Da mesma forma que acontece com um caminhão de sistemas de jogo, os contistas de plantão na internet-rpgística-blogueira-desocupada resolveu se unir para criar uma Iniciativa de Contos… o que eu achei muito legal e me prontifiquei à participar.
O nome do grupo é Liga Narrativa, e aparentemente irá trazer uma história por mês para vocês, em vários blogs. Como ninguém começou ainda, nem tenho quem linkar ou tudo o mais… mas aos poucos a gente se organiza, com direito a logotipo, fogos de artifício e cervejada. Então, após essa breve explicação igual a minha cara, vamos à minha contribuição com o tema do mês de Fevereiro: Começos.
Começos
Marlon “Armageddon”
A ninguém darei por comprazer, nem remédio mortal nem um conselho que induza a perda – Juramento de Hipócrates.
Ou, como Paulo costumava dizer durante a recém terminada faculdade de medicina, Juramento dos Hipócritas. Médicos atores, que dão esperanças à quem não mais a têm. Mostram saídas que levam cada vez mais ao fundo do labirinto, remarcam consultas e agendam visitas contabilizando os atendimentos para receberem seus trocados dos planos de saúde como se pudessem fazer alguma coisa. Como se sua mera presença fosse curar um enfermo nos últimos estágios de vida.
Prometeu a si próprio que não seria um destes. Diria a verdade, pura e simplesmente. Teria a resposta à velha pergunta “é grave, doutor?” na ponta da língua, previamente ensaiada para cada um dos prováveis casos em seu consultório: ” Sim,Você irá morrer disto, infelizmente” diria para a velha obesa cardíaca. “É tarde demais para parar agora” ao fumante inveterado com sua neoplasia maligna pulmonar. Meras palavras. Verdade nua e crua. Em sua opinião, pérolas. Uma melhor que a outra.
Havia inclusive guardado um champagne para brindar a noite em que enfim poderia largar o peso de um; “Seis meses? Sejamos realistas…” sobre um infeliz enfermo qualquer. Treinava na frente do espelho todas as manhãs, enquanto penteava o topete que lhe garantia um ar juvenil mesmo beirando os trinta: “Seis meses?” “SEIS meses?”. Estava cada vez melhor naquilo. Naquela manhã de estréia, considerava sua atuação digna de um Oscar.
Adentrou seu consultório com um sorriso calculado. O Juramento estava em um quadrinho na parede ao fundo. Estava tudo cheirando a novo. Seu jaleco impecavelmente branco, a caneta dourada recebida de seu professor instalada no bolso e a pastinha de couro – presente de formatura da prima que vivia no interior do Mato Grosso – sob o braço. Cumprimentou a secretária recém contratada com um aceno educado, demorou-se alguns instantes fingindo procurar alguma coisa sobre a mesa para apreciar o decote generoso e entrou. O primeiro paciente o seguiu logo após.
– Doutor – começou o pragmático com cara de caminhoneiro; gordo como um búfalo, os dedos escuros de picar fumo, apenas um braço vermelho de sol. Seguiram-se às explicações costumeiras. Dores em lugares que antes não doíam, manchas novas, uma coceira que não passava. Algumas perguntas, algumas respostas. Diagnóstico bastante claro e Paulo sorriu. Havia começado bem. Iria por suas convicções em prática. Sem mentiras, sem rodeios e enganações. Nada de novas consultas ou exames custosos. Apenas o óbvio. O inevitável.
– Infelizmente, é incurável. Não há nada que eu possa fazer. Você têm no máximo… – a sorte grande, logo na estréia! – Seis meses.
Teve certeza de que tinha sido perfeito. O som de sua voz ainda ecoava na própria mente, regojizando-se pelo triunfo de estréia quando a rouquidão áspera do brutamontes se fez ouvir. Paulo despertou de seus devaneios no mesmo instante e descobriu-se – grande trapalhada – sorrindo. Havia sido mais forte do que ele. Uma sensação de êxtase que nasceu no estômago, subiu pela garganta e escapou-lhe pelos lábios. Esperara muito por aquela hora. Só aconteceu.
Talvez por causa de algum infortúnio, ou quiçá mero acaso do destino, nosso amigo paciente não era do tipo que recebia muito bem um sorriso junto com a informação de que morreria dentro em breve. Exigiu então que fosse curado, ou pelo menos, queria o dinheiro daquela consulta inútil de volta. O médico, pego de surpresa, negou-se. Na sala de espera, ouvi-se o som de luta, e segundos depois, notou-se a partida do taurino de pescoço largo com passadas firmes e furiosas; sutil como um paquiderme.
Levou algum tempo até que Paulo saísse da sala por sua vez, lentamente calculando o saldo: um olho roxo, nariz quebrado, dois dentes a menos. Não haviam mais consultas por aquele dia, tampouco haveria champagne. Voltou a clinicar apenas duas semanas após o ocorrido, quando sentiu-se suficientemente restabelecido. A nova primeira paciente agora era uma mulher com um carcinoma bastante óbvio, devido ao avançado estado de evolução. O marido ao lado tinha cara de poucos amigos.
Paulo, por via das dúvidas, pediu alguns exames.
E marcou a reconsulta, para dali há quinze dias.