Abra seu livro de cenário de fantasia preferido. Não importa o sistema. Há algum tipo de arquétipo de sacerdote ou religioso? Salvo raríssimas exceções, sim. Somos informados a respeito do deus ou deuses que esse tipo de personagem venera? Sim novamente. E ficamos sabendo um bocado sobre esta ou aquela deidade — sua arma preferida, aparência, os outros deuses de quem ela gosta, aqueles para quem ela faz beicinho e diz “não brinco mais,” etc. Em algum suplemento, é bem possível até encontrar a ficha de personagem da divindade. É bastante material a respeito de entes… geralmente distantes, com quem apenas muito raramente os personagens travam interação direta. Sobre as religiões erigidas em torno destes tais deuses, isto é, sua estrutura eclesiástica, rituais, dogmas e práticas, elementos com os quais se esperaria ser comum uma interação direta, todavia, muito pouco nos é informado. Por quê?
Eu sei que isso vai parecer perseguição, mas aponto o Dungeons & Dragons como um dos culpados por essa inversão de prioridades. Cito parte do texto sobre a classe Clérigo do Dungeons & Dragons Rules Cyclopedia, de 1991.
The D&D game does not deal
with the ethical and theological beliefs of the
characters in the game.
Em bom português: o jogo de D&D não lida com as crenças éticas e teológicas dos personagens no jogo.
Por que isso? Se não se quiser religião no jogo, penso em uma estratégia muito simples — não mencione personagens religiosos em primeiro lugar. Se a função do clérigo se resume a ser um médico de batalha, por que não um médico de batalha logo de uma vez? “Científico” demais? Faça dele um “mago branco” ou coisa semelhante — a série Final Fantasy tem feito isto faz um bom tempo, sem perda alguma de qualidade.
Mas, para bem ou para mal, os personagens religiosos estão aí. Já que foi adicionado o elemento religioso ao que poderia muito bem ser um white mage, por que tal esfera, que encerra potencial, não é melhor explorada? Seria acanhamento, um receio “pisar em calos”?
Pisando em ovos para falar de religião
Nunca vi assunto tão espinhoso quanto religião. Conforme a situação, é pior do que falar sobre times de futebol. Assim sendo, é melhor não nos aprofundarmos e evitar confusão, certo? Não. Todo o tipo de subterfúgio já surgiu para proteger assuntos ligados ao conceito de divino de qualquer análise séria: quantas vezes você já não ouviu se tratar de “uma questão de fé,” e que a razão seria, portanto, “incapaz” de chegar a qualquer conclusão a respeito do assunto?
O RPG é velho conhecido da controvérsia religiosa, com sacerdotes atacando o jogo como “demoníaco” e por aí vai. Talvez o assunto não seja aprofundado pelo receio de causar ainda mais controvérsia. Não vejo razão para tal: um crente moderado, lúcido, é perfeitamente capaz de reconhecer o conteúdo de um livro de RPG como aquilo que realmente é: ficção. Nada mais, nada menos. Já o crente paranóico e delirante verá chifre em cabeça de cavalo sempre e toda vez. Mesmo que o livro não fale uma linha sobre religiões, só a presença de uma seção de “Divindades,” com uma listagem de diversos deuses falsos (não por serem fictícios, mas por serem deuses que não o deles) já pode ser suficiente. E mesmo que se removam todos os indícios de deuses ou qualquer coisa remotamente ligada a eles, ainda restará a magia e, todos sabem, “feitiçaria” é “demoníaca.”
(Ora, até mesmo um livro inócuo — mas muito bacana, li e recomendo — como Harry Potter “promove a bruxaria” na cabeça destes lunáticos. Bruxaria, aliás, que é tão real e tangível, para eles, como “influência demoníaca” e coisas do tipo. Nós jogamos jogos de fantasia — eles, ao que parece, vivem fantasia, em um mundo cheio de demônios à espreita e “forças do mal” prontas para lhes corromper a alma.)
Ainda que a canção Ask dos Smiths possa começar afirmando que “timidez é legal,” somos imediatamente informados que ela “pode nos impedir de fazer as coisas que gostaríamos.” Acredito ser o caso aqui — a maioria dos elementos de fantasia já constitui a “marca da besta,” e, assim sendo, vejo duas direções. A primeira: eliminar todo e qualquer elemento que o religioso possa achar ofensivo. Quem me conhece sabe que, ao vivo, eu seria incapaz de propor uma coisa dessas com uma cara séria. Temos a outra direção, em que timidez não é legal — se a conexão pé-jaca se mostra inevitável, você vai realmente apenas pôr o dedão do pé nela, como se estivesse estimando a temperatura da água de uma piscina? Não seja esse tipo de pessoa. Por mim, corro para pegar impulso e mergulho na jaca, ambos os pés, sem medo de chafurdar na polpa.
Até porque, o “pivô do mal” em discussões acerca do tema é a existência ou não da divindade em questão que a religião prega como existente. Não chegaremos sequer perto disso — não por acanhamento, mas por ser irrelevante. De deuses em si, os RPGs já estão bem servidos. Discutiremos, todavia, os elementos tangíveis de uma religião. Seus dogmas (provenientes de escrituras sagradas escritas por mãos humanas, demasiadamente humanas), seus rituais, costumes, estrutura eclesiástica… Estes não são uma questão de fé — são estruturas sociais e de conhecimento como qualquer outra obra humana e, por conseqüência, perfeitamente passíveis de observação e discussão.
Caso formos obrigados a pisar em ovos, seremos igualmente obrigados a esmagá-los sob a sola de nossos pés.
Por que religiões são desejáveis?
Porque religiões são ótimas em conflito. Conflito é gasolina de aventura. As religiões tendem a não largar o osso quando o assunto é defesa de seus dogmas, mesmo quando estes são provados obsoletos ou substituídos, no conjunto de valores da sociedade, por coisa mais eficaz. Ou você acha que não há quaisquer conseqüências nefastas na postura do Papa Palpatine em condenar métodos contraceptivos que são comprovadamente eficazes tanto no controle de natalidade quanto na prevenção de doenças? E isto só para citar uma das posturas menos controversas. Esta situação, se transposta para um ambiente de fantasia, é capaz de garantir a combustão do motor de uma aventura inteira. Detalhes do mundo de jogo são também bons amigos da interpretação.
Mesmo que D&D seja um RPG claramente voltado para lutas, é uma inverdade pensar que jogos sob esse sistema (e cenário implícito) careçam de estórias complexas e bem elaboradas, e que os personagens não tenham interesse algum senão colecionar classes de prestígio e acumular quinquilharias mágicas que dão bônus. Estórias de qualidade e personagens bem construídos podem surgir daí, e o fazem.
Há também os sistemas como o FATE e o PDQ, em que ações dos personagens e estrutura da ação dependem diretamente de elementos narrativos, e nesses casos, material descritivo é ainda mais importante. E mesmo que isto seja mais uma “regra não escrita” em D&D, é muito comum que jogadores deste sistema também atribuam igual relevância à interpretação e às descrições que a auxiliam. Seja qual for o caso, tais informações, normalmente vistas como fluff, ou triviais, tornam-se importantes e relevantes.
Dúvida: os deuses existem?
Muitos esquecem também que, embora os livros (de cenário de RPG) afirmem que existem deuses e que eles entulham seus clérigos com magia divina até as orelhas, tal existência de deuses não é tão inequívoca assim. Eu sei que a televisão funciona por eletricidade e pela ação de um tubo de raios catódicos por ter assistido a aulas de Física. Caso eu não tivesse tido qualquer instrução em ciência, alguém que dissesse que “deus faz as imagens aparecerem ali” teria grandes chances de me lograr.
Em cenários de fantasia medievalesca/low tech, temos também a magia arcana, de sabor mais pseudo-científico (inclusive dividida em disciplinas de estudo, como Ilusão, Evocação, Biolog…, digo, Necromancia…). Assim como no meu exemplo da televisão, quem garante que os tais “milagres clericais” também não possam ser obra dessa “arcanetech”? Já posso ouvir protestos, e, por isso, faço um pedido — para fins de raciocínio, ignore qualquer restrição artificial entre magia arcana ou divina que seu jogo preferido possa vir a apresentar. Sim, artificial — é usada mais para equilíbrio de regras e em virtude de uma dose cavalar de tradição do que qualquer outra coisa. Tente ver através dos olhos de um habitante do cenário. Nem um aventureiro, um habitante comum mesmo. Se ele não souber que foi o cara de batina que conjurou a magia X, me diga com sinceridade — ele será capaz de saber, com 100% de certeza, se é arcano ou divino?
Alguns dizem que “duvidar da existência de deuses em fantasia medieval é como ver um avião no céu e duvidar da existência dele.” Errado. Ninguém duvida do avião — a dúvida estaria mais deslocada para: quem fabricou o avião? Quem o pilota? Qual o propósito de seu vôo? Magia divina, como já argumentei, pode ser facilmente atribuída à sua prima, a magia arcana. E os deuses? Pior ainda — clérigos de altíssimo nível e botinhas de saltitar Planos à parte, que parcela da população consegue, de fato ver um deus e afirmar “está ali, sem sombra de dúvida existe”? Uma parcela ínfima — e não só entre a população em geral, mas entre os aventureiros inclusive! E nem chegamos na fauna exótica — quem disse que um elemental ou bicho incorpóreo não pode ser confundido com uma divindade ou sinal/emissário da mesma? Já temos precedentes como um arbusto em chamas e uma jumenta falante, logo, um “sinal de presença divina” pode ser facilmente falsificável.
Você, que lê o livro de regras, não tem margem alguma de dúvida. Mas lembre-se de que conhecimento do jogador não se deve confundir com conhecimento do personagem. E em se tratando de personagens, esses são facilmente passíveis de duvidar da existência do divino. E isso é bom: o conceito de fé, afinal, prevê acreditar em alguma coisa mesmo na ausência de qualquer evidência (e, nos piores casos, a despeito de provas contrárias). Nossos personagens não estão em situação muito diferente da nossa, que não temos qualquer prova concreta da existência de deuses. Mesmo sem qualquer prova convincente, muitos de nós acreditam. Isso não é virtude do deus, e sim da religião em torno dele.
Religião sem os deuses
Como disse acima, é o tipo com que temos mais contato — alguém aqui já viu o Jeová ou foi capaz de detectar sua presença com um método que, se empregado conforme instruído, possibilitará que qualquer um o teste? Nunca vi tal coisa. E, ainda assim, a religião a ele correspondente possui muitos adeptos. Ou seja, não é causa do deus em si, mas da estrutura mui humana criada ao redor dele. Mesmo que seu livro de cenário afirme que os tais deuses existem, na visão dos habitantes do mundo e da maioria dos personagens, não faz diferença eles existirem ou não. Os resultados são os mesmos.
Precisamos de um dogma, que geralmente é vendido no formato de um “livro sagrado.” Lá estão todas as “verdades absolutas,” escrita por mãos bem humanas (ou humanóides), mas cuja autoria é creditada a uma fugidia “inspiração divina.” Note que o conteúdo não é somente “espiritual” — parece ter muito mais a ver com os interesses pessoais dos fundadores da religião. O texto usado de base pelos cristãos tem origem nas crenças de tribos de pastores, logo, há toda uma carga de preservação do grupo às custas do bem-estar de grupos percebidos como rivais (tanto que há até regras claras sobre que tipo de escravo pode-se ou não ter e em quais condições). A sociedade deles era patriarcal, logo, há uma série de medidas projetadas (mesmo que inconscientemente) para enquadrar como “cidadão de segunda categoria” qualquer um que não pertença a esse “Clube do Bolinha” — subserviência da mulher (que, se adúltera, pode ser morta a pedradas) e ódio irracional aos homossexuais (que, na visão machista, são “piores que as mulheres” — eles, afinal, são homens, mas não seguem as regras do Clube do Bolinha ao se entregar a atividades “de mulher” — ser penetrado, usar certos tipos de roupa…).
Temos até a seção de culinária da Ana Maria Brega, que diz que não se pode comer ou mesmo tocar em um animal marinho que não possua escamas e barbatanas (vai ver é porque nunca saborearam uma boa paella!), e toda uma neurose em relação aos animais de cascos fendidos. Ah, mencionei que é pecado usar trajes constituídos de tipos diferentes de fibra têxtil? Sua camiseta de 90% algodão e 10% poliéster (ou aquele linho mais barato que contém algodão na composição), segundo eles, pode te levar pro inferno! Se tiver tempo, leia o Levíticos — há coisas estranhíssimas escondidas lá.
Como vê, uma escritura sagrada tem mais, muito mais do que um conceito raso como “deus da guerra.” São esses detalhes que faltam às religiões de cenário de RPG. Você não precisa de panteões imensos — um monoteísmo bem feito faz um trabalho bem melhor. Ninguém precisa escrever um livro sagrado inteiro para uma religião de jogo — nem mesmo eu sou anal-retentivo para tanto! –, mas não dói fazer algumas perguntas ao compor uma religião (ou incrementar uma pré-existente): quem foram os fundadores dessa religião? Em que condições eles viviam? Que valores sociais tais fundadores viam como interessantes e, portanto, dignos de disseminação e manutenção? Que valores ou costumes eles julgavam uó? Na religião cristã, toda a filia em torno do sofrimento — desde ajoelhar-se em superfícies rígidas para rezar aos extremos de auto-flagelação da Opus Dei, a imagem romanceada do mártir… — apresenta correspondência incrível com as condições de seus praticantes nos primórdios do culto ainda na Roma antiga, quando eram perseguidos e mortos. Uma das figuras máximas nesta crença morreu em execução, e o instrumento usado para matar — a cruz — se tornou símbolo da religião. Caso Jesus tivesse sido executado nos dias de hoje, é bem plausível supor que seus seguidores usariam, presas a correntinhas no pescoço, miniaturas de cadeira elétrica.
Adicione algumas coisas práticas, que um dia foram relevantes, mas, com o tempo, perderam significado — judeus, um adepto me informou em certa ocasião, proibiam o consumo do porco em virtude das doenças advindas da carne de porco mal cozida (você estudou isso no colégio que eu sei). Mas, pela natureza dogmática, mesmo hoje, sendo possível cozinhar a carne em condições seguras em que tais doenças não chegam até nós, a proibição continua na religião. Pense nisso também — que tipo de informação fazia sentido na época da criação da religião, mas que hoje é obsoleta e mantida por tradição apenas?
Mesmo que a religião se espalhe por todo o mundo, traços da cultura da localidade onde ela nasceu mantêm a sua marca. Explore isso também! Vamos supor, é meio ridículo, eu sei, uma religião que diz que um tipo específico de cão é sagrado. Digamos que, na área em que a religião surgiu, esse animal era raro e muito apreciado por sua pelagem exuberante, timbre melódico do latido, sei lá. Já sei, o uivo deste animal é, segundo a crença, capaz de chegar aos ouvidos da divindade, que derrama bênçãos por curtir demais o uivo. Agora imagine essa religião inserida em uma outra área, em que o tal cão é comum, mas tão comum e numeroso que chega a ser uma praga. A religião, sendo inflexível, vai continuar a dizer que o guaipeca é sagrado — poderemos ver uma cidade com as ruas cheias desses bichos, latindo, fedendo na chuva, roubado comida, revirando latas de lixo, atrapalhando o sono das pessoas com suas “sinfonias”de uivos, enfim, coisa bem desagradável. Mas as pessoas nada fazem contra os cuscos, pois a tal religião que os diz sagrados é fortíssima lá por alguma outra razão — os cães se tornam “efeito colateral.”
Como vê, livros sagrados têm mais, muito mais que apenas uma mitologia de criação ou coisa semelhante.
E a estrutura eclesiástica, como se dá? Ela é necessária — padres não apenas rezam missa: há toda sorte de trabalhos burocráticos, de manutenção e de propaganda necessários para manter a religião flutuando. Tais sistemas geralmente contam com uma hierarquia — principalmente em se tratando de uma cultura patriarcal, em que há sempre o “cabeça” ou “chefe” da casa/família/empresa. Como tal hierarquia é constituída? No catolicismo, padres não podem ter filhos por um bom motivo — isso iria desviar sua lealdade, que não seria mais voltada exclusivamente para a instituição, sendo dividida com os laços familiares entre pais e filhos. (E também é mais barato manter um só padre do que manter esse mesmo padre mais sua esposa e eventuais filhos.) Nem toda religião é celibatária — e se linhagens de sangue se formam dentro da estrutura eclesiástica? E se os laços de grupo forem menos rígidos, como nos druidas? E cabe lembrar que uma estrutura centralizada não é uma norma, ainda mais em cenários low tech em que a comunicação entre locais distantes é lenta e precária — dica: sumo-sacerdotes ou pontífices máximos não precisam estar presentes em toda religião.
E cabe observar que ordens eclesiásticas são constituídas de indivíduos. Fora os mais idealistas, boa parte terá objetivos particulares. Que podem muito bem influenciar em suas ações dentro da religião. E lembre-se também de que tais grupos, por mais que se pronunciem como tal, não são “totalmente espirituais” — é uma instituição no mundo real com pessoas reais. Que possuem vontades políticas e que não serão nada tímidas em fazer o que for preciso para manterem seus valores como dominantes na sociedade, mesmo que à custa do bem-estar de um número muito maior de pessoas.
E há também aqueles membros da hierarquia que, por seu carisma e obras, acabam sendo cultuados (até como santos ou coisa parecida) ou, pelo menos, vistos como exemplo — ações e crenças pessoais desses indivíduos podem acabar incorporados, mesmo que informalmente, a uma parte muito importante: rituais e costumes.
Rituais e costumes (ou, não seja um “cristianismo de chapéu engraçado”)
Sempre que se fala em definir as particularidades de uma religião, a abordagem normalmente vista é muito, mas muito triste e cansada — pegar como base a religião que te empurraram na infância (não é como se tivéssemos idade para conscientemente escolher, afinal), mudar alguns nomes, pôr um chapéu engraçado e, voilá!, está pronta uma religião… meh.
“Como será um casamento da Deusa do Conhecimento? Será que os convidados ganham um livro de Sudoku?” Alto lá: quem disse que a religião dela sequer precisa ou justifica algo como casamento como nós conhecemos?” Sim, “como nós conhecemos.” Dez, quinze, vinte deuses diferentes (e, assumo, número correspondente de religiões, por conseqüência), e todos lidam com casamento em um modelo ultra-específico (sempre duas pessoas, das quais uma precisa ter testículos e a outra necessita de ovários)? Os suplementos, em geral, não chegam a discutir isso — mas os jogadores simplesmente assumem que assim seja, visto que, de um modo geral, são apenas familiares com uma religião (aquela em que foram doutrinados, possivelmente), e supõem que toda religião (ou, em casos perniciosos, toda religião “verdadeira”) precisa seguir tais moldes.
Tenho uma hipótese: isso se dá pela familiaridade com apenas uma religião, mas o conhecimento, mesmo que superficial, de vários deuses — afinal, duvido que alguém aqui não seja familiar com figurinhas como Atena e Hades. Tenta-se, como conseqüência, aplicar os moldes de uma situação (monoteísmo cristão) a outra radicalmente diferente (politeísmo da antiguidade clássica). Não faça isso. Divindades diferentes, dogmas e valores diferentes, interesses diferentes — práticas e rituais igualmente diferentes. Até porque, a situação comum nos mundos de fantasia não é a mesma que vivemos no nosso, diversas religiões rivais competindo entre si no “mercado de fiéis (e suas carteiras),” defendendo que seu deus é o único verdadeiro. No politeísmo, todas as divindades são vistas como igualmente existentes e parte de uma “grande família.” Famílias podem muito bem dividir funções — você lava a louça, seu pai leva o lixo para fora, sua mãe organiza os gastos da casa. Duas religiões podem possuir rituais, “sacramentos,” em comum, ou pelo menos, parecidos — mas eu não esperaria que todas praticassem exatamente os mesmos rituais com as mesmas funções. Eu poderia esperar cerimônias matrimoniais em religiões como a de Khalmyr ou Marah, mas acharia meio estranho para Tannah-toh e ficaria alarmado em ver isso para Megalokk. Não acharia estranho ver clérigos de Tenebra metidos em aposentos escuros, embalsamendo cadáveres e oficiando cerimônias de enterro (usando pesadíssimos véus e capuzes para não serem tocados por Azgher), diria “hein?!” se me apresentassem os festeiros clérigos de Marah fazendo o mesmo.
Por vezes, em cenários de RPG, elementos podem parecer temáticos em excesso. São reinos, raças, deuses, etc. que passam a impressão de serem monolíticos; deuses cujas áreas de influência, por exemplo, são divididas de maneira que passa a impressão de ser certinho demais; a área de influência de um deus raramente tem uma interseção com aquela designada a outro, no melhor estilo “o purê não deve tocar as ervilhas.” Ainda que isso possa, sob certas condições, parecer um defeito, é bem possível, no detalhamento de uma religião fantástica, fazer disso uma força.
Usemos como exemplo o Tormenta. Lá temos o Khalmyr, que é o deus da ordem e outras coisas de neurose anal-retentiva. Ainda que deuses assim sejam fortemente associados ao conceito de tradição, pode ser mais interessante focar mesmo na ordem. Haveria uniões entre os rituais de Khalmyr, mas quem disse que precisam ser casamentos no molde cristão? Em vez disso, toda união sob a égide de Khalmyr seria aquilo que o casamento é em última instância — um contrato. Não precisaria ser entre homem e mulher, ou sequer entre apenas duas pessoas. O critério seria uma simetria de intenções e de investimento; como preparação, os envolvidos orariam segurando um objeto que representa essa união; tais objetos são, na ocasião da cerimônia, postos sobre os pratos de uma balança encantada, que mediria as tais intenções. O casamento, aqui, não teria funções de “moral” ou assegurar que uma das partes fique parindo pirralhos — o casamento é um elemento de coesão social. Pessoas unidas por acordos bem delineados, em teoria, formam núcleos mais estáveis, e a ordem é assim reforçada. Podemos ainda adicionar uma estranheza — grupos podem se unir, mas desde que o número de componentes seja par. Religiões são cheias de arbitrariedades, afinal.
Se conseguirmos ignorar a homofobia inerente aos brasileiros-das-cavernas, o que nos impede que casamentos na religião de um deus da guerra se dêm apenas entre pares de soldados homens, criando um vínculo como aquele existente entre os espartanos? Se quisermos a religião machista, podem haver mulheres no clero, cuja função é a procriação de novos soldados — apesar de ser casado com outro soldado, um dado combatente é convocado a, periodicamente, “comparecer” com uma destas madres procriadoras.
A religião de um deus do caos associado à loucura pode se basear inteira em distúrbios psiquiátricos. Seria um caso sui generis, em que o dogma não é aprendido e memorizado — ele é parte inerente da psicologia do clérigo, um dogma “automático e sempre ativo,” que influencia todas suas ações. Foi esta a linha que segui para elaborar detalhes hipotéticos sobre um clero para Nimb — que será, aliás, publicado aqui no blogue em pouco tempo, acredito. E querem saber? Foi uma experiência estimulante elaborar tal material — sintomas de distúrbios mentais se prestam otimamente como base para ritos.
Pesquise também sobre ritos reais, sejam eles religiosos ou não — culturas tribais possuem interessantes ritos de iniciação à maturidade, por exemplo. Quer incluir casamento? Que tal se instruir sobre o que existe além da monogamia?
Outro assunto que também é relevante são os cultos à carga, cargo cults, em inglês. Eles ocorrem quando culturas menos desenvolvidas tecnologicamente têm contato com uma mais desenvolvida. Visitantes chegam em aviões trazendo todo tipo de quinquilharia impressionante; depois, os visitantes não mais aparecem. Os nativos entram em parafuso e constróem “pistas de pouso” e “aviões,” feitos de palha e madeira, de forma a atrair de volta os “aviões divinos.” Cheguei a ler sobre um que, inclusive, contava com uma espécie de sacerdotisa, uma mulher enrolada com um fio de metal que chamavam de “rádio,” capaz de se comunicar com os “deuses” dotados de tecnologia. É uma das raras oportunidades que se tem de observar uma religião em formação, e é um ótimo guia para montar a sua. Que tipo de evento, essencialmente mundano*, mas impressionante aos observadores, ocorreu, e que elementos ele possui que podem servir como base para uma religião?
*Ou nem tanto, tendo em mente a possibilidade de magia e fauna fantástica.
Estrutura de cultos
Cultos parecem coisa de gente doida — eles se juntam em grupos, tendem a ser isolacionistas, hostis às coisas externas, seguem costumes estranhos e acreditam em coisas mais bizarras ainda. Segundo o Isaac Bonewits (autor do excelente Authentic Thaumaturgy), isso não é exclusividade de cultos pequeno — segundo ele, mesmo as maiores e mais mainstream das religiões seguem os mesmíssimos moldes de um culto. Isso aí — inclusive a sua religião, muito provavelmente, se você segue uma.
De maneira a demonstrar sua teoria, Bonewits criou o Método Avançado para a Avaliação do Perigo de Cultos, que contém uma lista de características que podem existir em maior ou menor grau em uma religião com características de culto. Ainda que o Bonewits não seja exatamente imparcial — adepto de religião pagã, crente que magia é coisa real, relutante em aceitar fatos científicos… –, sua ferramenta parece bastante precisa. Ainda que não fosse, continuaria servindo para nosso propósito — criar parâmetros para uma religião fictícia. Você pode ler o link com todos seus detalhes, ou se contentar com uma listagem dos ditos critérios, que segue:
Controle Interno: quantidade de poder político e social interno exercido pelo(s) líder(es) sobre os membros; falta de direitos claramente definidos para os membros dentro da organização.
Controle Externo: quantidade de influência política e social externa desejada ou obtida; ênfase em direcionar o comportamento político e social externo dos membros.
Sabedoria ou Conhecimento Alegado pelo(s) líder(es): quantidade de infalibilidade declarada ou implícita das decisões ou interpretações doutrinárias ou das escrituras; número e grau de credenciais não verificadas ou inverificáveis alegadas.
Sabedoria ou Conhecimento Creditado ao(s) líder(es) pelos membros: quantidade de confiança nas decisões ou interpretações doutrinárias ou das escrituras feitas pelo(s) líder(es); quantidade de hostilidade dos membros a críticas internas ou externas ou a esforços de verificação.
Dogma: rigidez dos conceitos sobre a realidade ensinados; quantidade de inflexibilidade doutrinária ou “fundamentalismo”; hostilidade ao relativismo e ao situacionismo.
Recrutamento: ênfase colocada na atração de novos membros; quantidade de proselitismo; exigência de que todos os membros tragam outros novos.
Grupos de Fachada: número de grupos subsidiários usando nomes diferentes daquele do grupo principal, especialmente quando as ligações são escondidas.
Riqueza: quantidade de dinheiro ou propriedade desejada ou obtida pelo grupo; ênfase nas doações dos membros; estilo de vida econômico do(s) líder(es) em comparação ao dos membros comuns.
Manipulação Sexual dos membros pelo(s) líder(es) de grupos não-tântricos; quantidade de controle exercido sobre a sexualidade dos membros em termos de orientação sexual, comportamento ou escolha dos parceiros.
Favoritismo Sexual: progresso ou tratamento preferencial dependente de atividade sexual com o(s) líder(es) de grupos não-tântricos.
Censura: quantidade de controle sobre o acesso dos membros a opiniões externas sobre o grupo, suas doutrinas ou seu(s) líder(es).
Isolamento: quantidade de esforço para impedir os membros de se comunicarem com não-membros, incluindo família, amigos e namorados.
Controle sobre os desistentes: intensidade de esforços direcionados a prevenir ou recuperar desistentes.
Violência: quantidade de aprovação quando usada pelo ou para o grupo, suas doutrinas ou seu(s) líder(es).
Paranóia: quantidade de medo de inimigos reais ou imaginários; exagero quanto aos poderes percebidos dos oponentes; prevalência de teorias conspiratórias.
Rigidez: quantidade de desaprovação de piadas a respeito do grupo, suas doutrinas ou seu(s) líder(es).
Submissão da vontade: quantidade de ênfase em que os membros não tenham de ser responsáveis por decisões pessoais; grau de perda de poder individual criado pelo grupo, suas doutrinas ou seu(s) líder(es).
Hipocrisia: quantidade de desaprovação de ações que o grupo oficialmente considera imorais ou antiéticas quando feitas pelo ou para o grupo, suas doutrinas ou seu(s) líder(es); disposição para violar os princípios declarados do grupo para ganhos políticos, psicológicos, sociais, econômicos, militares ou de outro tipo.
É bem possível que você nunca tenha pensado em uma religião — real ou fictícia — nesses termos. Acredito que seja desejável e interessante fazê-lo — às perguntas ali presentes, respostas muitos interessantes tendem a surgir. Ah, sim, e serve para qualquer religião, não só aquelas definidas como “malignas.”
Religiões “malvadas”
Estas tendem a ser mal desenvolvidas. Chegam a ser caricaturais, uma espécie de “Central da Maldade,” onde se reúnem a Flora (A Favorita) e a Odete Roitman para, sei lá, sapatearem sobre filhotinhos de cachorro e furarem olhos de canários com a ponta seca de um compasso. Aqui entra outro ranço do cristinanismo — de um lado, as religiões “do bem,” branquinhas, com raios solares e plumas alvas; do outro, as religiões “do mal,” onde todos se vestem de preto, se adornam com crânios, devoram criancinhas… Toda religião “malvada” mais parece uma caricatura de (aquilo que se acredita como sendo) um culto satânico, ou talvez um daqueles relatos estereotipados de “ex-bruxas” que fazem testemunhos na “Sessão do Descarrego.”
Quem sabe alguma coisa mais crível; em vez de uma religião malvada-666-from-hell, que tal uma religião apenas auto-interessada? Pense em empresários e grandes corporações — duvido que os envolvidos sejam ativamente malvados, interessados em causar dor e horror. Eles são apenas egoístas — focam em seus interesses próprios e não ligam (ou conduzem forte contorcionismo de consciência para ignorar) para os efeitos colaterais de suas práticas — concentração obscena de renda, emburrecimento das pessoas mediante o incentivo de uma mentalidade consumista… Claro que isto é um extremo — se você for falar com o diretor de uma dessas empresas, ele é bem capaz de convencê-lo que suas motivações são boas. E é bem possível que sejam. Mas é aquela coisa — “de boas intenções, o inferno está cheio.”
Quando for elaborar sua religião antagonista, pense em um objetivo legítimo, mas cujas medidas efetuadas para alcançá-lo gerem efeitos colaterais indesejáveis.
E dê um jeito nas roupas, pelamordedeus. Quando você coloca um cultista “du mau” vestido como se tivesse saído de uma convenção sadomasoquista e tão coberto de ossos que parece que um esqueleto explodiu em cima dele, é praticamente o mesmo que pôr um letreiro em neon em sua testa com os dizeres “Malvado! Me mate!” Tente não ser óbvio.
E o mesmo vale para as religiões “boas.” Não faça-os goody-goody. “Mas o sistema de Tendência diz que…” — mande pro inferno isso. Ele se presta muito bem para gerenciar proibições de magias, itens e classes de prestígio, mas se aplicado para construção de cenário… Repito: de boas intenções o inferno está cheio. Enquanto no D&D existe toda uma retentividade de que “um fiel não pode estar a tantos passos da tendência da deidade, yadda, yadda,” o Eberron, mesmo sendo, a rigor, D&D, manda isso para as favas. E religiões mais interessantes temos, da variedade em que existe corrupção no clero e, portanto, com possibilidades mais ricas. Supõe-se até que na religião da Silver Flame, um culto “do bem,” quem fala através da tal chama-oráculo não é deus algum, mas, sim, um demônio muito esperto.
Considerações finais
Se eu fui capaz em não pisar demais em eventuais calos, pode-se notar que há muito mais sobre religiões do que a informação contida em descrições de deuses de RPG ou até mesmo o conhecimento sobre religiões reais que temos, caso nossa única fonte tenha sido o doutrinamento na religião em questão. Considerar a religião como um fenômeno mundano, mantendo o foco nas manifestações que são inequívocas em sua existência, nos pode ajudar a notar pequenos detalhes que, so outro enfoque, teríamos ignorado. E é bom ter consciência disso — é justamente com estes aspectos da religião que interagimos diretamente, logo, pode-se defender que, na maioria dos casos, é com estes aspectos com que nossos personagens também hão de interagir.
Uma fé inabalável, de certezas absolutas, é algo desejável pelas religiões em seus fiéis, de fato. Mas, se generalizada essa postura, subtraímos a incerteza, que é emocionante. Já em um ambiente em que a dúvida pode florescer, questionando e até mesmo ameaçando a fé, as coisas perdem aquela certeza chata e inabalável. Quando há dúvida e conflito, temos um terreno fértil para as estórias de nossos personagens — caberá a eles definir para qual lado a balança há de pender no fim das contas.
Para finalizar, deixo um exercício de pensamento (para você, leitor, e também para mim, que só pensei nisso após terminar de escrever o artigo): como seria uma religião sem fé? Se deuses são um fato inequívoco e facilmente testável, cuja existência e influência estão acima de qualquer dúvida, como se daria a religião, uma vez que o conceito de fé não se faz necessário? Seria o fiel mais crítico? Seria o deus uma espécie de político ou estrela do roque, preocupado em agradar fiéis e interessados em questões de mercado de crença? Algo bastante empolgante (e possivelmente pouco parecido com religião como nós conhecemos!) pode sair daí.
E reforço: se existem fragmentos de regras que, se aplicados a religiões, as deixam menos interessantes, ignore as malditas regras. A mecânica existe para gerenciar situações e elementos de jogo, “descrevendo-os” sob parâmetros manejáveis. Se, em algum momento, as regras passam de ferramenta para camisa-de-força, limitando suas idéias, em vez de ajudá-lo a dar-lhes forma, não hesite em espremer e torcer mecânicas até que elas se encaixem no conceito que você idealizou. Você manda nas regras, e não o contrário.