Transhumanismo é um tema bastante abordado na ficção científica da atualidade. Quem não acompanha o gênero pode ter aquela visão de que ficção científica lida quase que exclusivamente com naves espaciais, alienígenas, armas laser, carros voadores e o caralho a quatro. Isso é passado, é ficção científica velha. Não que seja ruim — seria blasfêmia dizer que Isaac Asimov é ruim, por exemplo –, mas o tempo disso já passou.
No RPG, títulos que lidam com este paradigma mais atual de ficção científica são o Eclipse Phase e o GURPS Transhuman Space. Tem viagem espacial, mas o foco é outro. É o transhumanismo. Uma explicação bem resumida — transhumanismo é romper com os limites da biologia humana, é a modificação do corpo que culmina em algo que provavelmente nos parece pouco humano. É livrar-se dos ditames da evolução. Convenhamos, o tempo de ação da evolução das espécies é lento, muito lento. O nosso uso de ferramentas e criação de cultura, na escala de tempo da evolução, é muito recente. Modificamos nosso ambiente de forma muito rápida, e, como resultado, estamos presos a corpos que são francamente inadequados à conjuntura presente.
Evoluímos para ser algo na linha de caçador coletor e então, ainda que nossos cérebros sejam capazes de memorização e pensamento abstrato, eles são ruins nessas tarefas. Nossa memória, por exemplo, é preguiçosa — “gravamos” apenas alguns “marcadores” desta ou daquela coisa para que seja possível reconhecê-la se com ela nos depararmos de novo. Memória “fotográfica,” que de fato grava todos os elementos, e não só os marcadores, é coisa rara. Para o pensamento abstrato, precisamos de muletas tais como matemática e modelos. O bicho homem, do sexo masculino, tem toda uma carga de ciúme e possessividade, do passado em que era impossível determinar com certeza de 100% se o filho parido pela fêmea era ou não biologicamente relacionado com ele. Hoje existe teste de DNA que resolve isso lindamente, mas a mentalidade, arraigada no cérebro ao longo da evolução, perdura. Pior ainda — a grande maioria do sexo que as pessoas praticam hoje em dia tem fins não-reprodutivos, i.e. sexo recreativo, por prazer. Mesmo assim, todas as reações emocionais envolvidas são condizentes com sexo reprodutivo — contracepção é coisa recente, afinal.
O transhumanismo visa a usar da tecnologia disponível para aparar essas arestas que restaram da evolução. Implantes neurais permitem memória perfeita — memorizar seqüências de dezenas de números se torna possível. Terapia gênica é capaz de pôr um fim no envelhecimento — sob o ponto de vista dos genes, na evolução, só é importante que o corpo viva tempo o suficiente pra se reproduzir; para nós, seres conscientes, envelhecer não é o melhor negócio. Um controle total do corpo, ainda, permitiria, em teoria, controlar as descargas de mediadores químicos no cérebro — sentiu raiva ou depressão? Corrija isso conscientemente. Essas são as alternativas mais pedestres, “normais.” Quando a coisa engrena mesmo, podemos ter gente que faz fotossíntese, pessoas que incorporaram genes de animais (seja para ter reflexos mais ágeis ou por pura estética mesmo), sexo que pode ser mudado em questão de poucas horas — ou hermafroditismo, ou algo totalmente diferente do que conhecemos. Em suma, é o paraíso na Terra — corpos que se moldam ao que nossas mentes julgam mais adequado, e não mentes cheias de potencial presas em corpos sub-ótimos, de características definidas aleatoriamente.
Nos RPGs de ficção científica, o tema já é tratado otimamente — além dos que citei anteriormente, eu fortemente recomendo o GURPS Biotech. Mesmo que você não jogue GURPS, vale a pena — o material descritivo é detalhado e muito bem pesquisado. Melhor suplemento de GURPS que já li.
Já na fantasia, o tema existe, ainda que não seja tratado pelo nome. Fantasia é um gênero amplo, logo, deste artigo ficam de fora facetas que pretendo abordar em artigos futuros, como o transhumanismo steampunk (culto de Cyrris, alguém?) e outras coisas como transhumanismo pós-steampunk-bizarro (nominalmente, Romância). Trataremos aqui, então, da fantasia mais “padrão,” a que se costuma chamar de “medieval” (ainda que não tenha praticamente qualquer semelhança, exceto estética, com a Idade Média), cujo representante de maior peso é o Dungeons & Dragons.
Transhumanismo “baunilha” no D&D
“Baunilha” por ser o mais comum, o mais óbvio. O personagem é humano (ou elfo, ou anão, ou qualquer outra das variedades de humano de personalidade estereotipada e maquiagem engraçada) e, seja pelo meio que for, vai se tornando, gradualmente, uma coisa diferente. Os métodos geralmente prevêem o uso de magia (o high-tech disponível), seja diretamente (por rituais ou procedimentos semelhantes) ou indiretamente (as tais das “linhagens,” uma forma recatada de dizer “a tataravó de seu personagem era uma baita de uma perva que gostava de trepar com bichos mitológicos — muito férteis que produzem descendentes com qualquer coisa!”)
(A maioria dos jogadores vê isso meramente como uma forma de adquirir modelos bombados e kewl powerz!!1! — mas a coisa pode ser mais interessante.)
O Discípulo do Dragão é o primeiro a aflorar na memória, e usa o método da tataravó tarada — o personagem tem as características dentro de si, latentes, e elas vão aflorando aos poucos. O mesmo caso se aplica às bloodlines de feiticeiro do Pathfinder (bem completo nas opções, prevendo até a possibilidade de bisavó necrófila, cruz-credo!). Talentos e níveis “raciais” (ou seja lá como se chame o equivalente) podem também ser agrupados nesta categoria. Idem pra um lefou (Tormenta RPG) que vai adquirindo feitos (perdão, talentos) aberrativos com o descritor [Tormenta].
Deixando a vovó parafílica um pouco de lado, temos as modificações deliberadas, mais semelhantes ao transhumanismo como especulado na realidade e visto na ficção científica. O exemplo mais clássico é o lich, que praticamente se embalsama em vida e altera todo o metabolismo do corpo de maneira a viver eternamente como um desmorto (sobre este assunto, já escrevi em detalhe neste artigo e em sua continuação). O caminho transhumano da morte em vida, aliás, é abordado algumas vezes no D&D. O suplemento Heroes of Horror traz a classe Dread Necromancer, que se vai tornando morto-vivo aos poucos, chegando a lich propriamente dito no 20o. nível. Neste mesmo suplemento, temos também outras formas de “transhumanismo” com os talentos relacionados à mácula (taint) e os talentos de Deformity. “Ah, mas essas coisas requerem tendência Má!” Ora, ignore a tendência, ora pois. A tendência só definida como “má” nesses casos por uma postura ludista, preconceituosa, que considera apenas uma forma de metabolismo como sendo “válida” — uma postura pouco transhumanista, aliás.
O Pale Master (com que tive contato no Tome & Blood, depois revisado no Libris Mortis) segue uma premissa semelhante, mas com abordagem diferente (uma prótese desmorta substitui o braço). E já que falamos de enxertos, o suplemento Magic of Eberron traz algumas opções de sabor transhumanista neste aspecto. O Elemental Scion of Zilargo sofre modificações corporais relacionadas a (como o nome implica) elementais, ao passo que o Renegade Mastermaker substitui partes de seu corpo por peças warforged (efetivamente um “ciborgue de fantasia”). Ainda no Eberron, temos, no suplemento Races of Eberron, o Reforged, que permite ao warforged se tornar mais humano, estando mais para “transwarforgismo” do que transhumanismo propriamente dito.
Para fechar os exemplos, temos, no Complete Arcane, o Green Star Adept, que vai se tornando uma espécie de estátua viva através do uso de um minério estelar caído do espaço. E para não ficar só nos modelos e classes de prestígio, temos uma raça psiônica, os Elan, que são “feitos” a partir de outra raça (ou coisa assim). Saindo um pouco dos suplementos gringos, podemos também identificar o transhumanismo de fantasia na CdPs Discípulo da Tormenta (Área de Tormenta) e Herdeiro Planar (O Panteão) e também na classe básica Claymore (Dragonslayer 29).
E é claro que se pode aplicar a abordagem deliberada mesmo nas opções “inerentes,” como linhages e afins. Pense bem, o que te impede de descrever as habilidades de linhagem do teu feiticeiro como sendo obtidas através de rituais, drogas alquímicas, enxertos e outras coisas assim mais “cirúrgicas” em vez da velha estória da vovó pervertida? Ainda que o personagem que roda o mundo atrás de suas “verdadeiras origens,” a abordagem transhumanista de um que quer negar suas verdadeiras origens, se transformando conscientemente em outra coisa, é igualmente válida, e muito menos explorada, em se tratando de feiticeiros. Itens mágicos, como os tais “tomos,” que concedem bônus inerentes em alguma coisa podem também ser descritos como modificações de viés transhumanista — qualquer coisa que cause uma alteração permanente e exótica no personagem pode ser descrita como upgrade transhumano. Alguns podem torcer o nariz para tal, mas outros podem encontrar um sabor novo em regras antigas.
O óbvio bem debaixo dos nossos narizes
Eu quero dizer ainda mais óbvio que as abordagens vistas anteriormente. O personagem “normal” que se transforma em uma coisa “bizarra” é uma instância mais aparente do transhumanismo de fantasia, visto que há mudanças marcantes na aparência em praticamente todos os casos abordados. Mas existe uma outra abordagem, que se mostra menos na aparência mas, mais impressionante, é a mais difundida. Apenas não estamos acostumados a percebê-la como tal.
A questão é: TODO personagem de D&D é transhumano. Sem exceção. Certo, minto um pouco — só é possível percebê-los assim se mudamos a maneira como percebemos o cenário e interpretamos certas mecânicas. O truque é se livrar de todas as abstrações e racionalizações capengas. Encarar a mecânica como uma simulação fiel da realidade do cenário.
Os Pontos de Vida são a parte mais óbvia. Em inglês, são Hit Points, algo como “pontos de acerto,” que, estamos carecas de saber, não representam ferimentos, ou pelo menos não só ferimentos — são um recurso abstrato que representa disposição, vigor, determinação, capacidade de se defender, experiência em batalha e qualquer outra coisa que o interlocutor quiser invocar para explicar que não, não é como se o personagem levasse meio metro de aço no bucho e mais vinte flechas nas costas e continuasse lutando como se nada tivesse acontecido, etc.
Há outros pontos em que tal racionalização é menos evidente que nos hit points, que, no geral, tratam de descrever habilidades mecanicamente burlescas como um “recurso poético” de filmes de ação, etc. Ou seja, os personagens de D&D são pessoas normais, só que muito mais experientes. Na 4a. edição, se não me engano, apenas personagens jogadores (ou seja, estão excluídos NPCs “mundanos” como fazendeiros) possuem o “destino heróico” que lhes permite ter os healing surges.
A proposta aqui é: joguemos pela janela as racionalizações capengas. Hit points são uma medida objetiva da integridade corporal do personagem, e um guerreiro de nível suficientemente alto de fato pode ter vinte flechas nas costas e só sentir um arranhão. Precisamos de uma explicação? Um pouco de handwaving, então — é magia. Vamos elaborar um pouco mais — há alguma propriedade no “campo de magia” do cenário que faz as pessoas, de acordo com sua experiência, transcenderem para algo além do humano. Se você quiser detalhar e especificar mais, fique à vontade, mas, por enquanto, isso é o suficiente.
Cabe um outro esclarecimento: isso se aplica apenas aos personagens “aventureiros” ou a qualquer tipo de PdM passível de ganhar níveis? Ambos são interessantes, mas fiquemos, por enquanto, apenas com a primeira hipótese.
Personagens são vistos pela população em geral como verdadeiros monstros. Além de serem capazes de detonar toda a milícia da cidade (o que as mecânicas já prevêem, em geral), a maneira como o fazem é inquietante. O clérigo não só consegue continuar de pé e plenamente consciente após ter a cabeça quase partida com um machado, como ainda consegue remendar a colega bárbara do grupo, que se levanta com uma faca ainda cravada no peito e continua com a matança. Como estratégia de fuga, o guerreiro consegue pular do alto de uma torre, parecer se espatifar no chão, levantar todo sangrento e continuar correndo como se nada tivesse acontecido. Qualquer um que veja o grupo em ação sabe muito bem que eles são algo mais que humanos.
De acordo com a atitude dos personagens, eles podem ser louvados como verdadeiros super-heróis ou vistos como uma verdadeira ameaça monstruosa — quando eles chegam em uma cidade, as pessoas trancam as portas e correm para as colinas. Se qualquer tipo de experiência, mesmo mundana, é capaz de fazer o “campo mágico” operar suas transformações, a coisa fica ainda mais bizarra — o camponês que ara a terra todos os dias e ganha níveis de plebeu muito lentamente pode levar uma eventual flechada no meio da testa e sobreviver. Se ele consegue salvar se galinheiro do ataque de um lobo, matando-o, então… Digamos que ele pode ir colher lenha no meio da floresta e ser picado por uma cobra sem achar o ferimento, antes letal, grande coisa. O abismo entre aventureiros e civis fica menor — mas o conjunto, em relação à nossa realidade, se torna bastante estranho.
Finalizando
Duvido que alguém de fato se preste a experimentar a segunda abordagem — é quase impossível de se encaixar em uma campanha em andamento, mas pode ser uma variante divertida para alguma aventura isolada (ainda mais se os jogadores já agem como se seus personagens fossem de fato sobre-humanos).
Já a primeira, embora exótica, é bem mais palatável e, apesar de não tocar no termo “transhumanismo,” já faz tal elemento presente em suplementos de D&D. Agora que a coisa foi explicitada com todas as letras, há dois rumos a seguir. Ou afastar-se disso o mais rápido possível e tomar um banho com arruda e sal grosso pra se “descontaminar” desta pseudo-ficção científica enrustida, ou então abraçar o conceito logo de uma vez e aplicá-lo a elementos que você nunca imaginou desenvolver sob esta perspectiva.