Ícone do site RPGista

Oração

O portão rosnava por causa dos impactos. O invasor teimoso gostava de mostrar a força nos gritos dos punhos.
“Não vai demorar” pensou alguém sem importância.
As tábuas antigas e os anteparos de metal escuro dobravam ao sabor dos golpes. A cidadela, tensa na espera, observava – mentira! Eram os soldados quem esperavam na tensão. Olhavam por sobre os ombros de malha das fileiras de besteiros e arcabuzeiros. Respiravam em coletiva cadência: sina de unidade.
-Escutai! – bradou o Mestre do Portão – Logo teremos visitas! Preparem as armas e as calças para a festa da batalha! Logo teremos o cheiro feliz do sangue e da merda que acompanha a alegria da desgraça! Fiquem firmes! Morrer é uma piada contada por alguém sem jeito – um sofrimento que demora mais se você leva muito a sério!  – o suor cantou na testa do velho capitão – Juntos! Firmes! Este é um dia de sol e céu aberto, mas dane-se o favor da beleza! Queremos MORTE! Queremos DOR!
-DOR!!! MORTE!!!! – urraram as fileiras; algumas mais certas do que outras.
A certeza do aríete não diminui, por sua vez. Beijava o portão no centro, fazendo mais tortas as dobradiças, velhos presentes de um rei já morto.
Amana, grávida, olhava por meio tempo, do alto da Torre Oca, o pátio coberto de defensores. Sabia que o defeito de todas as muralhas é a existência da Porta. A rainha rezava a deuses que nem sabiam de sua existência e esperava a graça de permanecer viva, ante os captores que viriam. Rezou mais. Tirou a tiara da cabeça e entrou nos aposentos caros do coração do castelo. Suspirou o ar dos derrotados, ao mesmo tempo em que quatrocentos e sessenta guerreiros a protegiam lá fora – sina da servidão.
-Oh, An-Har, Pai dos Homens! Concedei a vida a esta Casa! Poupa-me dos males que virão! Guardo em mim o filho de dias futuros! Pensai nele, que é filho da vossa vontade de deus! Ajudai minha linhagem nessa hora maligna de lanças! Sou tua serva! – ajoelhou-se, cuidando para que as vestes brancas não se sujassem – Oh, Sernara! Mãe da Guerra e dos fortes! Protejas com teu escudo santo meu portão, meu corpo, minha honra de rainha! Só tu, Senhora das Águias é a Bela no mundo! Sou tua serva!
O estrondo da negação veio na forma da queda pesada. No pátio, ante os olhos pedrados de homens armadurados o infeliz portão estava caído. A turba sombria fez seu suspense e o silêncio brincou com todos por três momentos.
– Fiquem de pé no medo, malditos! – rosnava o capitão para os seus – Guardem suas entranhas no lugar devido! Chegou a hora! Espadas irão beber! Não sejam sovinas no derradeiro momento de nossas vidas! Somos o bastião, a bigorna e a rocha! Esperamos e teremos!
O urro dos defensores se espraiou. A hoste invasora não guardou mágoa da resistência corajosa: se derramou sem pena, em respeito à honra dos sitiados.
Choveram espadas, flechas, lanças e dignidades austeras. Era Guerra, como sempre. Foi rápida, grudenta e severa. A Cidade tremeu minutos nos berros dos moribundos e gemeu horas na agonia dos prisioneiros vivos. Na Torre Oca, Amana, rainha-última de tempos pacíficos, ainda rezava durante a tomada de suas jóias, seus salões e seus sabores. Rezava para deuses distantes, com tantos nomes quanto a memória pode ajudar. Rezava ainda quando sangrava os primeiros sangues de morte. E rezava mesmo quando vagava para o silêncio, sem boa pressa. E rezava também quando a criança morreu dentro dela.
Os deuses olharam preguiçosos para tudo, refletindo talvez, sobre assuntos do dia seguinte, em reinos mais relevantes ou em Eras mais divertidas – sina de quem joga.

– Das cartas de Mulákh, o Andarilho.

Sair da versão mobile