O Caçador de Apóstolos é o mais recente trabalho de Leonel Caldela, cuja prosa vocês viram amadurecer desde O Inimigo do Mundo, passando pel’O Crânio e o Corvo e O Terceiro Deus, romances estes que compõem a chamada Trilogia da Tormenta. Diferentemente dos trabalhos anteriores, este se passa em um cenário da própria autoria de Caldela, bem distinto de Arton — se neste tínhamos uma overdose de efeitos pirotécnicos e a violação de praticamente qualquer lei da Física conhecida, n’O Caçador de Apóstolos a magia é sutil e misteriosa. No lugar de uma legião de deuses propensos a interferir diretamente nas picuinhas dos mortais, um deus único e distante, Urag, de cuja existência somos convidados a duvidar constantemente, ora com o que parecem ser provas de sua existência, ora com refutações convincentes. Se Tormenta é dita como “medieval”, mesmo não o sendo, aqui podemos nos abster do uso das aspas, visto que, ainda que se trate de fantasia, o mundo possui traços genuinamente medievais — a estrutura feudal, a Igreja culturalmente dominante, a sujeira e a ignorância onipresentes.
Vale um aviso, pois é bom que tudo esteja às claras — esta resenha foi escrita com base na leitura de uma cópia gentilmente cedida pela Editora Jambô para este fim. Isto certamente afetou minha leitura, mais cuidadosa, visto que eu teria de escrever esta resenha. O que não afeta, porém, minha impressões a respeito do livro. Sem falar que temos um “truque” aqui no .20 — a designação das review copies é definida de acordo com o perfil do colunista, logo, são grandes as chances de que ele vai curtir a leitura do que vai resenhar. Não espere que títulos d20 me sejam encaminhados para o mesmo fim. Mas para ficarmos com a consciência plenamente limpa, está agendada (assim que minhas finanças se, hã, estabilizarem) a compra de um exemplar a ser doado para a biblioteca de um colégio estadual próximo de meu domicílio. Assim, é como se eu efetivamente tivesse pago pelo exemplar. Agora prossigamos.
Uma característica marcante em O Caçador de Apóstolos é o narrador, que não é do tipo onisciente e impessoal, mas, sim, um personagem diretamente envolvido na ação, Iago, o escritor que aqueles que leram a prévia na Dragonslayer 29 devem conhecer. Um dramaturgo com raízes no teatro itinerante, acaba por despertar o interesse da nobreza e depois o da Igreja, com que acaba rompendo, e por isso o vemos na situação de fugitivo no primeiro capítulo. Este trânsito pelas mais diferentes camadas sociais é relevante, visto que ele há de narrar acontecimentos que se passam em suas esferas. Claro que, por estar envolvido nos acontecimentos, nosso narrador não é plenamente confiável — os leitores que cursaram pré-vestibular devem estar familiarizados com este convite à desconfiança, de quando ouviram sobre o personagem Bentinho, do Dom Casmurro de Machado de Assis: “ele está envolvido nos fatos que relata, logo, pode torcê-los por interesse pessoal, cuidado!”
Para o benefício de Iago, eu diria se tratar de um narrador insincero bastante sincero. Se embeleza a descrição de algum fato, o que parece ser uma crise de consciência o impele a confessar o que acaba de fazer. Se relata acontecimentos que não experimentou diretamente, também faz saber: “Agora volto a ser mentiroso. Não vi boa parte do que aconteceu, também não me contaram. Vi os resultados e criei o resto, pura especulação. (…)” Como disse, um mentiroso bastante sincero. (Ou seria um ardil para nos ganhar a confiança?)
A outra característica que me chamou a atenção foi a construção do mundo e, principalmente, sua apresentação. Nos romances do Tormenta, o Leonel trabalhou com um cenário autorado por terceiros. Certo, ele criou diversos elementos (alguns dos mais interessantes do cenário, minha opinião), mas, de maneira geral, em termos de ambientação, se limitou a preencher lacunas e injetar detalhamento na criação de outrem. Aqui a criação é integral. Quando li a trilogia, eu já conhecia Arton de longa data, logo, possuía noções pré-concebidas e pouco era realmente novo — era mais questão de esperar quando este personagem ou aquele local dariam as caras na história. Com O Caçador de Apóstolos, eu era efetivamente virgem em relação ao cenário, e isto fez diferença.
Ao contrário do que muitos se sentem tentados a fazer, utilizando-se de uma enorme introdução para explicar o cenário (e, quando o ranço é maior, sua longa História e dinastias de reis…) e “preparar o terreno”, o Leonel nos apresenta o cenário aos poucos, através dos sentidos dos personagens. Inicialmente, sabemos apenas do ambiente que os cerca imediatamente, bem como a menção de se tratar de uma localidade insular. Implícito em elementos da narrativa, sabemos que é algo bem semelhante à Europa na Idade Média e que possui, como conseqüência, uma Igreja de religião monoteísta cultural e temporalmente dominante, afeita a queimar hereges e sustentar a veracidade de seus dogmas a qualquer custo. À medida que a trama progride, novos elementos se revelam aos poucos, como um passado muito diferente da conjuntura atual (mas do qual muito pouco os personagens conhecem), bem como os elementos sobrenaturais propriamente ditos, usados na trama com parcimônia e herdados do dito passado perdido, logo, pouco compreendidos, raros e, acima de tudo, misteriosos.
É difícil falar sobre a trama e seus personagens sem adiantar informação, o chamado spoiler, que, como o nome já diz, é um “estragador.” Iago já foi apresentado, é o narrador dramaturgo. Além dele, temos o personagem central, Atreu, que, de acordo com uma profecia, é o Guerreiro do Povo feito Soldado do Diabo. Benedict, ex-irmão de armas de Atreu e agora seu nêmesis, é, segundo a mesma profecia, o Cavaleiro Imaculado. Jocasta, outra personagem protagonista, é uma jovem de um vilarejo muito pobre e isolado, inteligente, mais culta do que parece ser plausivelmente possível em suas condições e que, aparentemente, possui uma conexão com o divino. Uma palavra de cautela: um dos temas recorrentes no romance é que nem tudo é aquilo que parece.
Quanto à trama, eu adoria discorrer sobre ela em detalhe, mas, por razões que já expus, só será possível algo em linhas muito, mas muito gerais. A primeira parte, O diabo está morto, tem como cerne uma rebelião contra a Igreja, encabeçada por Atreu. Aqui nos são apresentados os demais protagonistas, de ambos os lados do embate. Os generais rebeldes, além de Atreu, são D’Agostini, um marujo piratesco; Penélope, uma moça muito durona e cujos trajes de batalha, um tanto sumários, são tratados da forma mais realista que já vi, possivelmente uma subversão do triste e cansado clichê do chainmail bikini e armaduras “bundefora”; e Pugna Marco Segundo, de longe o personagem mais estranho do romance (opinião do colunista: leia-se legal), trajando uma decididamente anacrônica casaca com dragonas. A estes junta-se o deplorável Oberon, sobre o qual nada de positivo pode ser dito — sua caracterização, todavia, é muito eficiente em retratar a ignorância e falta de escrúpulos dominantes. Do lado da Igreja, temos Ganimedes, arqueiro extraordinário cujo fervor religioso beira a beatice, o já citado Benedict, e os líderes da Igreja de Urag, os cardeais.
A segunda parte, O Retrato do guerreiro quando jovem, nos conta a história de Atreu, e possui algumas funções: expande nosso conhecimento sobre o cenário, traz luz sobre as relações entre os personagens, e nos mostra até que ponto vão as maquinações e a corrupção da Igreja. Gente, trata-se de uma religião muito semelhante à cristã na Idade Média — alguém tinha dúvidas de que ela seria corrupta até não mais poder? A terceira parte, cujo título já entregaria parte da história e, portanto, é omitido, retoma os acontecimentos da primeira parte e os avança até um gancho para o segundo e último volume da série.
Pessoas muito religiosas podem se sentir desconfortáveis com o romance. Aqui a religião é abordada como o que é, um instrumento de dominação ideológica e manutenção da ignorância — da qual necessita para manter seus dogmas a salvo de questionamento. Além do conhecimento versus ignorância, há também a abordagem de História oficial versus fatos — até que ponto a classe dominante os distorce e fabrica de maneira a manter seu poder?
Como já visto nos outros trabalho do autor, temos uma forte presença de Escatologia & Sadismo(TM). Não qualquer esforço, o menor sequer, de “proteger” o leitor da violência, do sexo e elementos, bem, exóticos, capazes de revirar o estômago de alguns — eles nos são apresentados em descrições brutas e vívidas. A ambientação medieval não é romantizada, exaltada e sanitizada, como ocorre na maior parte da fantasia que, de medieval, só tem mesmo o nome. Aqui você consegue sentir o cheiro da imundície, das latrinas a céu aberto e dos personagens que não têm nosso hábito brasileiro de tomar banho diariamente. O sexo é ou tomado à força ou usado como alavanca social — e, em ambas as categorias, é igualmente sujo. Viagens de dias, semanas até, sobre o desconfortável lombo do cavalo e sob o sol escaldante são estafantes, entediantes, e tornadas suportáveis graças à ingesta de álcool e drogas. O poder corrompe, e autoridades são tentadas a dele abusar — e sucumbem. Se ao se deparar com o termo “medieval” você espera aquele “saudosismo” tolkeniano capenga, o ranço de um passado inventado, totalmente fake, em que as coisas eram supostamente “mais puras” e “melhores”, suas expectativas serão magistralmente frustradas.
E temos também violência de combate. Muita. Isso era algo que temia, pois fui um que, nos romances de Tormenta, ou lia por cima ou simplesmente pulava aquelas descrições de combate longas e gratuitas. Aqui eu tive uma surpresa, pois, na maior parte dos casos, me vi interessado e curioso em relação ao desfecho. Desprovidos de pirotecnias arcanas e espadas com foguinho, os personagens se valem de táticas mais realistas como paredes de escudos (elas figuram em boa quantidade), saraivadas de flechas, etc. Nos combates entre exércitos, tais descrições táticas os dotam de verossimilhança. É interessante vermos também as impressões de personagens individuais em meio à batalha campal, sobretudo daqueles inexperientes no ofício, com cujas reações nós, filhos do século XX (e, portanto, também inexperientes nesses assuntos — jogos de videogame e D&D não contam como experiência real), podemos mais facilmente nos identificar.
Nas lutas entre indivíduos, todavia, por vezes eu senti aquela pontinha de tédio. Pode ser dito que as descrições detalhadas dos golpes (e os ferimentos que produzem) emprestam cor à narrativa, mas, na maior parte, me parece gratuito. Existem outras descrições no livro que são muito melhores em dar cor e transmitir a atmosfera dos acontecimentos e nos elucidar sobre o mundo que desconhecemos. Já as coreografias golpe-a-golpe parecem ter a função de simplesmente prolongar o combate. Perto do final do livro, um combate entre Atreu e outro personagem que não posso revelar é o que mais me parece sofrer desse mal. O combate se prolonga em excesso, e o exagero nos ferimentos que um dos envolvidos sofre fez ruir um pouco minha suspensão de descrença. (Este é um livro com personagens humanos, e não personagens de D&D com centenas de Pontos de Vida.)
Nos momentos finais, também, há uma cena com magia um pouco escandalosa e pirotécnica, o que me pareceu um pouco dissonante da mais discreta* do restante do livro.
*Spoiler, por sua conta e risco: (Existem no livro ocasiões de magia que gera efeitos espantosos, mas estes estão ou ligados a artefatos mágicos, ou são decididamente estranhos — vide new weird, no próximo parágrafo –, logo, a pirotecnia D&Dêica parece deslocada.)
Vale mencionar aqui algo que alguns já notaram nos trabalhos prévios do Caldela — uma inclinação para o new weird. Esta estética de fantasia é mais conhecida pelos trabalhos de China Miéville, como os romances puxados para o steampunk ambientados em Bas-lag (Perdido Street Station, The Scar, Iron Council) e, mais recentemente, Kraken, ambientado em Londres. A magia e o sobrenatural perdem aquele semblante mais D&Dêico de explosões de chamas e outros shows de luzes e se tornam mais, como o nome implica, estranhos. Em Bas-lag, geomantes lambem a terra para fazer suas adivinhações e, em Iron Council, um trem que passa pela Mancha Cacotópica (uma espécie de área mágica radioativa) tem um de seus vagões transformado em uma célula gigante (os tripulantes se transmutam em núcleos e outras organelas); em Kraken, adivinhos especializados na cidade de Londres abrem o próprio chão para consultar as vísceras literais da capital inglesa, e por aí vai. Em suma, a magia é bem pouco convencional, e este desapego às convenções é algo com que você vai se deparar quando a magia em O Caçador de Apóstolos começar a ser revelada.
(Prometo que é a última vez, mas spoiler de novo: você está careca de ouvir falar sobre necromancia, evocação, magia rúnica… Mas eu duvido que já tenha ouvido falar de Magia Conceitual.)
A anal-retentividade me força a apontar uma incongruência. Em uma festa da nobreza, onde as donzelas aristocráticas são descritas como usando saias com amplas armações, que só surgiram no século XVIII. Sim, existem outros anacronismos de vestuário, como a casaca do Pugna que já citei, mas tal ocorrência acaba por ter uma ótima explicação (surpreendente, aliás). Já as tais saias são um anacronismo gratuito, e um pouco fora de lugar. Na Idade Média, com sua religião ultra-dominante na cultura, a silhueta era esquálida, vertical — uma clara negação dos atributos sensuais do corpo. Já as amplas saias à Maria Antonieta (com espartilhos), pelo contrário, são o fetiche por cintura fina e quadris ultra-largos levado às últimas conseqüências do exagero. Me pareceu incongruente ver o uso de uma silhueta tão sensualizada quando uma alusiva à negação do corpo seria tão mais consonante com a cultura retratada no cenário.
Concluindo: eu recomendo fortemente a leitura d’O Caçador de Apóstolos. A Idade Média é o período que menos me interessa na História, e meu desgosto por suas características marcantes é declarado, e, mesmo assim, o romance é suficientemente envolvente para passar por cima de meus preconceitos e me deixar realmente interessado na narrativa. Os personagens fogem do clichê do “grupo de aventureiros”, e em vez de simplesmente representarem estereótipos/classes de personagem, têm o aspecto de pessoas críveis, com motivações reforçadas por suas histórias de vida. Históricos estes que não se enveredam pelo caminho do information dump gratuito, mas, em vez disso, são expostos aos poucos, nos momentos em que tal informação é útil para nosso entendimento. O livro, ainda, troca a fantasia meramente escapista pela inclusão de temas que convidam à reflexão, sem precisar forçar desvios na trama para fazê-lo; traz uma mensagem eticamente positiva, mas sem ser panfletário ou piegas.
O Caçador de Apóstolos nos mostra que temas maduros são mais poderosos que qualquer dragão ancião ou arquimago metralhador de bolas de fogo, e que humanos bem trabalhados fazem um trabalho melhor que uma centena de raças não-humanas meramente cosméticas — e que isto pode casar muito bem com ação e uma leitura divertida.
O Caçador de Apóstolos.
416 páginas em P&B, capa mole.
R$ 55,00 ou R$ 53,90 com frete grátis pela Loja Jambô.