Ladino
Grindell era uma cidade de porte médio, para os padrões de Arton. Tendo nascido e crescido à beira do lago Semele, uma de suas principais atividades econômicas naturalmente era a pesca, mas esta atividade acabou não se tornando a base econômica da cidade. Apesar de a produtividade do lago ter um potencial pelo menos três vezes superior ao efetivamente praticado pela comunidade, todas as atividades envolvendo o lago eram controladas meticulosamente por uma organização chamada Guilda do Lago, legalmente encarregada de cobrar taxas e impostos em nome do Regente da cidade sobre toda e qualquer atividade praticável ali (inclusive natação).
O clima, temperado com invernos bastante frios devido à proximidade das Montanhas Uivantes, limitou a produtividade agrícola da cidade, mas até que os locais deram-se muito bem com a criação de cabras e ovelhas. A lã e o queijo locais, se não podem ser taxados como os melhores de toda Arton, estão ainda em ótima conta nos mercados mais importantes, sendo os lucros dessas atividades limitados apenas pela capacidade produtiva dos criadores locais.
A existência de fontes de água naturalmente aquecidas na parte mais afastada do lago deu origem também a outra atividade lucrativa, a construção e exploração das famosas termas Acqua Calidæ. As propriedades curativas, terapêuticas, e por que não dizer agradáveis das águas dali trazem todos os anos não poucos visitantes à cidade.
Mas ainda assim, todas essas atividades assumiam caráter secundário ante as duas que tornaram-se na marca registrada de Grindell, aquelas em que todo artoniano pensava quando ouvia o nome da cidade: a produção de vinhos, muito favorecida por ali ser o lar de Vianny, a deusa menor do vinho, e principal sede seu culto religioso, e também pela incomum vocação dos artesãos locais de produzirem intrincados mecanismos de utilidades variadas (e às vezes duvidosas), as famosas engenhocas grindelienses. Para não terem seus trabalhos confundidos com “coisa de goblin”, os engenhoqueiros locais dão às suas obras um acabamento primoroso, até mesmo artístico, o que pode encarecer bastante o produto final.
Doze anos atrás surgiu na cidade uma construção que não tinha nada a ver com nenhuma dessas atividades. Quando o lendário Mago D’Zilla, acompanhado pelo venerável ancião conhecido apenas como Velho Mestre chegaram, adquiriram um terreno um pouco afastado e erigiram ali a mais alta e impressionante estrutura de Grindell, a Torre D’Zilla, onde se estabeleceram e fundaram uma escola para ensinar a poucos escolhidos a “tecnomagia”, peculiar (e muito mal-explicada) forma de magia exercida pelo Conjurador Sem Rosto.
O Liceu TecnoMágico contava então apenas uma dúzia de alunos, em variados estágios de seu aprendizado. Algumas das aulas eram frequentadas por todos eles, outras específicas para certos grupos ou até mesmo para apenas um deles. Naquele dia, todos eles mal fingiam interesse numa aula de Estruturas dos Cristais enquanto aguardavam com pouca paciência pelo final do período letivo matinal (e principalmente pela chegada do almoço).
— Então, classe… – perguntou o Velho Mestre a seus alunos, já pela terceira vez. – Será que ninguém pode me dizer o que obtemos quando canalizamos magias de ar através de cristais de estrutura harmonizada?
— M-música? – disse tímida Hoshi-Ao de seu lugar no fundo da sala.
— Muito bem, Hoshi! Restabeleceu minha esperança nesta turma! Exatamente, classe, a conformação molecular desses cristais…
— Não, Velho Mestre… – continuou a garota – …tem alguém tocando música no pátio interno!
Andando até a janela, o Velho Mestre ouviu melhor e confirmou a observação de sua aluna. Realmente, apesar de todas as seguranças que estabelecera na Torre D´Zilla, a sede de seu Liceu TecnoMágico, alguém a invadira e estava acintosamente fazendo alarde disso. Uma observação mais atenta revelou a identidade do intruso, e o Velho Mestre fez um muxoxo alto de desagrado. Conhecia aquele bardo, lutara ao seu lado no passado, e esperava nunca mais vê-lo outra vez. Evidentemente, suas esperanças foram debalde. Lá embaixo, seu inesperado visitante cantava enquanto tocava uma estranha harpa em forma de machado.
Plantações devastadas até o chão!
Por todo lado, horror e destruição!
E de uma praga o povo passa… a morrer!
Se o Mal espreita seu burgo, lar ou vila!
Chame já: Mago D´Zilla, Mago D´Zilla!
E os vilões e monstros terão o merecido triste fim!
Mago D´Zilla, Mago D´Zilla… MAAGOO D´ZIILLAAA!!
— Queiram anotar, por favor: – disse o Velho Mestre à classe, ainda com o olhar crítico fixo sobre o intruso cantante. – …para a próxima aula, quero uma pesquisa sobre as propriedades dos cristais de estrutura harmonizada, relativamente a cada Caminho da Magia. Turma dispensada.
Assim que seus alunos deixaram a sala, o Velho Mestre invocou sua magia sobre si mesmo e tornou-se um holograma, uma criatura de pura luz. Nessa forma atravessou a ampla janela para o pátio interno e postou-se ao lado do bardo, que parou de tocar assim que o viu chegando.
— Aê, Tio Véio! – disse o bardo, aparentemente à guisa de saudação. – Já virou fantasma? Quando foi que esticou as canelas?
— Não se faça de sonso, Rorm Rodrik! – ralhou Velho Mestre, retornando ao normal. – Não para mim, isso não vai adiantar-lhe de nada! O que faz em minha escola?
— Seguinte, Tio Véio: O Ezram está convocando toda a velha turma, e como eu soube que você morava aqui, sugeri Grindell como ponto de encontro e vim pessoalmente chamar você.
— Ao que me lembre, eu fui considerado um peso para o grupo, bardo! Por que se dar ao trabalho de incomodar o… como é que você me chamava mesmo… “Pré-falecido”?
— Qual é, Tio Véio! Todos sabemos que você é clone do Mago D´Zilla verdadeiro. Nós vimos ele e o Karadimu saltarem por aquela passagem dimensional e sumirem para algum lugar sabem os deuses onde! E de repente outro Mago D´Zilla aparece aqui em Grindell, e dando aulinha? Não preciso de professor para somar dois mais dois! Você deu um jeito de recuperar ao menos parte do seu poder, e vamos precisar de cada fagulha de poder que for possível reunir!
— Saia de minha escola, bardo! E não se atreva a entrar aqui sem convite outra vez!
— Antes você tem que me ouvir…
— O assunto não está aberto a debates! SAIA!!
Um gesto do Velho Mestre e Rorm Rodrik viu apenas um relampejo momentâneo antes de perceber-se diante dos portais do Liceu TecnoMágico, no lado de fora da escola que levara a manhã toda para invadir. Instintivamente ajeitou Gueeta, seu estranho instrumento musical, e plangeu nele um acorde vibrante à guisa de interjeição admirada.
— Magia de Teleporte, hein! – murmurou o bardo, sorrindo. – Tá podendo, o Tio Véio, tá podendo!!
Dedilhando seu instrumento, caminhou tranquilamente pelas ruas até a Praça Central, onde cantou o dia todo sobre as aventuras do Mago D´Zilla em Arton.