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[Resenha] O Caçador de Apóstolos Apodrecidos


Orgulho e Preconceito e Zumbis


Orgulho e Preconceito e Zumbis, você deve conhecer. Seth Grahame-Smith teve a feliz idéia de tomar emprestado o texto de Pride and Prejudice, da escritora Jane Austen, e… adicionar zumbis! Simples assim. O texto original de Austen não foi alterado, talvez por respeito ao texto escrito por outra pessoa, e por isso apenas recebeu adições desmortas. Ao menos para mim, é impossível não imaginar como tal livro poderia ter sido em uma realidade alternativa em que Jane Austen a) ainda fosse viva e b) gostasse de zumbis. Sendo a própria autora a operar a “zumbificação” da obra, talvez houvesse rolado menos timidez e, em vez de meras adições, passagens relevantes poderiam ter sido efetivamente re-escritas. Infelizmente, podemos apenas imaginar tal cenário.
(Talvez se Austen retornasse como zumbi… Não, não, o colunista tem muito pouca confiança na habilidade literária dos devoradores de miolos, e pensa que o resultado seria péssimo.)
Saindo do século XIX, passemos para o XXI, com o romance de fantasia medieval O Caçador de Apóstolos, de Leonel Caldela. Ocorre que, para nossa felicidade, Leonel Caldela a) ainda é vivo e b) gosta de zumbis. Logo, seria muito legal se… Seria coisa nenhuma: é legal. É isso mesmo que vocês estão pensando: surfando na crista da onda da tendência, Caldela escreveu uma versão “zumbificada” de seu último livro, versão esta chamada O Caçador de Apóstolos Apodrecidos. Ainda não possui data prevista para lançamento, mas — uma das (poucas) vantagens de ser um blogueiro — recebi o manuscrito em .pdf a fim de escrever uma resenha. Quer mais exclusivo que isso?

O Caçador de Apóstolos Apodrecidos

Um aviso: você terá a impressão de que (como seria de se esperar em se tratando de zumbis) faltam partes nesta resenha. Isto é intencional — na próxima semana publicarei aqui uma resenha de O Caçador de Apóstolos, logo, para evitar a redundância, o foco aqui será nas partes que sofreram a modificação zumbificante.
Se você acompanhou o blogue nas últimas semanas, sabe do que se trata O Caçador de Apóstolos: um romance de fantasia bem pé-no-chão ambientado em uma terra insular que apresenta muitas semelhanças com a Idade Média real — baixa tecnologia, população ignorante, estrutura feudal e, como não poderia deixar de ser, domínio cultural de uma igreja de religião monoteísta bastante semelhante à católica (apostólica e romana). A Igreja de Urag também tem um papel central em O Caçador de Apóstolos Apodrecidos, mas aqui Caldela explora uma hipótese diferente: “E se a Igreja de Urag, de fato, conseguisse prover a seus fiéis a importalidade prometida — não em outra vida, mas nesta, sob a forma da infecção zumbi?” Os dizeres eucarísticos “este é meu corpo” ganham implicações literais nesta conjuntura.
Nesta versão alternativa, o arsenal bélico dos rebeldes que lutam contra a Igreja vão além do fio da espada e de paredes de escudos, uma vez que seus oponentes desmortos são muito mais difíceis de (re)matar. A rebelião, ainda, torna-se mais difícil de realizar, uma vez que é impossível persuadir os inimigos a mudar de lado — e, pior, os adversários podem facilmente trazer os rebeldes para as fileiras da Igreja de Urag: basta uma mordida… Mas os rebeldes, sem as limitações intelectuais dos zumbis, possuem uma enorme vantagem tática, certo?
Errado. Não me odeiem, mas aqui vai um pequeno spoiler: (Os cardeais, líderes da igreja, não são zumbis, mas, na verdade, são astutos liches, e são capazes de um controle bastante direto das ações de seus zelosos cavaleiros desmortos.) O que podem fazer os rebeldes para virar o jogo em condições tão adversas? Só lendo para descobrir.
Diversas passagens foram radicalmente modificadas nas novas circunstâncias. Tudo o que concerne a escolha de uma Voz de Urag (uma espécie de hierofante que, de acordo com a religião usada no romance, é a única figura capaz de se comunicar diretamente com Deus), conforme visto em O Caçador de Apóstolos, é descartado. Agora, temos a adição dos Campos da Sagrada Voz, um cemitério construído em um local influenciado por forças (supostamente) divinas, onde aspirantes a Voz são enterradas em uma vala coletiva. Cenas de escatologia e sadismo da melhor categoria nos descrevem como estas moças, desabrochadas para a desmorte, se tentam devorar uma às outras, como filhotes de turbarão no interior da mãe. Apenas uma será capaz de cavar seu caminho até a superfície — dotada de toda a iluminação contida nos cérebros devorados de suas imãs abortadas.
Pode ser uma questão de gosto, mas algumas partes me pareceram um tanto confusas. Talvez o autor tenha feito isto de maneira a mostrar como a infecção zumbi é insidiosa e inesperada, não sei se é o caso, mas mais de uma vez somos surpreendidos por personagens que se tornam zumbis sem nenhum aviso. Em uma cena, são vivos como nós; na próxima, estão tentando abrir os crânios dos vivos em busca de seus preciosos e nutritivos cérebros. Cérebros estes, aliás, dotados de toda uma mística teológica de implicações inquietantes. As cidades medievais também ganham uma roupagem distinta, e mostram uma atenção do autor para questões de verossimilhança. Povoados medievais normalmente já são locais sujos e fétidos — agora imagine um local destes habitado por zumbis.
Tudo o que se parecia com agricultura há muito deixou de existir, e apenas a pecuária pode satisfazer a fome por carne órgãos dos zumbis, e neste ponto Caldela novamente ataca com a bizarria: as orações dos cardeais valeram um presente de Urag, uma espécie de gado deformado que nasce com os membros atrofiados mas, em contrapartida, possui duas ou mais cabeças. Mas cérebros humanos ainda são a iguaria mais apreciada, e aqui nos deparamos com um problema. Sendo o objetivo da Igreja de Urag a adesão de 100% da população à fé (e, lembre-se, conversões verdadeiras requerem infecção zumbi), como se manterá a disponibilidade dos cérebros humanos tão cobiçados? O livro também trata deste problema, com uma solução definitivamente revoltante. (Aliás, neste ponto eu acredito que o Leonel nos poderia ter poupado um pouco do sadismo non-stop.)
A cereja do bolo, que deixei para o final, é a narração do livro. É feita em primeira pessoa, por um personagem que é um escritor dentro do cenário, e que efetivamente participa da ação. Até que ponto, de maneira semelhante à vista em Dom Casmurro (Machado de Assis), o relato do narrador é realmente confiável? Ele faz parte da trama, logo, não se trata de um narrador isento — até que ponto pode ele estar a distorcer o teor de relato em benefício de uma agenda própria? E temos uma camada adicional de complexidade em O Caçador de Apóstolos Apodrecidos — estará o narrador ainda entre os vivos ou também infectado pela bênção-zumbi? Os zumbis de Caldela podem ser dissimulados o bastante para enganar os vivos, e a paixão com que nosso escritor-narrador fala sobre a mística do cérebro por vezes nos conduz à dúvida.
Nada no céu! Mortos enterrados!
(É claro que é fake!)

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