Enfim morreu. Sabia que isso um dia iria acontecer. Todas aquelas idas e vindas, fraturas por descuido, escoriações pela mania de se enfiar em cada canto da casa. Parecia anormal. Vivia a seu modo, desleixada, em meio a restos de comida, embalagens vazias e tudo o que pudesse desbravar.
No fundo, Antônia era incompreendida. Ninguém lhe dava atenção. Ai de quem disser que não foi feliz! Nunca achou um par, fato, mas não se mostrava aflita com isso — Tinha mesmo é medo das botas desajeitadas que enlameavam a casa onde vivia, com Dona Maria. Ia ao delírio quando uma nova caixa de pizza era deixada em cima da mesa.
Sempre soube que podia morrer, a qualquer momento, mas a vontade de fazer parte daquela família e juntar-se a mesa na hora das refeições percorria seu pequeno corpo. Nunca pensava nas conseqüências.
A pior parte do dia era no final da tarde, quando sentia o ribombar das passadas firmes e serelepes de Darla, filha de Dona Maria. A menina tinha apenas oito anos, mas a curiosidade e vontade de fazer experiências com qualquer coisa que pudesse se mover tinha nascido nela. De todas as pessoas, Darla era a que mais visitava os pesadelos de Antônia.
Ela era simples, vivia desapercebida entre a família de Dona Maria. Assim como eu: era vizinho daquela gente fazia uns doze anos e podia contar nos dedos as vezes que me cumprimentaram e olharam-me nos olhos. Faziam-me invisível, me diminuíam.
Quando Darla nasceu, lembro de ouvir uma conversa onde o casal cogitava se mudar. O argumento era de que um vizinho bêbado e esquisito não seria boa influência para a garotinha. Ora, nunca gostei de crianças! Nem de gente… Eu me mantinha irredutível dentro da segurança da minha cabana, com cortinas bloqueando o sol desde que minha esposa falecera. Ninguém vinha me ver e meu único contato se dava nas poucas vezes que recebia um “olá” desagradável de Darla, que insistia em se fazer simpática, com um sorriso infantilóide.
Foi através da pirralha que eu conheci Antônia, elas brincavam juntas na frente de casa. No instante em que coloquei os olhos sobre ela me apiedei do estado humilhante em que se encontrava. Não era tratada como gente, mas como uma qualquer. Andava de um lado a outro, aflita, atrás de migalhas de pão, e qualquer farelo ou resto que caísse da mesa naquelas fartas refeições que Maria preparava. Isso me causou tal revolta que passei a levar comida, escondido, para Antônia. Eu enfrentava o sol na hora do almoço e a lua durante o jantar, tudo para confortá-la.
É bem verdade que Antônia frequentava a minha cama em algumas noites frias, e como bom vizinho que era, fazia de tudo para a família de Dona Maria não suspeitar.
A diferença de idade não impedia de me deitar ao lado de Antônia. Ela gostava: percorria todo o meu corpo com seu tatear desajeitado, me rendendo aos melhores prazeres, para só depois se esconder entre as grossas cobertas de lã e esperar mais um dia nascer.
E foi após uma dessas noites proibidas que Antônia sumiu.
Nunca mais a vi. Passaram-se dias e depois semanas até que criei coragem para ir ter com Dona Maria. Será que tinha descoberto as visitas noturnas de Antônia? Se fosse o caso de seu sumiço, o que diria em minha defesa? Sem pensar, saí de casa com meu velho roupão encardido. Bati na porta de Maria e ela, com a cara fechada e aquelas bochechas gordas, me deu um “Olá” seco e a contragosto. Algo havia acontecido, ela sabia de alguma coisa…
— Olá Dona Maria, vim fazer uma visita e ver como está a pequena Darla, a senhora e seu Jerônimo.
— Mas são 4 horas da madrugada, o senhor não dorme?— Quando falou em dormir entendi que todos estavam cientes do meu caso com Antônia. Por isso desconversei. Ganharia tempo para descobrir pra onde eles a haviam levado.
— Oh, sim, Dona Maria. Claro que durmo, no entanto algo de muito ruim me acometeu nesta semana. Estou doente e gostaria de um pouco daquele chá que só a senhora sabe fazer. Acho que é gripe, sabe? Ando com dores no corpo, febre… Faz parte da idade, também.
— Ora, devia ter dito antes. De dia, de preferência. Mas entre, vou preparar o chá. Só faça silêncio, Darla está dormindo.
Assim que entrei na casa me sentei no sofá. Dona Maria foi para a cozinha e eu conseguira a oportunidade ideal para encontrar Antônia. Ela costumava dormir ali, pelos cantos, como uma escrava. Vasculhei cada milímetro do ambiente e resolvi checar o quarto de Darla. Com cuidado e passadas macias ganhei o cômodo da menina. Eu nunca devia ter entrado ali.
Quando me dei conta estava em cima de Darla, minhas mãos envoltas em seu pescoço frágil, que estalava na medida que eu impunha mais força contra a menina. Ela estava roxa, olhos esbugalhados e chorosos, a garganta balbuciando gritos abafados. Não resistiu muito tempo e ficou mole como um peixe que para de se debater nas mãos de um pescador.
Cheguei na cozinha e Dona Maria estava de costas, servindo biscoitos em um pires para acompanhar meu chá. Não resisti, catei a primeira faca que achei e a cravei repetidas vezes na velha gorda e nojenta que sempre me oferecia chá com bolachas dormidas.
Seu Jerônimo nem se deu ao trabalho de levantar, só perguntava, rabugento, sobre o barulho. Aquele inútil era aleijado, ou “herói de guerra” como preferia. Então saí da casa, busquei uma pá no quintal, e segui para o quarto do herói que não enfrenta seus vilões. Espanquei-o até a morte, até ouvir seu crânio rachar e ver seu cérebro vazar perto da orelha. Feita minha vingança chorei. Chorei por Antônia, minha única amiga e ao seu modo amante. Só ela me visitava, minha companheira fiel. Tonta, nunca sabia que direção seguir, mas mesmo assim fiel.
Após me recompor enterrei aquela família em uma cova rasa, nos fundos do quintal da casa de Maria. Chorei, ao segurar o sapatinho de Darla, aquela criança do inferno!
Dias depois fui preso e aqui estou, em uma cela, encarcerado. Os policiais me chamaram de louco e psicopata. Não entenderam meu ódio ao ver Antônia esmagada, patinhas partidas, e couraça rachada sob o sapato de Darla, a verdadeira assassina. Tampouco entenderiam meu amor por uma barata.