Há bastante tempo, em uma das muitas conversas que antecederam a criação de Gandara, falávamos sobre a criação de mundos medievais e os detalhes necessários para torná-lo atraente. Os diferenciais já empregados com sucesso em outros mundos de fantasia foram aqui e ali eliminados, até que não nos restava mais idéia nenhuma e ficamos com o dilema do que fazer em mãos.
Foi neste momento que a frase que acabou por dar a base para todo o trabalho dali em diante surgiu. “Na verdade, eu queria jogar num cenário com trens”. O silêncio que se seguiu logo foi interrompido por uma verdadeira chuva de possibilidades. Queríamos um cenário fantástico que mantivesse uma origem intrinsecamente tolkeniana, mas onde o vapor houvesse se propagado realmente, sendo a tecnologia mais difundida em todo o mundo.
A base estava formada, mas havia muito o que lapidar. Retiramos então tudo o que considerávamos já trabalhado a exaustão, dando uma nova roupagem aos clichês de sempre. Raças consideradas essenciais foram extintas, a magia se tornou uma arte praticada apenas por bruxos e o panteão foi destruído por uma entidade matadora de deuses. Um mundo pós-apocalipse que definha lentamente, onde os habitantes se agarram a sua última saída… a tecnologia à vapor.
Literalmente, criamos um monstro.
A desigualdade entre as classes movimentada pelo capitalismo feroz imposto pelos anões, principais fornecedores de carvão e minério de ferro de todo o mundo, espalhou a pobreza entre os menos favorecidos. Guerras civis explodiram em vários lugares de todo o mundo, e a raça élfica foi completamente extinta. Conforme o sol do mundo lentamente se consome, as chaminés dos complexos industriais provocam um efeito estufa em todo o globo, retardando o frio glacial da morte. Florestas inteiras são consumidas pelas fornalhas das fábricas, e a sombra do desemprego ganha força.
O crime nunca foi tão propagado, com a máfia despontando soberana com o contrabando de armas, bebidas e drogas. Os pequeninos halflings reduzidos a ratos infestam as vielas escuras das metrópoles, enquanto o êxodo em busca de melhores condições de vida acompanha os leitos dos rios que secam a olhos vistos. Os meio-elfos reuniram-se sob uma única bandeira, e atrás da vingança, iniciaram uma guerra pelo extermínio das raças impuras. Clérigos de Mephisto, o destruidor de deuses, propagam ainda mais violência e mortes enquanto uma corrida armamentista sem precedentes tem inicio.
E é nesse ínterim que surgem os heróis. A última esperança da população contra a vilania que assola cada cidade de Gandara, ainda presos a disputa diária pela sobrevivência do mais forte ou do mais esperto. Divididos entre os próprios interesses e os do mundo em que vivem e lentamente definha, os jogadores terão pela frente as garras de criaturas poderosas e manipuladores em um mundo onde os deuses já não ouvem suas preces.
Tudo parecia bem até esbarrarmos no maior dos poréns que deixou este projeto indo e vindo das gavetas de todos os envolvidos por anos. Que sistema adotar? Após arriscar vários caminhos por fim decidi ser prático. Gandara, o Inferno Movido a Vapor é basicamente um mundo medieval fantástico. As raças são as mesmas que você encontra em qualquer sistema voltado para esta temática. Elfos, anões, orcs… inclusive, o fato deles serem familiares transforma o desafio de inserí-los em uma realidade cruelmente nova para eles ainda mais interessante. Assim, você que se interessou pela idéia já pode jogar em Gandara na próxima seção sem grande dificuldade.
Livre da pressão deste mundo capitalista, posso fazer as coisas para mim mesmo, de acordo com minhas preferências. Aqui, no dot20, o Inferno será adaptado para o sistema 3D&T Alpha.
Alpha é?
Sim. O sistema 3D&T Alpha atingiu – ao meu ver – o ponto de equilíbrio ao que se propõe, tornando-se a encarnação mais coesa dentre todas as versões até então apresentadas. Dentre as várias mudanças menores – especialmente a redução do custo de vantagens únicas ou a alteração do preço da compra de algumas vantagens – o fator de maior destaque foi a extinção do sistema de magia por Focus (uma herança do sistema Daemon que por sua vez remonta ao Ars Mágica), dividindo-o em três Escolas que funcionam como Vantagens. Branca, Negra e Elemental.
Por dois pontos cada, você pode usar magia de várias formas. Magos, em geral, são Elementais. Clérigos, adeptos da Escola Branca. Necromantes e demais personagens ligados às trevas, a Escola Negra. Arcanos – vantagem que possibilita o uso de todas as escolas – continua custando quatro pontos assim como o era nas versões anteriores, e confere a mesma economia de dois pontos.
Porém, em minha opinião nem um pouco tendenciosa, a melhor alteração veio com a mudança mecânica da criação dos Kits de Personagem, que renderam no passado os famosos Manuais do Aventureiro. A versão para Alpha ainda não saiu, porém, vários kits foram disponibilizados através do Fórum da Jambo, e tantos outros acabaram sendo criados pelos usuários ao longo destes dois anos de nova casa. Falarei mais deles adiante.
Esta breve introdução serve para deixar um leitor desavisado à par do que é o Alpha para o 3D&T. Uma idéia renovada em relação ao anterior ainda que mantendo uma grande quantidade de material intocado, tornando oficial regras que foram vistas há alguns anos numa Dragão Brasil (na época, a chamada Magia Extrema) e tantas outras que arejaram a forma como os personagens são criados. Ele é relativamente superior e mais dinâmico do que as versões anteriores, pecando, ainda, apenas pela falta de suplementos oficiais (mesmo que teoricamente apenas o livro básico baste). Por isto, talvez, sinto um pouco de desconforto ao sair mudando tudo para adaptar um cenário ao sistema. Uma prática relativamente comum, porém.
Em geral, adaptações atacam num primeiro round a tabela; exagerada, convenhamos; de atributos básicos do sistema cânone. Alguém erguer dez toneladas apenas com as mãos é realmente um exagero à primeira vista. Compreensível então a atitude de remanejar esta pontuação. Eu mesmo já o fiz algumas vezes, em adaptações anteriores. Declarava que, naquele mundo específico, a F5 representava apenas o poder necessário para erguer, por exemplo, duzentos quilos, uma força incrível. F0 representava um inválido. F1, uma criança… algo nessa linha, aposto que vocês também já viram algo assim.
Novamente, isso me causa certo desconforto no Alpha. Por que para ele, a idéia norteadora é a possibilidade de adaptar facilmente games e animes, sua área de atuação. Quem mais pensou em Dragon Ball Z ao ver aquele Atributo 05 no livro, levante a mão e ajude Goku à criar a Genki Dama. Mudar isto é ir contra a base do sistema, sua mecânica mais fundamental, que são os atributos.
Além disso, baixar simplesmente o valor de prêmio por cada um dos pontos não basta. Além de abrir a possibilidade de que alguma coisa naquele mundo possui F15, ou F30… ela não pode deixar de lembrar que o custo para Atributos maiores cresce a partir de Valor 06. Numa bola de neve, cada nova alteração exige outra para enfim o todo voltar ao equilíbrio.
Atributos altíssimos, aliás, são interessantes na teoria, mas em se tratando de personagens, bate de frente a dois problemas observáveis facilmente para quem já jogou com números desta monta:
1 – o 3D&T não funciona direito após Atributo 05. Um sujeito com F6 tem força suficiente para erguer o dobro de alguém com F5 mas provoca apenas um único ponto de dano a mais, dois pontos no caso de um crítico. Uma diferença irrisória que poderia ser conquistada com algum bônus menor (como uma arma mágica), mas que custaram pesados dois pontos;
2 – o jogo se torna previsível e perde boa parte de sua graça. Após Atributo 5, todos os testes se tornam extremamente corriqueiros. Falhas são raras, mesmo com redutores pesados e os personagens conseguem fazer praticamente tudo o que desejam. Além disso, o fator “sorte” deixa de influenciar os resultados da mesma maneira.
Fato: as mais divertidas e emocionantes aventuras usando o sistema 3D&T acontecem com personagens com pontuação inferior a 10 pontos, com atributos restritos a no máximo 3 pontos. Isso é de tal forma verdadeiro que o próprio Manual aconselha aos jogadores encerrar sua campanha ao atingirem 12 Pontos.
Algo que o Alpha fez e que me deixou um pouco confuso por aparentemente ir na contramão disto foi a eliminação da regra que restringia o valor de um atributo por “nível” representado pelas Pontuações Iniciais no livro. De acordo com o autor, Marcelo Cassaro, ninguém seguia essa regra. Bem, o Mestre tem o direito de não aplicar suas regras em todo o sistema. Porém, na minha opinião, ela não é apenas válida como se torna uma ferramenta útil para adaptações. É com ela e com o aspecto da mecânica dos Kits que irei trabalhar daqui em diante.
Dois Pesos, Duas Medidas
Um dos problemas estruturais do sistema 3D&T é que ele trabalha com situações semelhantes de formas diferentes. Era assim anteriormente em relação às regras aplicadas a todos os jogadores (atributos e vantagens) e aos magos (que precisavam também adquirir pontos de Focus) por exemplo. No passado isso era comum em vários sistemas, criando mais confusão do que soluções.
Como disse anteriormente, a transformação dos Focus em Vantagens unificou ao menos esse aspecto. Agora todos os personagens são criados quase da mesma forma. Compre Atributos, Vantagens e Perícias e saia jogando. Porém, o que aconteceu após o lançamento do Alpha e a chegada eminente do Manual do Aventureiro criou um segundo ponto de conflito no sistema que antes não existia: Vantagens Únicas e Kits.
A forma de se criar Kits (como são chamadas as classes básicas e de prestígio) nas versões anteriores era idêntica a forma de se criar Vantagens Únicas (as raças). Basicamente você pagava por um pacote de pontos pré-determinados e jogava na ficha. A matemática era simples: somava-se os bônus de atributos, as vantagens, diminuindo qualquer desvantagem e chegando na pontuação final, em geral, algo na faixa de dois a cinco pontos.
Mas isso mudou. Os kits agora possuem exigências que se cumpridas premiam o personagem com alguns poderes únicos de seu nicho de atuação. Guerreiros ganham bônus para resitir a dano ou atrair monstros, clérigos curam mais e melhor, ladinos tornam-se ainda mais letais em ataques furtivos… logo de cara, isso cria uma nova possibilidade anteriormente impossível: todos os kits possuem o mesmo preço de compra. Aliás, se cumpridas as exigências, eles não possuem custo algum. Apesar de, claro, alguns poderes serem mais combativos do que outros, em geral todos os poderes de kits custariam, se transformados em vantagens, um único ponto.
Como esta foi uma mudança posterior, as raças ainda são pensadas como eram nas versões anteriores. E isso causa uma série de probleminhas mecânicos, especialmente se considerarmos Vantagens Únicas que custem tanto quanto a pontuação inicial dos personagens. Um personagem de cinco pontos raramente poderá ser um Fantasma, Múmia ou Meio-Dragão e sobreviver as primeiras seções para contar a história.
Chegamos então ao ponto chave que será a principal mudança nesta adaptação do Sistema Alpha: as Vantagens Únicas. Vou trabalhar com elas apenas, deixando todo o restante do sistema relativamente intocado. Aliás, ao invés de matutar maneiras de desvalorizar o atributo Habilidade que é o vilão-mor do Sistema, irei ministrar uma breve aula sobre o uso de Perícias que fará, espero, algum sentido. Porém, inicialmente, trabalharei as Raças.
1 – As Vantagens Únicas irão restringir o número de pontos máximos e mínimos de Atributos daquela raça dentro da realidade do cenário. F5 continua erguendo Dez Toneladas. Porém, nenhuma raça mortal alcança naturalmente F5 em Gandara.
2 – As Vantagens Únicas não terão custo, trazendo exigências de Vantagens ou Perícias assim como Kits para serem adquiridas e garantindo alguns poderes únicos aos seus possuidores.
3 – Haverá Vantagens possibilitando que os jogadores ultrapassem temporariamente seus próprios limites de Atributos gastando Pontos de Magia.
E isto vai funcionar? Eu espero que sim. Sugestões e soluções por parte dos leitores também serão úteis para construirmos algo bacana juntos. Até a próxima. E (novamente) bem vindos ao Inferno – Movido a Vapor.