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Negócios de Família

Fazia três semanas que Frank Carson tinha saído da cidade. O caçador vivia no rastro do avô, que partira a negócios, há anos, para nunca mais voltar. Na época, o Xerife enviou uma patrulha para encontrar o velhote, mas os homens retornaram sem pistas e com alguns feridos. Jogaram a culpa numa pequena tribo Lakota que vivia no sopé das montanhas.
Frank era apenas garoto quando seu avô sumiu, mas aprendeu na vida o ditado que evita a morte “se quer algo bem feito, faça você mesmo”. No oeste, depender dos outros era incerto e complicado.
Muito apegado ao avô, não se conformou com o sumiço. Ficou obstinado em encontrar ao menos uma explicação plausível para o caso. Por isso foi até uma aldeia Lakota e passou boa parte da juventude misturado aos índios, como pupilo de Wauake Dançarino sob Estrelas. Sabia que o avô era bem visto entre os selvagens, inclusive mantinha fortes amizades com os peles-vermelhas. Não podia ter sido morto por aquele povo.
O velho xamã o acolheu e ensinou tudo que  sabia, fazendo de Frank um exímio rastreador. Esse tempo foi responsável por abrandar seu espírito selvagem, mas Wauake sentia que Frank só descansaria ao saber da verdade. No entanto, ele precisaria ver. Isso, apenas no momento certo, quando estivesse pronto para a jornada do guerreiro.
Agora viajava por contrato com o Xerife, no encalço de um urso que  criara problemas. Do seu lado iam dois pistoleiros mercenários. O frio congelava os ossos e o vento emitia as lamúrias das almas de diversos bravos guerreiros Lakota de outrora, expulsos de suas terras pela ambição do homem branco.
— A partir deste ponto vamos ter que deixar os cavalos.
Os pistoleiros desmontaram, pegaram provisões e puseram-se no caminho indicado pelo caçador meio homem, meio índio. A trilha não era fácil, a a neve impedia o avanço e diversas foram as vezes que o grupo precisou montar acampamento e esperar a trégua do tempo.
No sexto dia de viagem já ganhavam terreno com facilidade. Estavam em um pequeno vale com a copa de diversas coníferas os protegendo do frio montanhês. Armaram acampamento e os pistoleiros sentaram em volta da fogueira. Frank estava recostado em uma árvore limpando seu Winchester 73, quando levantou e o apontou para o vazio que a escuridão criava naquela noite. Sussurrou:

Como desejaria vagar na noite

Contra os ventos.

Vagar na noite

Quando a coruja ulula.

Como desejaria vagar.

Os pistoleiros sacaram as armas e olharam curiosos para Carson, em seguida uma coruja cantou. “Ele é mesmo um doido”, pensaram. Logo em seguida, um brado de guerra e flechas voando contra os homens: um foi atingido na perna e caiu, disparando a colt army a esmo contra as sombras que protegiam os agressores.
— Carson, seu maldito! O que é isso? — disse o outro mercenário ao buscar cobertura em uma árvore.
— Crows. Os mesmos que mataram meu avô!
Frank disparou e ouviu um grito de dor. Correu até a fogueira aproveitando o tiroteio. Catou pedaços de lenha em chamas e atirou na direção de onde vinham as flechas. Correu até os pistoleiros. Um segurava o chapéu sob o peito e fazia preces, o outro recarregava o revólver.
Frank preparou um disparo e viu o vulto de um urso atacando os índios que os assaltavam. Acertou o tiro e o animal se levantou nas duas patas, urrando, para depois sumir no breu.
Agora só restavam gemidos de alguns feridos. Haviam encontrado o rastro do urso assassino, mas o urro daquele animal havia causado estranheza em Carson. Ficara intrigado pois nunca ouvira algo parecido, pelo menos entre ursos.
Sacou sua faca de caça e foi até um Crow que agonizava com sangue em profusão brotando de seu peito estraçalhado. Não eram garras de urso… Achou outro  ferido e pressionou sua faca no pescoço do pele-vermelha até sentir um filete de sangue escorrer. Foi quando disse: — Quem, ou o que os atacou? — Os olhos do inimigo estavam imóveis e marejados, cegos de pavor.
Wihtikow — respondeu o Crow antes de morrer.
***
— Mudança de planos: vou até a aldeia Lakota, fica a dois dias daqui. Preciso descobrir o que vamos enfrentar. Não é um simples urso. Se quiserem podem me acompanhar, caso contrário sugiro que esperem na beira do rio, onde os encontrarei para seguirmos.
— Não vamos ficar aqui com esse urso a solta. Você conhece a floresta, não eu! Nós vamos juntos. – respondeu Jeremy.
— Só vamos devagar, minha perna está ferida. Ainda posso caminhar, mas estou manco. — Era Buck, o outro mercenário.
— Tudo bem, mas não vão entrar na aldeia. — Assim deram meia-volta e seguiram até a aldeia Lakota.
***
Chegando na aldeia, Carson foi ter com Wauake: — Ancião, preciso de sua sabedoria — Era Carson, respeitoso — Fui atacado por um bando de Crows na entrada do vale e o urso que estou caçando os matou. Acontece que os ferimentos não foram causados por um urso, e o urro daquele animal é diferente de tudo o que eu já ouvi. Diga-me sábio Wauake, aquele que dança sob as estrelas, que fera ataca o homem com tamanha brutalidade? O que significa Wihtikow?
— Onde ouviu isso?
— Um Crow me disse antes de morrer, estava apavorado. — Wauake sentou-se, deu um longo suspiro e se pôs a preparar seu cachimbo. — Além do próprio homem só há um ser. Muitos pensam que é uma lenda para assustar nossas crianças, mas é real — Wauake acendeu o cachimbo e deu uma longa baforada na cara de Frank.
— Tem uma coisa que quero lhe contar, meu filho, ouça com atenção. Segundo as crenças do nosso povo o Wihtikow é o que acontece quando um homem passa muito tempo sem se alimentar no inverno e se rende ao canibalismo. Comendo a carne dos seus iguais. Com isso, se torna um amaldiçoado, vicia-se em carne humana e vira um monstro. Suas habilidades são ampliadas a cada coração que devora, e essas bestas podem viver por décadas, hibernando em suas cavernas, como ursos, até despertar para saciar sua fome. — Carson ouvia com atenção, a tenda parecia encolher e a luz bruxulear — O Wendigo, como o homem branco chama, foi quem matou seu avô. Ele e seus homens foram vitimas de uma avalanche e ficaram fracos, presas fáceis para o monstro.
— Como é? O que disse? Não foram os malditos Crows? — A raiva cegou Carson e ele saiu da tenda do Xamã. Foi até a beira do lago e caiu de joelhos com as mãos na face. Lagrimas corriam e urrava de raiva.
Tatanka, irmão de criação de Frank, colocou-se ao lado do amigo. Pousou levemente a mão em seu ombro e apertou com força. Carson, que até então tinha esperanças de rever o avô, morria por dentro. Precisaria encontrar um novo sentido para a vida. A jornada do guerreiro começava agora.
***
Após passar pelo ritual do guerreiro, Carson estava coberto de pinturas e símbolos místicos. Vestiu roupas tribais, recebeu um arco, flechas e uma machadinha Tomahawk. Junto, carregava seu velho rifle. Partiu até o ponto de encontro com os mercenários, na entrada de uma trilha escondida. Os homens não estavam lá, segundo as pegadas tinham ido para o leste. Frank não tinha tempo de seguí-los.
Voltou para a floresta do vale, realizando pausas breves para refeições e descanso até que encontrou o primeiro sinal da besta: sangue. A neve estava manchada em um imenso borrão vermelho que denunciava um corpo carregado de arrasto.
O caçador seguiu a pista até encontrar pegadas nítidas do que deveria ser o Wendigo. Sua espinha gelava em um misto de medo e raiva da criatura. O rastro seguia até a boca de uma caverna, no pé das montanhas, do outro lado do vale. Com o rifle em mãos ele ganhou seu interior, onde pode ver uma pilha de ossos humanos mastigados. O fedor indicava morte. E ele encontrou a morte no corpo de Jeremy, um dos pistoleiros que agora não tinha mais as pernas e metade do tórax. Fora devorado.
Click. Sentiu o metal encostar-se à nuca.
— Se você soube chegar até aqui, vai saber como sair. Aquela coisa matou Jeremy, e vai nos matar. Ou me leva embora ou terei muito prazer em puxar o gatilho e abrir um buraco na sua cabeça. — Era Buck.
— Acho melhor ir embora, vim para matar o Wendigo.
— O quê? Você está louco, homem? A convivência com os selvagens afetou seu discernimento? Tenho uma arma apontada pra você, vai fazer o que eu mando ou morre! — Mas Buck morreu, alvo de um machado. Carson olhou pra trás e viu três Crows entrando na caverna com os olhos do caçador que acha sua presa.
Avançaram e ele bloqueou os golpes com o rifle. Um ataque foi tão forte que danificou a arma. Frank a girou sobre a cabeça e acertou a face de um Crow, que caiu.
Sacou a Tomahawk e arremessou no peito de outro, fazendo o sangue respingar em seu rosto. Esquivou-se dos ataques do último e segurou seus braços em uma disputa de força. O Crow lhe deu uma joelhada que fez o caçador recuar e dobrar-se, aproveitando para sacar sua faca. O índio avançou e distribuiu golpes que poderiam ter degolado Frank, mas ele se esquivava como podia, até que conseguiu uma brecha na defesa do inimigo para estocar com a faca e perfurar a carne macia daquele índio, que agora jazia aos seus pés.
Então ouviu o urro. Vinha do fundo da caverna. Recuperou a machadinha e preparou o arco. Riscou um fósforo e acendeu a ponta da flecha, embebida em óleo. Avançou, atento.
Serpenteou pelos corredores largos daquela formação rochosa e viu uma criatura diante do que parecia ser outra entrada daquela toca. Estava de frente com Wendigo. Quase 2 metros de altura, corpulento, peludo. A face, sem pelos e enrugada, revelou uma imensa bocarra com dentes que pareciam pontas de flecha. O Wendigo urrou e correu na direção de Frank.
O caçador disparou sua primeira flecha, e mais outra e outra. A criatura ignorava as setas que se cravavam no couro e ganhava a distância que a separava de sua presa.
Frank largou o arco e correu, conseguiu se enfiar em uma reentrância da caverna que a fera não poderia acessar. Ela ficou do lado de fora o encarando, tentando forçar passagem por aquele corredor estreito. Frank via a fera babando a cada urro, quando, de repente, sentiu uma intensa fisgada na perna: a criatura cpnseguiu forçar seu corpo no estreito e atacar o homem. Frank perdeu o equilíbrio e caiu pra frente, golpeou as garras do Wendigo com a Tomhawak. Não fosse isso elas cortariam sua cabeça. Forçou-se mais pra trás e então a besta sumiu. Trégua.
Aos poucos saiu de sua posição defensiva. Tinha que matar a fera, não se esconder ou fugir. Nenhum sinal da besta. Caminhava com passos leves, precisos. O único ruído audível advinha da tempestade que caía lá fora. Vez ou outra um trovão assustava o caçador, mas o Wendigo tinha ido embora. Apanhou seu arco e foi até a entrada da caverna. Devido ao corte, tinha dificuldade para firmar o pé esquerdo no chão.
De repente foi atropelado pela fera que surgiu do nada. Foi jogado longe com o encontrão. Seu arco foi parar na extremidade da caverna e a Tomahawk no lado oposto. Sentiu uma dor intensa. Sacou a faca.
A criatura circundava a sua presa analisando o melhor momento de atacar. Foi assim que desferiu um poderoso golpe no peito do caçador, atirando-o pra trás. Frank recebeu a patada e foi jogado contra a parede. Sentiu um osso do braço partir e gritou de dor. Caiu próximo a machadinha, mas ainda não alcançava a arma. De pé, com dificuldade e com um braço inutilizado, ele percebeu que o Wendigo se divertia matando-o aos poucos.  Arremessou a faca no peito da besta, como distração, e pegou a Tomahawk. A criatura arfou o peito como um gorila que demonstra poder e Frank se atirou contra a besta: — Você matou o meu avô! Morra! — Disse o caçador antes de enterrar a machadinha na cabeça da besta e olhar enquanto ela se mostrava incrédula com o que acabara de acontecer.
***
A fúria é uma grande força incontrolável, nos leva a feitos improváveis. E é a única coisa que, na ausência da coragem, é capaz de vencer o medo. Foi a fúria de Frank que o salvou. Ele não entendeu o motivo, mas soube que, após sua sentença, a criatura acatou aquilo como ordem e se rendeu a morte. O olhar do Wendigo denunciava surpresa e sofrimento. Era até  familiar. Wauake errou: o avô de Frank como ele conhecera, estava morto. O que se tornou ao longo dos anos só morreria pelas mãos de seu neto, em um desses negócios de família.
Tiago Lobo

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