Trata-se do que é popularmente conhecido como sistema de combate. Sistemas de resolução de conflito são uma ideia de enorme simplicidade, que estranho não ter surgido mais cedo. Afinal, um sistema de combate, por mais “realista” que se proponha a ser, é na verdade uma abstração, uma ferramenta mecânica cuja função é resolver uma disputa prolongada entre dois ou mais agentes. Não importa o que o conflito representa — uma briga, um debate, uma perseguição: tudo é igual — A quer forçar B a Q, utilizando-se de X, ao passo que B não concorda e, em resposta, se utiliza de Y com o fim W. Não importa se:
A = aventureiro/Cthulhu/nevasca;
B = monstro/Terra/grupo de aventureiros;
Q = morrer/ascender a um estado [significador desconhecido]/atrasar sua viagem;
X = espada/[incompreensível para nossa sanidade]/ventos fortíssimos e neve;
Y = presas enormes/reality shows de gente vestida de bicho/conhecimento do local;
W = matar aventureiro/blindar a mente com estupidez/atalhar por uma rota protegida —
— tudo é igual. A descrição e a estratégia empregada vai variar enormemente, mas, por baixo desta carne variada, o esqueleto é exatamente o mesmo. Tal esqueleto sempre esteve presente nos RPGs. É só questão de vesti-lo com outras proteínas. Não sei quanto a vocês, mas isto me parece algo de enorme elegância e economia — ampliam-se as opções em jogo sem que isto acarrete um aumento proporcional no volume de regras, uma vez que trata-se apenas de designar novos usos para uma ferramenta pré-existente (cujo funcionamento os jogadores conhecem bem).
A resolução de conflitos me parece uma daquelas soluções geniais que causam a reação “como não pensei nisso?” — algo simples, e que esteve sempre debaixo de nossos narizes, mas de que nunca nos demos conta. Hoje em dia, não mais, visto que vários sistemas mais recentes já têm a resolução de conflitos em seu design — já vimos isto no FATE e no PDQ (e me lembrem de fazer o mesmo com Mouse Guard). Mas o que acontece quando incluímos tal ferramenta em um sistema tradicional pré-existente, centrado em único sabor de conflito? O Sistema d20 deve ser aquele com a maior quantidade de títulos publicados por aí, e trouxe todo tipo de variação. Combate mais tático? Iron Heroes. Sistema mais enxuto? True20. Sistema diferente de magia? Você contrará diversas opções.
Resolução de conflitos? Nunca vi, nesses anos todos. Mas recentemente (okay, um faz tempo já) isto mudou: o suplemento Mecha & Manga, para o jogo Mutantes & Malfeitores, traz, entre suas regras, um sistema de resolução de conflitos. Como saiu?
Mecha & Manga
Me submeti a uma traumática cirurgia em que me foram enxertadas três pernas adicionais — fi-lo porque queria assegurar o máximo de pés atrás de que eu pudesse dispor quando iniciasse a leitura do Mecha & Manga, tão alardeado quanto o W&W. Caso fosse semelhante, me provocaria aquela mesma sensação de dinheiro jogado no ralo. Fico feliz em anunciar que isto não se verificou — o Mecha & Manga é uma caixa de ferramentas e tanto.
Não me entenda mal. O Mecha & Manga também conta com templates e coisas assim. Há blocos para elfos, anões, gente-bicho, vampiros, robôs… E regras suplementares de coisas como Combos (poderes e manobras que, se usados na seqüência pré-determinada, vão aumentando em poder — interessante para simular fighting games, talvez?) e “monstros de estimação” (que servem otimamente como companheiros animais ou monstros conjurados), etc. Mas a cereja do bolo é a seção Conflitos e Desafios, que finalmente traz para a plataforma d20 uma mecânica geral de conflitos.
Resolução de conflitos
Pois bem, as regras para resolução de conflitos nada mais são que as regras de combate, feitas suficientemente genéricas para servirem de base para qualquer tipo de ação oposta e resistida que se queira. Coisas como Bônus de Ataque e similares são substituídos por análogos estruturais, que são os seguintes:
Bônus Ofensivo: É o método principal que o personagem emprega para impor sua vontade e vencer o conflito. Seu análogo físico é o Bônus de Ataque.
Índice de Proteção: Trata-se das ações empregadas para evitar que o oponente imponha sua vontade no conflito, análogo a “esquiva” e afins.
Volume: É o alcance, influência e abrangência do personagem no conflito. É análogo ao tamanho.
Direção: Representa o quão impactante é o exercício de vontade da personagem no conflito, o “dano” capaz de causar.
Salvamento de Resiliência: Quando o oponente é capaz de exercer sua vontade sobre seu personagem, o quanto ele é capaz de resistir?
Condições de Erosão: Trata-se do “controle de dano” do conflito, a exaustão de disposição que, nas últimas conseqüências, leva à derrota.
Condição de Derrota: O nome é bem auto-explicativo. No sistema de dano regular, equivale às condições Morrendo, Inconsciente ou Morto.
Recuperação: Define como e a que taxa o personagem de recupera das condições adversas adquiridas no conflito.
Janela de Tempo: Aqui nos é informado de que a duração das rodadas em conflitos varia, em tempo dentro do mundo de jogo, de acordo com a natureza do conflito. Xavecar alguém é mais demorado que dar um murro nas fuças, e uma manobra midiática de difamação leva mais tempo que a cantada, mas isto não influi na mecânica em si — dentro dos respectivos conflitos, cada uma destas ações existe dentro da mesma unidade abstrata, uma rodada.
“Combate social,” é suficientemente óbvio, de maneira que prefiro exemplificar com o conflito de performance. Possivelmente tenha sido incluído por causa de certos animes e mangás que lidam com idols, aquelas meninas esganiçadas do J-Pop que possuem séquitos de fãs. (Mas se alguém estiver em Porto Alegre em julho e for jogar Mecha & Manga com bandas de visual kei, por favor me convide. Sério. Mesmo.)
Seja como for, performances musicais estão ali. O músico (ou banda) ataca com Performance e se defende com Confiança. O “oponente” aqui é o público, que ataca com Reação e se defende com Closed-Mindness. Ao sofrer “dano,” os músicos ficam Nervosos, depois Paralisados, Chateados e, a condição de derrota, Deprimidos. O “dano” provocado no público o deixa Entretido e, em ordem de “severidade,” Impressionado, Estásico e, finalmente, Histérico, quando é “derrotado.” Apenas o público possui Volume (o tamanho da audiência; um clube undergrond de bandas indies seria algo como médio; já um estádio lotado deve ser algo como colossal), e a Resiliência (a resistência ao “dano”) é Cool para os músicos e Expectativa para o público — o que dá à expressão tough crowd um sentido bem literal. A Direção (ou “dano”) é a Arte para os músicos (Perícia de Arte/4 + Car) e Retorno (baseado em Intimidação) para o público — músicos podem comprar “armas” como Equipamento (como uma guitarra ou voz melodiosa, por exemplo).
A resolução de conflito aqui tem uma diferença em relação ao Mouse Guard, FATE, etc. Estas regras prevêem que o jogo contará sempre com um tipo de conflito central. Em jogos de super-heróis, é o combate. Aqui é permitido substituir o foco — social, performance, conflitos astrais/oníricos e mass combat são os exemplos detalhados no livro –, mas, uma vez efetuada a substituição, esta é fixa. Isto não me parece tão interessante: seja performance, combate ou intriga, continua a ser um jogo “de um conflito só.” Uma das vantagens dos conflitos gerais é justamente não necessitar estar preso a um tipo apenas de embate.
Mas o livro nos diz que podemos usar a mecânica para conflitos paralelos, isto é, aqueles que não são o tema do jogo. Se performances musicais não são o tema da campanha, mas o narrador resolve incluir uma no jogo, isto pode ser feito, usando características alternativas. No caso da performance, são listadas as seguintes alternativas: músicos atacam, causam dano e se defendem com a perícia Atuação; a platéia também tanto ataca quando defende usando o salvamento de Vontade, e causa dano com Blefar; ambos resistem a dano com Vontade.
Temos também a opção scaling back combat, isto é, um combate “light,” utilizável em aventuras em que o conflito definido como central seja outro. Ataque e Defesa se tornam Perícias (com custo e limite por NP usuais para perícias), divididas em Melee Combat (Str), Ranged Combat (Dex) e Combat Defense (Dex), o combate sendo conduzido via testes opostos de perícia. Dano continua sendo definido por arma, Força e Poderes, com as mesmas limitações de NP. Resistência se torna um salvamento regular, e pode ser comprado até o limite de NP +5. O Controle de Dano não ocorre — um personagem pode falhar em um número de testes de Resistência (isto é, sofer dano) igual ao seu bônus de Constituição antes de ser derrotado. O mestre decide se o personagem assim derrotado está inconsciente ou morrendo.
Opinião pessoal: o scaled back combat me parece a melhor das diretrizes apresentadas de maneira a se ter uma engine geral de conflitos. Ela é totalmente baseada em perícias (ou seja, tudo segue a mesma escala) e o salvamento de Resistência, por ser posto na mesma escala que os demais, pode ser facilmente substituído por Fortitude, por exemplo. Para outros tipos de conflito, é apenas questão de mudar as perícias (sempre perícias) envolvidas em ataque e defesa, utilizando os salvamentos de Fortitude (físico, provas de resistência), Reflexo (perseguições) ou Vontade (mental, social) para resistir ao dano, conforme o caso. O fato de prever o uso de equipamento (arma, no caso) para o cálculo de dano também cria variações interessantes, visto que o feito Equipamento pode ser usado para comprar “armas” para outros tipos de conflito, como “Vestido Decotado” para conflitos sociais que envolvem sedução (ou “discurso preparado” para aqueles com foco em oratória)…
Um problema, contudo: faltam opções. Pode-se facilmente “temperar” o combate usando feitos/talentos de efeitos específicos. O livro diz que:
Um personagem pode comprar feitos e poderes que melhoram suas características de resolução de conflito, bem como novas opções como manobras especiais, a habilidade de impor condições especiais, ou novos tipos de ação.
Bacana. Mas seria mais se o livro contivesse opções de feitos e poderes para, ao menos, os exemplos apresentados.
Se quisermos que os conflitos não-combativos sejam tão emocionantes quanto os combates, o tratamento deve ser similar. (E constância no design também me parece uma preocupação relevante.)
A forma mais direta que me ocorre para resolver isto: criar feitos/talentos e poderes para os tais conflitos. Mas acredito ser oneroso: isto deixa um sistema já pesado ainda mais. Afinal, você está adicionando partes mecânicas. E pode deixá-lo na mão: você, mestre, criou uma seleção enorme de feitos específicos para conflitos sociais e perseguições com veículos, por exemplo. Mas ocorre que um dos jogadores adora Texas Hold’em (ou, como eu, ficou obcecado com o vídeo Poker Face da Lady GaGa) e quer porque quer que seu personagem se envolva em um conflito de pôquer — tipo de embate para o qual você não criou quaisquer opções.
Se a adição de elementos parece design desajeitado, pode nos restar uma outra alternativa, ainda que muito possivelmente igualmente trabalhosa: reconfigurar o sistema existente. Assim como a resolução de conflitos em si nada mais é que o uso de mecânicas pré-existentes para um novo fim, tal raciocínio pode ser aplicado nas demais partes do sistema que estejam relacionadas. Se se usar a opção em que os Bônus de Ataque/Defesa se tornam Perícias, pode-se postular que todos os feitos de Combate são usáveis em conflitos, desde que seja o personagem treinado na perícia relevante ao conflito. Se, por exemplo, um personagem treinado em Sentir Motivação e com o feito Desarmar Aprimorado “luta” socialmente contra nossa personagem sedutora do Vestido Decotado, ele poderia “desarmá-la” olhando fixamente para seu rosto e ignorando os seios convidativos, efetivamente negando seu acesso àquela “arma.” O poder Confusão pode causar comportamento errático em um oponente em combate corporal, mas, para fins de um conflito social, Confusão pode funcionar como um Raio (afinal, a confusão aqui seria usada para desnortear o oponente, fazendo-o perder o argumento, efetivamente levando-o mais próximo da derrota). A questão é abstrair a “fachada” e focar no funcionamento.
Para fechar
O sistema de resolução de conflitos do Mecha & Manga é uma das iniciativas mais bacanas que já vi em termos de mecânica no Sistema d20, ainda que possua suas falhas. Ao meu ver, é necessário um pouco de jogo de cintura para tirar máximo proveito do sistema de resolução, como a adaptação de feitos/Poderes que citei. Mas, acredito, sendo o M&M maleável e bastante voltado para a funcionalidade, a dificuldade para implementar os conflitos com opções interessantes não deve ser muito grande.
Mesmo que você, como eu, não suporte* olhos esbugalhados, queixo pontudo em V, super deformed e gotas enormes de suor na cabeça, o Mecha & Manga é um suplemento cuja compra eu recomendo para qualquer jogador de M&M. Afinal, assim como anime “possui múltiplos gêneros” — a justificativa do livro para as regras de resolução de conflitos — , o mesmo vale para o RPG em geral, variadíssimo em seus temas e abordagens. É só questão de ignorar os olhos enormes e aproveitar os bons recursos oferecidos pelo suplemento.
*Não é que eu não goste de anime/mangá. Adoro. Mas estou bem mais para Death Note do que Love Hina, Dragon Ball ou Naruto. (Sem contar os mangás gothic lolita da Mitsukaz Mihara, coisa bem de nicho.)