sua pele morena. Duncan conferiu o tambor de seu revolver e tirou de traz do banco uma bela bainha de cerca de 90 cm de couro escuro, olhou com admiração para o belo cabo prateado da espada e saiu do carro enquanto a colocava em suas costas. Ele era um homem alto, de feições severas e cabeça raspada, usava coturnos, calça militar, camiseta preta e jaqueta. Quando Camila também saltou com sua mochila de lona nas costas, ambos olharam curiosos para o edifício do outro lado da rua.
O hotel Charles V era um três estrelas sem grandes chamarizes, tinha cinco andares e arquitetura simples, com porta giratória e um letreiro de neon azul que podia ser visto desde o final da rua. Duncan viu seu amigo detetive sob a marquise e atravessou a rua seguido pela garota.
? Droga! Vocês demoraram!
? Foi mal, é difícil achar esse buraco e o GPS tá quebrado. – Retrucou Duncan
O detetive Lancaster era um homem troncudo e atarracado, devia ter cerca de um metro e cinqüenta e ostentava com orgulho uma barba castanha bem cuidada. Usava um terno marrom surrado e fumava charutos. Logo que viu Camilla tirou o charuto da boca e se aproximou mostrando seus grandes dentes amarelos num sorriso sacana.
? Como é bruxinha, quando é que você vai aceitar meu convite para um drink?
Camilla não se deu ao trabalho de olhar para baixo, estava ocupada conferindo em voz baixa o conteúdo de sua mochila, porém Duncan respondeu por ela:
? Quando goblins jogarem na NBA. Mas diga aí. O que tá rolando?
? Tá certo, eu tenho paciência. Não sei bem o que houve. Teve uma chamada, 911, mas nós interceptamos.  Escuta aí. – Disse o detetive enquanto tirava um mp3 do bolso e ligava. Eles ouviram uma voz feminina ofegante, misturada com sons de passos rápidos:
“Eles estão mortos, todos eles! Tem alguma coisa aqui, venham logo, por favor, eu posso ouvi-lo mastigando. SALVEM-ME!”
? Eu enganei os policiais, os dois que vieram estão apagados no beco ali atrás e retornei o rádio dizendo que está tudo bem, que era um trote, mas se vocês demorarem pode vir mais alguém ou os manés podem acordar.
Duncan olhou para Camila e foi entrando devagar pela porta giratória.
O salão era pequeno. Tinha um sofá bonito do lado esquerdo, o balcão de madeira do lado direito e um belo tapete entre os dois. A cinco metros da entrada um elevador com porta pantográfica e ao seu lado a escada coberta por um carpete empoeirado.
Duncan ficou de guarda enquanto Camila olhava por trás do balcão. Havia um computador, algumas fichas e uma revista de passatempos. Ela mexeu o mouse e a tela se abriu, havia um programa aberto acusando que o quarto 204 havia sido alugado às 23 horas.
? O último hóspede chegou as onze, acho que devíamos dar uma olhada no quarto 204. – Disse Camila enquanto verificava a fechadura da porta atrás do balcão.
Duncan se adiantou e com o dedo erguido sobre os lábios abriu a porta, mas o silêncio nunca foi seu forte e a porta fez questão de ranger longamente provocando arrepios nos dois.
Um pequeno corredor mal iluminado se estendia por alguns metros até uma porta metálica que estava aberta. Bem cauteloso e com o revolver nas mãos Duncan ia caminhando seguido por Camila, que apertava nervosamente em sua mão esquerda um medalhão em forma de moeda com pequenas contas de obsidiana incrustadas. Ao passarem pela outra porta chegaram ao que parecia ser a cozinha do hotel, um grande salão com mesas, balcões, freezers, fogões e panelas. Estava escuro e havia uma grande panela no fogo, que pelo cheiro cozinhava carne. A garota estalou o interruptor por três vezes consecutivas, mas as luzes não se acenderam.
? Vou iluminar as coisas por aqui. Se prepare – Sussurrou para Duncan e começou a proferir palavras em algum idioma antigo enquanto estendia a mão. Em alguns segundos um brilho tênue surgiu através dela e se moveu flutuante para o centro da sala aumentando de intensidade até que ela fechou a mão e a sala estava iluminada.
Com uma pancada surda Camila foi para o chão, alguma coisa pulou de trás de um balcão e a acertou no rosto, o medalhão rolou enquanto seu companheiro disparava tiros inutilmente contra o ágil oponente que fugiu em disparada pela porta de onde entraram. Por um instante ele hesitou entre seguir a criatura ou ficar, mas lembrou-se que se separar pode não ser uma boa idéia e foi ver o que houve com sua amiga.
A jovem bruxa estava bem, fora um corte nos lábios e um zunido no ouvido, nada de mais.
? Você viu aquilo! – Disse assustada – Viu os dentes e os olhos.
? Para mim pareceu um homem – Disse Duncan enquanto guardava o revolver e pegava sua espada.
? Pode parecer, mas não é humano. Tinha dentes estranhos e olhos brancos. – Camila falava enquanto procurava o medalhão – Achei! Vamos.
Subiram a escada lentamente, ele na frente com a espada em punho e ela atrás com um punhal que tirou de sua mochila. O segundo pavimento era iluminado pela luz que vinha da rua, um hall que devia servir como restaurante do hotel, havia mesas reviradas e poças de sangue sobre o carpete verde. Cinco corpos pelo chão, dois homens e três mulheres. Todos com uniformes do hotel e todos com muitos cortes pelo corpo. Com uma olhada rápida perceberam que não havia o que fazer por eles e em silêncio ela apontou para cima.
Ao chegarem ao corredor dos quartos viram que as portas estavam abertas e havia corpos espalhados pelo corredor. Foram andando lentamente, atentos a qualquer movimento ou barulho. O cheiro ferroso do sangue contrastava com o aroma de lavanda do corredor que devia ter sido limpo pouco tempo antes da tragédia.
Ao passarem pela porta de um dos quartos escutaram um gemido baixinho que parecia uma criança e se olharam incrédulos.
? Está ouvindo? – Disse Duncan entrando devagar no quarto.
? Tenha cuidado, pode ser uma armadilha. – Avisou sua amiga.
O gemido vinha do armário e ambos se aproximaram preparados para o pior. Duncan abriu rapidamente a porta pronto para estocar o que lá estivesse com a espada, mas parou quando viu uma garota de uns 14 anos de camisola branca toda suja de sangue olhando-os assustada com grandes olhos verdes estampados de pavor.
? Está tudo bem. – Falou abaixando a espada constrangido – Não vamos te ferir.
? Você está machucada? – Camilla perguntava sem tirar os olhos da porta, que ostentava curiosamente o numero 204 em belos caracteres de metal – Levante-se, você não deve ficar aí, aquela coisa pode te achar.
A garota levantou com dificuldade, mas não disse nada. Apenas olhava chorosa para os dois.
? Você é hospede do hotel? – Perguntou Duncan – É melhor vir conosco.
A garota permanecia em silêncio em um canto da sala, sem tirar os olhos da espada nas mãos de Duncan.
? Você é muda garota? – Duncan pergunta impaciente e logo depois se envergonha novamente quando a garota move a cabeça positivamente. – Caramba! Hoje é meu dia.
? Não podemos deixá-la aqui. Venha conosco – Duncan segurou a espada com a mão esquerda e tirou o revolver do bolso da jaqueta – Sabe usar isso? Se não, terá que aprender, é só mirar na cabeça e puxar o gatilho.
? Não acho uma boa idéia Duncan, ela é só uma criança.
? Pois é, mas isso pode ser diferença de uma criança viva para uma criança morta.
? Toma. Fique aqui enquanto damos uma olhada no corredor.
Camilla se adiantou para o corredor e deu uma boa olhada, mas então escutou o som indistinguível da arma disparando, sentiu o sangue de seu amigo em suas costas e se virou a tempo de ver ele se estatelando no chão com um enorme buraco na nuca. Em pânico ela ergueu o olhar, incrédula, e viu a criatura de pele cinza e olhos brancos soprando o revolver como em um filme de cowboy, sorrindo para ela com os dentes pontiagudos. Por um longo segundo o único som era o do metal da espada quicando no chão.
A voz gutural saia por entre os lábios nojentos.
? Grite para mim vadiazinha, o medo é um excelente tempero para a carne jovem.
Tomada de pavor ela disparou em fuga pela escada, mas o maldito era rápido e passou por ela ainda no salão do restaurante. Sem saber o que fazer ela apenas olhava enquanto ele sorria.
? Sabe o que gosto nas metrópoles? Eu faço o que quero por aqui e dou no pé. Falam sobre isso um tempo e depois um político qualquer agarra a secretária e todos esquecem. Se fosse numa cidade pequena iam me perseguir até o fim dos tempos: padres, caçadores e tal. Mas aqui o povo tem mais o que fazer, sabe? Então dance comigo: “I kissed a girl and I liked it” – começou a cantarolar enquanto se aproximava.
Camila deu um grito e um lampejo de luz saiu de sua mão, cegando temporariamente seu oponente. Foi por uma fração de segundos, mas foi o suficiente para passar por ele e descer outro andar. Porém, antes que pudesse chegar até a porta ele saltou por sobre ela com a intenção de se interpor a porta giratória. Mas dessa vez a sorte estava do lado dela. A criatura deslizou pelo tapete e se chocou com o vidro, mas ainda assim, bloqueou a saída.
Ela entrou no elevador o mais rápido que pode e fechou a porta pantográfica, não houve tempo para pensar, mas enfiou seu punhal no canto da porta travando-a. Pelo menos por enquanto. Fez isso e começou a recitar um mantra incompreensível, tendo uma mão sobre a outra na posição horizontal. O ódio e o medo embaralhavam sua mente, mas ela se esforçava para se concentrar nas palavras corretamente.
Tomado pela raiva, o monstro se levantou num salto e correu para a porta, mas só teve tempo de chegar até a grade de ferro que protegia Camilla por um instante, e um relâmpago, seguido por um estrondo saiu de suas mãos e atravessou o peito da criatura, explodindo os vidros da porta do hotel e matando-a imediatamente.
Quando Camila deu por si, estava sentada no chão do elevador, com as mãos ardendo e os pelos do braço queimados. Lancaster olhava a criatura no chão com curiosidade e segurava seu charuto entre os dedos.
? Ghoul, sem dúvida. Você teve sorte garota. Esses nojentos são ardilosos.

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