Por Brett Huffman traduzido por João Paulo Francisconi
Cidade de Corvis, A Mais Longa das Noites, 593 DR
Ele sabia que se esperasse o suficiente por ele, o tiro viria, mas a luz diurna diminuindo rapidamente ameaçava tornar sua tarefa ainda mais difícil.
Podia sentir a fumaça perfumada do incenso queimando na capela abaixo, a medida que o vento a levava até seu precário posto no campanário da catedral de Morrow. Isso o recordava de quanto ele tinha investido neste negócio. Deuses, como ele odiava aquele cheiro! Mas, ah! O trabalho requeria isso – pelo menos se fosse ser feito corretamente.
Lá estava ela; a brecha que procurava. Para a maioria, pareceria como uma pequena janela em uma carruagem numa procissão quase interminável de carruagens que lentamente fazia seu caminho subindo a Rua Still durante as primeiras horas do Festival da Mais Longa das Noites. Para o atirador, era um abismo enorme, amplo o suficiente para disparar uma bala de canhão por ele, ainda mais uma simples bala.
O pombo rajado de cinza e branco que esteve confortavelmente empoleirado, nos últimos dez minutos, no cano do seu rifle arrulhou suavemente. Alisou com o bico as penas de baixo de sua asa esquerda enquanto uma gota de suor se formava na testa do fuzileiro e caía lenta e inexoravelmente através de sua face aparentemente sem vida. Breve, Lady Thislaina Harlow seria viúva, e Kell Bailoch seria o satisfeito dono do rifle mekânico que tinha em mãos. Ele já havia aberto mão de dois meses de sua vida por esse trabalho em especial. Já estava mais que pronto para acabar com toda a situação. Somente este último assassinato para aquele execrável mago e seu débito estaria totalmente pago.
Poucas semanas atrás, um “Timmon Forsborund” aproximou-se dos sacerdotes da igreja, suplicando que lhe concedessem abrigo. Ele desejava penitência pelos seus pecados contra o bom povo de Cygnar. Os santos homens pouco perguntaram sobre seu passado. Eles olharam fundo em seu coração com suas magias divinas e viram o que eles esperavam encontrar, uma verdadeira alma atormentada precisando de salvação.
Que tolos eles foram! Em sua estúpida fé na “bondade inerente do homem”, os clérigos falharam em ver o que estava perante eles: um assassino completamente frio que os usaria e descartaria como a maioria do entulho.
O “irmão Timmon” ofereceu seu tempo e pagou sua dívida; trabalhando pesado nos jardins, ajudando os pobres e enfermos, assistindo os serviços exigidos, e sofrendo as intermináveis e monótonas bênçãos dos sacerdotes. Ele era o acólito perfeito, leal e inabalável em sua devoção a Morrow. Timmon caminhou pela miríade de salas escuras da catedral, memorizando a disposição da construção inteira e armazenando na memória o necessário. O infiltrado aprendeu cada passagem e câmara iluminada do vasto, ainda que humilde, mosteiro exatamente como conhecia seu rifle preferido, uma arma batizada de Silêncio pelo seu empregador atual.
Em outros tempos, Silêncio era chamado de outra maneira, o nome de um antigo amor, mas isso foi há muito tempo. Foi melhor assim, o que ele fez com o antigo título, da mesma forma como fez há muito com aquela que usava o mesmo nome. O novo nome do rifle parecia se ajustar, já que a arma agora não fazia som de nenhuma maneira, absolutamente. Mesmo o confortável som, ch-chink, que fazia quando engatilhado foi silenciado completamente. Nunca mais ouviria o satisfatório CRACK! de sua detonação, o inevitável prelúdio de uma gratificante morte e outra vítima silenciada para sempre. Poderia até mesmo derrubá-lo na calçada abaixo – como se ele fosse fazê-lo – que não faria nenhum som. Com tal arma, tudo que tinha que fazer era permanecer escondido. Silêncio cuidava do resto.
Foi muito simples infiltrar-se no templo. Antes de sua aceitação na igreja, ele havia desmontado o rifle e escondido as partes em vários lugares próximos da catedral. Durante suas freqüentes idas ao Quadrângulo para adquirir produtos e alimentos para seus “irmãos”, ele rapidamente deslizava em um beco ou outro local para recuperar outra peça de sua arma. Dentro de poucas semanas, já tinha toda sua arma e munição suficiente em seu quarto na igreja. Quase havia sido fácil demais.
Há muito tempo Kell Bailoch estava nessa profissão de assassino de aluguel. De fato ele havia matado tanto para maridos desconfiados quanto para políticos ambiciosos, sempre acertando seu alvo. Agora parecia que estava ligado só a um homem. Ele não gostava disso de nenhuma maneira. Voltando aqueles tempos simples em que ele vagou pela região rural na companhia de seus irmãos mercenários, vendo e experimentando o melhor que o mundo tem a oferecer. Mesmo durante os dias em que ele seguia os dissidentes da Companhia Garra ele havia sido um homem livre. Parecendo um homem completamente comum, ele tinha a perigosa habilidade de se misturar em qualquer multidão e andar despercebido em qualquer lugar. Ele não precisava fugir para os cantos mais escuros dos Reinos como muitos dos seus camaradas; ele podia simplesmente ficar por aí, relativamente.
Foi durante esses dias solitários seguindo a dissidência da Garra em que teve a idéia de combinar duas de suas vocações em algo do qual ele poderia viver “honestamente”. Após os dias de mercenário de Bailoch, ele se tornou um fuzileiro no exército cygnarano por dez anos. Ele aprendeu que o valor das armas de fogo era um precioso elemento em um exército moderno, mas foi durante seus dias como franco-atirador com os Garra que ele realmente afiou e refinou suas habilidades. O inimigo freqüentemente oferecia rendição depois de testemunhar o peito de seus comandantes perfurar em uma chuva de sangue depois de uma bem-colocada bala atravessar suas armaduras finamente trabalhadas. Ah, como Bailoch divertia-se com o poder que detinha, a pureza de uma morte limpa. Jamais houve qualquer sangue em suas mãos ou em sua arma – ao menos literalmente – a única limpeza necessária era a que seu rifle requeria.
Muitos anos depois de se tornar um assassino de aluguel, Bailoch havia aceitado um trabalho em Mercir quando um misterioso mago se aproximou dele. O perpetuamente encapuzado mago estava recrutando “vagabundos” para uma missão em algumas ruínas nas amaldiçoadas terras de Cryx. Ele estava a procura de uma espada mítica chamada Fogo das Bruxas. Bailoch não se importava com esse mago ou sua lâmina fabulosa, apenas que ele pagava bem pelo trabalho, então ele desistiu do dinheiro fácil em Mercir por este trabalho aparentemente mais vantajoso. Mas havia mais uma condição, de qualquer forma. O mago desejava pegar seu rifle emprestado durante um bom tempo, para colocar certas magias sobre ele. Ele desejava que o ruído criado pelo disparar da arma não colocasse em risco a missão. Mesmo que a idéia parecesse absurda para Bailoch, se isso funcionasse o pagamento poderia ser incalculável. O mago parecia ser capaz de realizar aquilo, desde que Bailoch considerasse paga a missão em Cryx e outras missões “a serem anunciadas mais tarde”. Como se a perda desse pagamento não fosse dinheiro o bastante! Depois de entender isso, Bailoch se tornou virtualmente um escravo para o arrogante mago a quem ele veio a conhecer mais tarde como Dexer Sirac, líder da Inquisição.
O rifle retornou para suas mãos semanas mais tarde com suas novas habilidades e nome, de forma alguma pior para usar. Sirac fez algumas modificações necessárias ao design original, que deixaram Bailoch enciumado. O tambor original, que possuia uma inscrição com o nome do antigo amor de Bailoch, havia sido novamente envernizado e agora estampava muitas runas arcanas indecifráveis. Sirac havia assegurado a ele que as modificações eram um ingrediente necessário ao processo mágico e o que estava escrito tinha apenas efeitos positivos sobre o desempenho do rifle. Sirac logo teria a chance para provar a validade da sua afirmação.
A subseqüente missão em Cryx não foi uma falha total; Bailoch e outros três retornaram com suas vidas, e Sirac conseguiu sua espada. Silêncio conseguiu superar todas as suas expectativas, com um desempenho admirável no longo saque naquelas terras amaldiçoadas e cheia de monstros. Durante a travessia marítima até Cryx, Bailoch descobriu que cada membro da tropa havia sido contratado assim como ele havia sido; pagamento adiantado e serviços a serem prestados no futuro. Uma não mencionada ameaça de morte devido ao não pagamento estava sempre sobre suas cabeças.
Meses depois desta dolorosa missão, ele descobriu que era o único membro sobrevivente restante, fora Sirac. Ele não tinha dúvidas de que o mago era o responsável pela morte dos outros. Eles aparentemente faltaram com sua habilidade de pagar suas próprias obrigações. Mas não Bailoch, ele pode executar cada assassinato que Sirac ordenava, sem reclamações ou perguntas, e como antes, jamais falhando. Talvez a arma silenciosa fosse o que ele precisava para manter-se nas graças de Seric, ou talvez ele apenas fosse bom o bastante.
“Tantas mortes por esse amaldiçoado mago… e agora esta será a última,” ele pensou. “Que os deuses queiram…” Nas atuais circunstâncias, provavelmente não deveria invocar quaisquer deuses, ele pensou depois. Ah! É tarde demais agora. Depois de infiltrar-se no solo sagrado de Morrow, uma invocação ou duas são as menores das suas blasfêmias. Suspirando de leve, Bailoch abandonou aquele pensamento.
No lado direito da janela da carruagem ele repentinamente notou a vigorosa e corpulenta face de Dorien Harlow. Ele estava servindo alguma fina bebida cygnarana para sua esposa, Thislaina. Não é uma má pessoa, esse Dorien, Bailoch encontrou-se pensando. Inferno, tanto quanto Bailoch sabia, o homem era um autêntico Arconte se comparado com muitos conselheiros de Corvis.
De fato, a única coisa que condenou esse homem foi estar ao lado da porção do conselho que se opunha a Ulfass Borloch, um homem obsessivo que desejava a execução de um grupo de bruxas, aparentemente dando prioridade a isto e a uma miríade de outras coisas, incluindo a continuação da vida de qualquer um que ficasse no caminho deste desejo. Então, Dorien Harlow se tornou o centro da atenção quando seu voto atrasou o julgamento em vários dias. Após uma longa semana de rigorosa deliberação e cortejo dos dois lados da questão, o conselheiro chegou a uma decisão: ele se juntou ao lado menos reacionário dos argumentos. Harlow decidiu que a cidade deveria abordar o julgamento das bruxas com “a cabeça erguida.” O julgamento ficou parado nos dias que se seguiram a decisão de Harlow. E então Dexer Sirac o chamou mais uma vez. Ele queria por um fim em tudo isso, e ele precisava que o julgamento fosse adiante, com a conclusão final trazendo a destruição das infames Bruxas de Corvis.
“Destrua esse homem que se opõe a mim, e o julgamento e subseqüente execução irão resultar no término do seu contrato. Isto, eu juro,” Sirac havia dito, e Bailoch prometeu se certificar que seria assim.
A vigorosa cabeça de Harlow foi para trás como se gargalhasse quando a bala explodiu seu crânio. A garrafa que ele tinha arrebentou ao cair de suas mãos, e Thislaina ficou ensopada com pedaços de matéria cinza e conhaque. Baixo como um sussurro, vinha o som úmido do esmigalhar do crânio de Harlow, a visão deve ter sido formidavelmente penosa para a pobre dama. O seu grito rasgou o crepúsculo, seguido compulsivamente de vários outros. Os gritos eram levemente ouvidos acima do som de pessoas divertindo-se nas recém-iniciadas festividades da Mais Longa das Noites. Eles provavelmente iriam ser completamente ignorados se a agora-viúva não saísse de sua carruagem, coberta de sangue, tentando vomitar sobre o meio-fio, então levantando a barra de sua saia, e correndo na direção da sua mansão. O humor da multidão mudou imediatamente da celebração para o pânico quando os foliões testemunharam o corpo ensanguentado e quase sem cabeça de Dorien Harlow pendendo da porta aberta de sua carruagem. Pessoas se espalharam em um instante procurando segurança, nenhum deles realmente sabendo o que estava acontecendo.
O bater de asas do pombo e a fumaça que saia da arma permaneceram desconhecidas pela multidão abaixo. A pequena nuvem se tornou tênue e dissipou-se, unindo-se ao sempre presente vapor e fumaça que cobre toda Corvis. Do mesmo modo, Kell Bailoch dissipou-se na noite de Corvis. Muito em breve, o veredicto iria estar certo novamente, e as bruxas seriam sentenciadas para qualquer que fosse o destino que as esperava. Isso não era problema de Bailoch. Seu dever para com Sirac se foi, e Silêncio era sua recompensa. Quanto ao reservado e diligente Irmão Timmon Forsborund, ele não mais foi visto na Catedral de Morrow novamente.