A Augúria surgiu na segunda década da Recontagem. Começou como um vago sonho de sujeitos armados e se tornou o grande jogo que é hoje. E se você não a conhece é porque veio de muito longe.
Desde o primeiro levante do mortos, nos aprendemos a dura lição de sobreviver: ficar atento, respirar fundo, manter-se quieto e guardar o que puder. Para mim, coisas do instinto que aprendemos a reaprender. Mas, em algum momento, tudo ficou pior. O segundo levante foi um pesadelo. Ninguém sabia como aquilo tinha acontecido; até encontrarmos os registros de imigração asiática. Os desgraçados vieram aos montes, em navios lotados e, com toda a certeza, contaminados. Você não tem ideia do que é “superpopulação” até perceber o estrago que milhares de refugiados chineses e coreanos são capazes de fazer. Principalmente quando eles se tornam porcarias de zumbis entre sexta e sábado.
Por conta disso tivemos a guerra aberta entre os nômades sobreviventes e os citadinos. O que antes eram regiões limpas por anos de combate agora voltavam a ser desertos de caça. Quem não tinha passe para as fortalezas começou a criar problemas para o comércio de suprimentos. As milícias sem território deram muita dor de cabeça para os chefões dos batalhões murados. Eu me lembro bem dessa parte. Servíamos, meus irmãos e eu, na Oitava Torre de San Franscisco, um monte de pedras e metal com um fosso. Viviam ali 350 almas saudáveis. Passamos fome. Não parou até negociarmos. 14 meninas e uma tonelada de ferro foi o preço. Quem pode esquecer?
Porcaria… me perdi na história. Mas uma coisa não existe sem a outra, de qualquer forma. A migração em massa, a segunda leva de cadáveres ambulantes, a crise da munição… foi tudo na mesma época. Já tinhamos restaurado o contato telefônico com Santa Mônica naquele ano. Foram necessários mais cinco para dar um jeito de cauterizar as proximidades. Criamos barreiras, queimamos centenas incontáveis de mortos-vivos. Percebemos que eles se afastaram, talvez no rumo do leste. Então, veio a droga do terceiro levante.
Meu irmão Zod (não pergunte…) insiste que as hordas de sulamericanos levaram anos para subir até a Califórnia. Tenho lá minhas dúvidas. Sempre acreditei que a praga começou a fazer algo pior. Ela provalmente afetou os redutos misteriosos, as áreas de segurança militar que foram criadas e mantidas pelo governo antes do Começo de tudo. Ainda hoje teimo que pelo menos dois milhões de americanos foram protegidos por anos em bases subterrâneas. Mas, como o destino inexorável da humanidade é fazer merdas, algo deu errado. A infecção afetou as belas e condicionadas fazendas debaixo da terra e Eles se mataram lá dentro. Depois sairam. Atrás de nós.
A Augúria foi então inventada. Coisa complicada: sete navios em uma pseudofrota que servia tanto como patrulha geral dos Fortes do Oeste, como um tipo de caça-refúgio dos desgarrados e nômades. Pouca gente gostava da ideia de viver no mar, abordando regiões costeiras em busca de vivos ou mortos caminhantes. Dane-se. Precisava ser feito. Levamos vinte e dois anos para recomeçar. Os sobreviventes conhecidos criaram quarenta e seis fortalezas ao longo do Pacífico americo-mexicano. Tinhamos um sistema de correio ridículo, sustentado por carros-forte e atrapalhado pelo medo brutal das estradas, mas já era alguma coisa. Aprendemos a negociar produtos old-industriais, semi-artesanais e agrícolas sem ter que matar uns aos outros sempre. Não dava mais para esperar outro levante zumbi, do nada. Precisávamos saber quantos pessoas ainda estavam vivas e escondidas e como esses cães de rua poderiam ser úteis. Ou como eles poderiam ser queimados antes de se tornarem coisa pior.
E assim, a Augúria passou a ser conhecida do lado de cá do Velho País. Tem gente que nos chama de “Cassandra”, fazendo piada com algum filme dos tempos da High Definition, acho. Não ligo. Estou velho e só quero saber, sinceramente, como fazer meu microondas voltar a funcionar. Lá fora vejo o mar verde-lodo e sei que tenho trinta embarcações para coordenar. Ouvimos falar de uma cidade-base no Canadá. Os garotos que capturamos juram que não existem mais de sessenta famílias por lá. Acho que é gente demais à solta. Tenho que trabalhar. Como é que podemos viver em paz se não sabemos quantos somos?
– Daniel “Non”, almirante da Augúria e capitão do Zona Fantasma.
Este conto cumpre duas tarefas malandras: de um lado é minha contribuição atrasadíssima para o tema Herói da Liga Narrativa (um grupo de blogueiros contistas espalhados blogosfera afora e que produz material sob temas previamente combinados). Do outro, é minha primeira matéria para a Semana Zumbi, aqui do .20. Se preparem que a coisa só começou…
Outros Posts da Liga:
Reflexos
Sobre fantasmas e heróis
Outro dia de trabalho
A morte de um herói
O cara
Heróico Brado