Esta é a primeira vez que escrevo num diário, mal sei por onde começar. Vou seguir a ordem em que as coisas aconteceram, parece mais fácil, embora esta palavra não faça parte da situação.
Pra mim, tudo começou com uma chamada no batalhão. Havia um tumulto no centro da cidade, e fui escolhido para conduzir uma guarnição até o local. Os PMs não conseguiram conter a multidão, e lá fomos nós limpar a sujeira dos outros. Criciúma é uma cidade com certo grau de violência, principalmente nas periferias. Embora não fosse comum abordar multidões em pleno centro da cidade, não parecia algo que fosse fugir do controle. Não parecia.
Logo ao desembarcarmos da viatura, vimos dezenas de pessoas – talvez uma centena – agindo de forma agressiva, avançando sobre os guardas municipais e seguranças de um shopping próximo, que faziam uma linha de contenção. Lançamos gás lacrimogêneo nos civis, seguidos de tiros de aviso para o alto. Para nossa surpresa, nada fez efeito. Era hora de se aproximar. De perto, entretanto, a coisa mudou totalmente de figura: as pessoas estavam atacando os policiais. Havia vários colegas feridos, e a situação fugira de vez ao controle. Era hora de agir.
Usamos munição não letal com disparos a média distância, como manda o protocolo. Alguns civis recuavam, outros ignoravam. Eu gritava aos guardas para recuar em linha, mantendo a formação, mas havia algo estranho com eles, não havia resposta. Então, os guardas se voltaram contra nós. Havia fome eu seus olhares vazios. O prato do dia: carne humana. Num piscar de olhos, civis e militares se voltavam contra a minha equipe, com gritos e urros de animais. E de fato eram.
O primeiro veio em minha direção, correndo e tentando me atacar, mesmo comigo apontando uma espingarda em sua direção, e ordenando que recuasse. Eu me defendi, e o empurrei para o lado. Vi sua boca, suja de sangue e com alguns pedaços de carne crua pendendo. Quando uma multidão desobedece às ordens de um policial, e insiste em atacá-lo, o policial pode revidar com armas de fogo, se sua vida correr perigo. Éramos seis contra cem. Um dos nossos já estava ferido no pescoço, recuando para a viatura. Dei ordem de fogo. Eu sempre rezei para não dar uma ordem dessas. Agora rezava para que a ordem fosse cumprida.
Enquanto as primeiras pessoas caíam, eu gritava “recuar, recuar!”. Fomos para traz da viatura. Um dos meus colegas, Ruan, estava pálido, com a mão ao pescoço, resmungando algo com “desarma”. Não levei a sério, apenas pedi para que pressionasse o ferimento. Enquanto eu o atendia, chamei o batalhão pelo rádio, e informei que enviassem reforços, havia oficiais feridos e não estávamos em condição de conter a multidão, agressiva e fora de controle, com comportamento totalmente anormal. Quando voltei para ver como Ruan estava, custei a aceitar. Morto, com o pescoço dilacerado.
Voltei minha atenção para o tumulto, e vi um homem com o peito perfurado com um disparo me atacar. Acertei um tiro na cabeça, e o desgraçado ainda se mexeu por alguns instantes. Virei-me para o outro colega para pedir que entrasse na viatura e desse a partida, mas ele estava morto. Ruan, que eu pensava estar morto, apontava em minha direção, todo coberto de sangue. Sangue dos outros três oficiais caídos ao seu lado. A minha vida inteira passou na minha frente, e houve um momento de silêncio inexplicável, seguido de um disparo. Ruan caía, seu crânio agora apenas uma névoa rubra. Meu outro colega, ferido gravemente, salvou minha vida. E como último esforço, deu um tiro na própria cabeça. Nenhum pensamento estava completo, nada fazia sentido.
Dei a partida na viatura, segui na contramão em total desespero, para longe dali. Nas ruas, pessoas correndo, gritando, e se matando. Um carro desgovernado me acertou na lateral, e eu capotei vezes de mais pra contar. Ainda zonzo, segui para um prédio próximo, forcei a porta e entrei, com a arma em mãos. Por sorte, um dos dois presentes no local gritou “que merda é essa?”, e eu fechei a porta e guardei a arma. Monstros não falam palavrões.