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Resenha – O Guia de Sobrevivência a Zumbis

Ao contrário do que muitos vão dizer, a escolha de ícones pop raramente tem algo de gratuito ou espontâneo. Se aliens foram tão populares nos Estados Unidos anos 50, por exemplo, isso tem menos a ver com o fato de serem intrinsicamente legais do que com o de a sociedade norte-americana no auge da paranóia da Guerra Fria reconhecer neles uma ameaça plausível, não necessariamente na sua existência, mas certamente na sua caracterização – uma ameaça externa, com tecnologias estranhas, descreveria com perfeição tanto uma invasão alienígena como um ataque soviético. Da mesma forma, se a figura do cowboy heroicizado se espalhou por todo o mundo ocidental, aparecendo de quadrinhos franceses a filmes italianos e até novelas globais, isso tem muito a ver com a idealização da cultura norte-americana logo após a Segunda Guerra Mundial, quando ela se tornou predominante na maior parte do hemisfério. Mesmo a recente popularização do ninja e das artes marciais pode ser relacionada de alguma forma ao “milagre japonês” e o prodígio econômico nipônico nos anos 80, quando todos olhavam para o Japão com algum espanto e inveja. (A exceção, claro, são os dinossauros. Dinossauros são legais, e eu não imagino uma razão plausível para isso.)

Assim, se zumbis (junto com piratas, por razões que devem ser ainda mais claras) são o ícone do momento, eu realmente não consigo ver nisso apenas o fato de eles serem de alguma forma legais para o público contemporâneo. Cronologicamente, talvez se possa traçar este sucesso desde, pelo menos, os videogames da série Resident Evil, se não algum lançamento anterior que eu ignoro, que marcaram a adolescência de muitos dos que hoje fazem a cultura pop; mas há bem mais que explica o seu alcance tão amplo, e o que as pessoas reconhecem inconscientemente ao vê-los e imaginá-los.

O fato é que o zumbi é, talvez, a criatura fantástica que melhor descreve muitas situações contemporâneas, com as quais convivemos e que presenciamos às vezes sem perceber. A imagem de uma horda de mortos-vivos sem cérebro rastejando e destruindo a sociedade como a conhecemos, por exemplo, tem demais em comum com a imagem que muitos fazem das hordas de imigrantes terceiro-mundistas invadindo os Estados Unidos e a Europa, ou mesmo, trazendo para o contexto brasileiro, com os arrastões de favelados que ameaçam a segurança das elites e classes médias – e como não comparar a típica atitude recomendada contra zumbis (mate-os sem remorso) com a defendida por algumas pessoas, inclusive políticos, contra estes grupos? A própria idéia de um ser apático, incapaz de fazer mais do que rastejar e devorar cérebros, lembra de alguma forma a figura do proletário amortecido socialmente pela comunicação de massas, com seus eventos esportivos e programas televisivos.

Em um contexto mais amplo, talvez se possa relacionar ainda a idéia de um inimigo acéfalo, e portanto sem ideologias, que tem como único objetivo a destruição por si mesma, com o relativo vazio de alternativas políticas após o fim da Guerra Fria, quando a queda do muro de Berlim e o desmantalmento da União Soviética fez com alguns chegassem a anunciar o “fim da História”. E mesmo a sua explicação pseudo-científica mais popular, a do vírus experimental, pode ser facilmente associada à paranóia recente da guerra biológica.

Enfim, cortando a digressão, chegamos então a’O Guia de Sobrevivência a Zumbis, de Max Brooks (que, eu descobri recentemente, é filho do grande Mel Brooks), um guia prático sobre como sobreviver a um eventual ataque de hordas mortas-vivas. Em certo sentido, ele serve de prova da presença marcante de zumbis na cultura pop dos anos 2000, ao ponto de poder prescindir de contar uma história para apenas parodiar os guias de sobrevivência a catástrofes naturais. Ao invés de um enredo com início, meio e fim, o que se tem é uma discussão detalhada sobre zumbis, suas origens e as formas de combatê-los, com dicas de equipamentos, métodos de fuga e táticas de defesa e ataque contra inssurreições de necrófilos na sua cidade.

O tom, obviamente, é o da sátira, embora o texto se finja de sério na maior parte do tempo. Há boas sacadas e comentários pontuais sobre a cultura norte-americana, e como ela às vezes parece ter sido orientada desde a origem para lidar com situações deste tipo (e outras vezes nem tanto assim), mas em geral o humor do livro é mais sutil, presente mais na idéia e contexto geral do que em tentativas de fazê-lo rir a cada fim de página com algum escracho genérico qualquer. Isso pode torná-lo um pouco cansativo para alguém que não goste tanto assim dos bichos, mas também faz parte do que o torna tão divertido para os mais aficcionados – os primeiros talvez gostem mais de World War Z, do mesmo autor e ainda não lançado por aqui, uma espécie de seqüência espiritual deste e que conta detalhes da guerra final entre os humanos e os mortos-vivos.

E, é claro, esta é também uma boa aquisição para qualquer jogador de RPG, por todos os detalhes descritivos que podem ser aproveitados em jogos com ambientações modernas. A última parte, inclusive, onde são descritos diversos ataques de zumbis registrados desde a pré-história, pode ser facilmente transformada em um cenário de campanha, além de muitos deles funcionarem como sugestões de aventuras.

Em todo caso, O Guia de Sobrevivência a Zumbis é um livro interessante, divertido, e que qualquer um com algum nível de zumbifilia (ou seria necrofilia?) deve gostar de ler.

Resenha por Bruno BURP

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