Algumas editoras costumam entrar nas brincadeiras desta data em que impera o senso de humor duvidoso. Este é o caso da Wizards of the Coast, cuja veia humorística me parece no mínimo peculiar. Este ano, eles atacaram com um suplemento fake entitulado Roll-Playing for Roleplaying. A palavra “atacar” não foi escolhida por acaso — é notório o hábito desta editora de rebater críticas com ridicularização — lembram-se de uma animaçãozinha deles em que os críticos da edição mais recente de seu RPG são retratados como um troll sobre quem um dragão descarrega uma barrada de esterco? Ou a planilha de personagem fake para a 4a. edição, antes de seu lançamento, que trazia o campo “Edição: 4.__”, como se o receio de uma revisão logo após o lançamento fosse ridículo — mesmo eles tendo lançado uma 3.5 sem nem mesmo o cadáver da 3.0 ter esfriado direito! Pois então, na piada de 1o. de abril deste ano, parece que o hábito continua forte.
Segue uma tradução livre, seguida de algumas observações:
Brandir espadas e lançar feitiços em combate contra criaturas fantásticas não é tudo o que você quer fazer em um jogo de D&D.
Poderia haver uma ocasião em que você quer que seu personagem faça algo radical. Talvez você queira conversar com um NPC. Pode ser que você queira exibir uma característica peculiar ou maneirismo. Poderia até haver a oportunidade para usar um chapéu interessante ou coisa assim.
Evidentemente, você necessitará de regras detalhadas, listas e tabelas para fazer coisas que poderiam simplesmente ser feitas com uma descrição criativa de suas ações. É aí que você recorre a Roll-Playing for Roleplaying — o livro de regras mais completo para gerenciar todas as outras coisas que seu personagem faz.
Nunca antes houve regras de D&D como estas. Talvez seja porque você não precisa delas.
Pela Galáxia, por onde devo começar… Já sei, pelo início, a mensagem velada de que “Cacete, é muito R0X matar bichos e jogar magias neles! Por que você quereria fazer aquelas outras coisas sem graça?!”
Uma coisa pode ser notada — na cabeça deles, D&D parece ser o único RPG que existe. Ou isso ou há algum filtro bizarro que os impede de notar qualquer jogo em que os projetistas não tenham tido a cabeça enterrada no buraco do game design da década de 1970. Você sabe reconhecer as características destes fósseis — as regras lidam quase que apenas com combate, visto que “combate não pode ser interpretado” (um equívoco comum), ao passo que todo o resto é satisfeito com um nível variável de caracterização que, mesmo no extremo do zero, em nada afeta o jogo. Um jogo de interpretação onde é perfeitamente possível não interpretar. E é o esperado — foi um wargame transformado em outra coisa, logo, no seu estágio “Lucy,” era quase indistinguível de um wargame regular, com a interpretação “jogada em cima,” sem qualquer preocupação em, de fato, integrar esta nova (para a época) característica às ferramentas que facilitam a tomada de decisões e o andamento do jogo. Só que o tempo passou — mais lentamente para a Wizards, ao que parece.
Outro indício de que a cabeça deles está enterrada bem firme na década de 1970 é o fato de achar que, para gerenciar ações fora do escopo do combate, você vai precisar de um volume obsceno de regras. Queridos projetistas da WotC: não é apenas porque o sistema de regras de vocês é excessivamente pesado e recheado de minúcias que as coisas precisam ser assim.
Há muita coisa além do D&D em termos de projética de sistemas, e usar de artifícios mecânicos para delinear ações fora do escopo do combate não requer “listas e tabelas,” como mostram sistemas como o do Houses of the Blooded, o FATE e o PDQ, apenas para citar alguns.
Portanto, meninos da WotC, não é simpático tentar ridicularizar uma demanda legítima, a de se querer sistemas que gerenciem ações (blasfêmia!) além do combate de uma forma mais interessante que apenas “rola perícia aí.” E tampouco tal demanda se resume a coisas “radicais” como “falar com um NPC,” “exibir um maneirismo” ou “usar um chapéu interessante.” Já ouviram falar de conflitos não-porradeiros? Ou de mecanismos de estória, que apimentam a trama e facilitam o trabalho do mestre? RPGs mudaram um bocadinho desde os anos 70 do século passado até o presente momento. Vai ver esse memorando não circulou pelos escritórios da WotC.
Eu sei que vocês tentaram, de coração, dar um jeito nisso com os skill challenges, mas vamos convir que ficou meio sem sal. Mas o fato de vocês não terem conseguido não faz, automaticamente, necessários sub-sistemas ricos em tabelas para que se obtenha sucesso na empreitada. Ou que seja ridículo sequer tentar.
Dar espadadas e lançar feitiços contra monstros fantásticos cansa depois de um tempo. E se a maioria das coisas interessantes que eu quiser fazer for apenas na base do papo, entro para um grupo de teatro, e não um de RPG.
(Nota: Houses of the Blooded de fato traz uma regra para algo “radical” como “usar um chapéu interessante” — roupas e outros itens maneiros permitem acumular mais Pontos de Estilo que o normal. E nenhum exército de tabelas precisou ser invocado para tal.)
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Um breve edit em face aos comentários, para esclarecer alguns pontos:
1. Queridos, eu sei que o D&D vende mais — e adivinhem só, isso não faz a menor diferença. Como jogador e apreciador, vendas dessa ou daquela marca não me afetam, pelo menos não diretamente. Se eu fosse — ou, no caso, se você for — lojista ou empresário do ramo, aí seria outra história. Me interessa o jogo em si, seu design — uma das razões por que gosto de conhecer sistemas diferentes –, e são essas as coisas que avalio. O fato de 10, 100, 1.000 ou 10.000 terem adquirido o mesmo jogo que eu não tem a menor importância — eu vou gostar ou não de um jogo pelo que está escrito em suas páginas, e não pela verba do departamento de marketing da editora ou uma “satisfação” de estar com a maioria. Escolho minhas bebidas pelo sabor, não pelo rótulo. Em suma: você edita, produz ou comercializa livros de RPG? Se a resposta for “não,” por que raios o que vende ou não vende te interessa tanto como jogador?
2. Se você é apenas familiar com o tipo de sistema “fóssil” que citei, o argumento está certamente perdido — o que escreveu a WotC faz mais sentido e tem mais graça se tal paradigma de sistema for o único que você conhece. Mas não é o único que existe — inclusive incluí alguns links para demonstrar isso. Se você não os leu ou não é familiar com seu conteúdo, simplesmente não terá acompanhado toda a progressão do raciocínio — e é sempre problemático dar um parecer sobre algo com base em informação incompleta.
Eu sei que o market share influi na divulgação de um sistema, e por isso ele pode ser desconhecido para você — mas não é como se esses sistemas já não tivessem sido divulgados e discutidos aqui nesse blogue. Eu provi meios fáceis de s ter acesso a tal informação — logo, eu não aceito argumentos baseados no não-conhecimento. (E muito menos baseados em preguiça, caso seja essa a razão de não ter lido.)