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A vitória do falso: a fantasia no centro do jogo

Ah, os feriados! Tempo de vagabundagem permitida para uns, tempo de trabalho sacana para outros, este é o momento para recomeçar os trabalhos blogueiros (no meu caso).
Se abril é o mês da mentira, é uma boa hora para pensar nas vantagens da mesma. E se um post sobre engodos e farsas pode muito bem ser uma ideia bacana, o assunto de hoje é outro. Quero falar um pouco sobre o poder gigante da fantasia no RPG.
Muito já se falou sobre o quanto de “medieval” temos na literatura fantástica. Acho que essa preocupação em separar a ficção da realidade histórica “real” é uma maneira de libertar a imaginação dos ditames da regra da verdade. Ou pode ser ainda apenas a vontade de separar as coisas e evitar confusões e exigências bestas – o que dá no mesmo. Ninguém gosta de gente apontando a incoerência do cenário em termos de comparação com a Terra. Pelo menos, ninguém gosta disso o tempo todo. Se o uso da pólvora se difundiu depois do enfraquecimento do feudalismo na Baixa Idade Média isso não precisa ser verdade em cenários fictícios. Além disso, até as aparentes relações de dependência que a história nos mostra (o canhão passaria a diminuir o valor das muralhas) não são tão convincentes em cenários com outro roteiro, outros recursos e dotados de lógicas diferentes.
Olhando as opções de RPG e o comentado mundo das escolhas de produtos do gênero, dá pra ver o quanto a fantasia (na imagem de Dungeons & Dragons e de seus imitadores) tem reinado sobre as mesas brasileiras desde o começo dos anos 2000 (com o lançamento tumultuado e aclamado da 3ª edição do jogo). E não, não falo com base em dados tabulados, mas dane-se. A experiência particular e o contato com outras experiências e leituras particulares também nos dizem coisas.
Isso significa que esse gênero é “o melhor”? Claro que não, se estamos falando de um rótulo vago e que aponta para o “gosto” individual, para as inclinações pessoais da imaginação de tanta gente.Mas, só pra jogar uma  lenha boazinha na discussão é bom acrescentar: sim, se estamos falando da facilitade com que a fantasia se apresenta e dos caminhos que ela oferece ao rpgista novato.

As vantagens do puramente fictício

Uma lista limpa contaria com o seguinte: 1) A fantasia traz grande liberdade de criação, 2) o fantástico tem poucas exigências de “conhecimento”, 3) cenários irreais tem “climas” ou “tons” abertos e descompromissados em primeira instância e 4) a linguagem de apresentação da fantasia tende a ser ampla em termos de diferentes faixas de idade.
Antes de explicar o que quero dizer com cada ponto – assumindo que é possível explicar mais – é bom definir, a partir de agora, a fantasia da qual falo: A) falo de fantasia “medieval”, nos termos de D&D, de Reinos de Ferro, de Tormenta, B) falo de versões caricatas de realidades “modernas” (como cenários de anime, mangá e super-heróis).
A partir daí não é complicado entender o que quero dizer com “liberdade de criação”. Sei, por experiência própria, que cenários modernos de ficção – como o Mundo das Trevas – permitem uma grande liberdade criativa. Sei ainda que, isso depende de cada mestre. Mas sei também – e portanto defendo as idéias seguintes – que não há liberdade maior do que mundos criados além da lógica da história da Terra. A possibilidade de criação de personagens e enredos em mundos onde magia e super-ciência são coisas do cotidiano (em cenários high fantasy) é o primeiro passo. Podemos juntar a isso o poder de criar plots universais como guerras, nações ou divindades que afetam diretamente o plano do jogo.
Antediluvianos e Magos Mestres da Esfera das Forças destroem esse meu argumento fácil. Não fosse o fato de que o surgimento deles em uma crônica parece incomodar os mais puristas ou os fãs de histórias sem NPCs estapafúrdios e dragonballzeteiros. Se ligarmos a isso o fato de que o mundo moderno pode abrigar grandes plots como Guerras Secretas entre Anjos e Demônios, aceito sem titubear que a mesma liberdade é alcançada. Mas ao mesmo tempo pergunto: um cenário ou uma história assim não se torna um cenário de fantasia?
Quando penso no pouco sucesso da ficção científica no Brasil não consigo mais me espantar. Sou fã de Asimov e das fantásticas proposições neoplatônicas de um Matrix (o primeiro!). Mesmo assim, me sinto sempre mais a vontade lendo as loucuras pouco explicativas de um Douglas Adams (O Guia do Mochileiro das Galáxias e suas continuações) ou viajando no absurdo sensacional de Guerras nas Estrelas (sendo essa última paixão partilhada por uma massa considerável aqui nas terras tupiniquins). Lembrar que o fantástico nos desobriga de um estudo ou de conhecimentos detalhados de coisas obscuras é um caminho até pacífico para aceitar sua “maligna dominação”. O lazer e a imaginação, acredito, são atividades que nos cobram pouco tempo e que funcionam bem sem regras severas. Alimentar com racionalidade, coerência e conhecimentos arquitetônicos uma campanha é a mais justa adição nerd a essa coisa de imaginar. Mas não é pré-requisito. E ainda convida a pensar: todo jogador de RPG é mesmo um “geek” ou um “nerd” no sentido “amo-ciência-cara!”?
Então chegamos no espírito de uma sessão. Como você joga Vampiro: O réquiem? Está mais para um “Entrevista com o Vampiro” ou mais para “Blade? Um dos dois é correto? Não. Um dos dois fala do tipo de expectativa que a leitura do livrão vermelho gera? Teimo que sim.
Em outro artigo insisti no uso mais leve do horror em jogos de horror (jabazito). Não é novidade. A proposição é bem típica de narradores que entenderam que crônicas de Storytelling funcionam melhor como episódios diversos de Supernatural e de filmes como A Múmia do que como uma tentativa teatral mais séria. É a vida. Existem os que conseguem grandes feitos, mas é cada vez mais raro achar três ou quatro amantes da interpretação dramática para sustentar o segundo tipo de “modus jogandi” (latim fuleiro? Como assim?).
Em fantasia (medieval ou prima) os jogos são apresentados com cores. Com exceções valiosas como Ravenloft, os mundos fantásticos que chegam ao Brasil tem uma leveza descritiva e uma diversidade de plots prontos que permitem histórias com trechos sérios e cômicos sem grandes frustrações. Não está escrito – salvo em letras miúdas que me escaparam – que alguma severidade deve ser esperada em campanhas onde criaturas de múltiplas raças lutam com dragões para salvar reinos onde a magia pode ressuscitar os mortos. Não estou banalizando o extraordinário com essa fala! Estou aproveitando os exageros possíveis para pensar o quanto eles dançam na corda bamba da coerência. E isso é ótimo!
Pra fechar essa linha de raciocínio metida a esperta, lembro dos pequenos. Os marmanjos adoradores de dados como eu tem histórias sobre o começo no RPG. E eu sei que muitos aqui, filhos da década de 1990, vão falar do acesso via Vampiro e seus parentes. Ainda assim a facilidade geral que cenários de fantasia trazem para a iniciação de jogadores de 13 ou 14 anos não pode ser deixada de lado. A relação entre imaginar coisas impossíveis e aderir ao jogo onde “fazer de conta” é a pegada também não. Descrições enxutas, imagens bacanudas, monstros e ítens mágicos como elementos da proposta definem a fantasia como uma enorme simplificação textual e um forte apelo visual. A primeira pode até ser desenvolvida ou aloprada por suplementos e variações. Mas a segunda continua firme como um tipo de abordagem que não exige grande abstração – i.e. para ser entendida por qualquer um, jovem ou não, gênio ou não.

Acertando os pontos

Existem defeitos? É, eles estão lá. A fantasia pode ser sempre mal recebida por gente mais velha, afeita a tratá-la como bobagem, coisa de criança. Figurinhas com 15 ou 16 anos podem até ter essa aversão, só pra garantir uma maturidade nascida na rejeição a tudo o que lembra o infantil. Fora isso a fantasia precisa de suas amarras, naturalmente. E aí a escolha do cenário vai diminuir o poder do ítem “liberdade”. Halflings não existem nos Reinos de Ferro e inserir um pode ser fácil, mas aceitar um meio-dragão não – tomando o papel dos lagartões em Immoren. Outros pontos negativos vão ser provavelmente citados (espero). E isso só garante que nenhuma modalidade é perfeita. Mas não garante nenhum relativismo radical do tipo – ah, todos são igualmente bons para todos.
Mas por que teimar contra todos os relativismos possíveis dessa coisa tão democrática que é decidir o que nosso bom RPG constrói? Os motivos tem a ver com um mania recém-adquirida de pensar esse negócio de “mercado” e o campo paralelo que é a “comunidade”, o espaço público de jogadores (isso existe?). Mas não é simplesmente uma tentativa de bater o pé exigindo novas marcas de fantasia – tudo demais é Galvão Bueno. Adoraria ver novidades surreais como Mouse Guard RPG por estas bandas. No entando, o motivo principal ainda é começar uma boa conversa sobre o tipo de título que faz “sucesso”, que tem boa aceitação e boa resposta (em termos de números) por estas bandas. Não sou empresário do ramo. E essa discussão não precisa afetar minha forma particular de jogar, muito menos a sua. Nenhum dos meus argumentos alcança a sua mesa e a sua vida particular se você não quiser. Mesmo assim, ainda sou um curioso sobre aquilo que nos afeta de maneira mais coletiva e indireta (Qual linha sobrevive? Qual ganha suporte? Qual ganha romances que não serão descontinuados? Por quê?).  Sem falar que… não custa nadinha pensar e perguntar sobre esses trens, ça va?
Até já.

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