Como primeiro assunto da pauta, me desculpem tão longa demora em continuar este bate-papo. Diversos assuntos pessoais e profissionais tomaram — e ainda tomam, para ser sincero — meu tempo e atenção. Mas fico feliz em dizer que o balanço geral tem sido positivo.
Mas voltemos a falar de armas de fogo. Comentei, em nossa última conversa, sobre os primeiros canhões e seu funcionamento. A energia liberada pela explosão da pólvora presa em seu interior requeria um material muito resistente para o corpo da peça e esta resistência, não raro, era traduzida em espessura e tamanho.
Material escolhido, restava descobrir como executar a peça. Fundir e moldar uma barra metálica é uma coisa… Um cilindro fechado é tecnologia totalmente diferente. As primeiras soluções para este corpo metálico envolveram corpos muito grandes e grossos, forjados em uma ou duas peças, cilindros forjados a partir de placas torcidas e até mesmo corpos mais esguios, formados de barras metálicas dispostas como cilindro, do mesmo modo que se faz um barril. Eram todos eles muito toscos e pequenos, comparado à quantidade de metal gasta.
Não eram soluções satisfatórias.
Este problema militar foi resolvido, finalmente, por uma categoria profissional civil: os sineiros. Em fins da idade média, os sineiros eram os únicos profissionais capazes de fundir uma peça metálica consistente no formato de “pote” ou “garrafa”, com paredes relativamente finas, resistentes e numa única peça. Estes artesãos, junto com armeiros e, em alguns casos, ferreiros, tornaram-se ao mesmo tempo protegidos e cerceados por reis e senhores feudais. Bem pagos por seu trabalho, sim,
Os canhões e o canhão de mão
Podemos dividir agora estas armas de fogo de corpo metálico em duas grandes vertentes: os Canhões e as armas portáteis ou semi-portáteis. A tecnologia de fundição dos sineiros permitiu não só fundir peças de artilharia pesada mais eficientes, e isto foi traduzido em grandes canhões cuspidores de bolas de chumbo, mas também fundir peças menores, possíveis de serem carregadas e manuseadas por um ou dois homens.
Os canhões seguiram sua evolução, paralela a seus irmãos menores, ganhando melhores sistemas de recuo (lembremos da terceira lei de Newton), carregamento pela culatra (ainda no séc. XV!) e raiamento da alma, dentre outras inovações, até chegar finalmente a seu ápice na Segunda Guerra Mundial, nos canhões de artilharia, artilharia naval e artilharia motorizada, quando canhões como o canhão ferroviário “Schwerer Gustav” podiam bombardear um alvo a impressionantes 47 quilômetros. Depois deste conflito os olhares se voltaram para o desenvolvimento de foguetes e mísseis.
O canhão de mão, enquanto isso, tinha o mesmo funcionamento de um canhão antigo (antecarga, com ignição através da introdução de fogo no ouvido da arma), porém contava com paredes mais finas, fundido em uma peça cilíndrica comprida e bem mais leve. Podemos comparar seu formato habitual a uma de nossas bazucas. Com o passar do tempo diversos armeiros começaram a observar vantagens em se fundir peças ainda mais leves para estes canhões-de-mão, além de proteções de madeira e hastes de apoio para permitir ao usuário manusear a peça e compensar o recuo. As proteções de madeira evoluíram para o que chamamos de Coice, Coronha e Telha, enquanto que a haste de apoio subsiste como Tripé, apenas em algumas armas mais pesadas.
O problema consistia, então, em como acionar a arma.
A primeira solução eficaz foi criar uma alavanca para levar a tal mecha, um pavio em brasa, até o ouvido do canhão. Esta alavanca foi criada e, devido a seu formato em S, ganhou o nome de Serpentina. A arma com fecho de serpentina, a partir de então conhecida como Arcabuz e Mosquete, recebeu diversos formatos de cano, como cilindros, bocas-de-sino, bocas quadradas, aberturas achatadas ou o que mais a criatividade do armeiro permitisse. Também era possível carregá-los não só com as bilhas de chumbo e os zagalotes, mas qualquer porcaria que o usuário cismasse de socar na arma. Correntes de ferro, limalhas, pedregulhos, sal grosso, sementes, cacos-de-vidro…
E sim… Sua eficácia era muito pequena, ainda mais quando submetida a tais excentricidades.
Sistemas de Ignição:
Existem, até o momento, quatro sistemas de ignição (ou inflamação) para armas de fogo, a saber: Ignição por Mecha; Ignição por Atrito; Ignição por Percussão e Ignição Elétrica.
A ignição por mecha é exatamente a que falei até aqui, utilizada nos primeiros canhões e nos arcabuzes com fecho de Serpentina. O trabalho de incendiar a mecha ou o pavio e levá-la até o ouvido da arma, bem como o tempo de resposta da explosão são muito longos, justificando os esforços para substituir tal tecnologia. A alavanca em S da serpentina evoluiu para um sistema mecânico mais eficiente, embora nitidamente evoluído da serpentina, denominado Serpe, contando com um gatilho simples. O atirador precisava carregar diversos utensílios consigo para manusear a arma: um embornal com a munição, às vezes substituído por uma faixa de peito com diversos compartimentos pendurados, cada qual com o suficiente para uma carga, zagalotes (a “bala” de chumbo esférica), polvorinho e pederneira. Primeiro era necessário acender a mecha, coisa que era feita nas duas extremidades, para o caso de uma delas se apagar durante o uso, punha-se a mecha acesa de lado e carregava-se a arma despejando pólvora pela sua boca (esvaziando um destes pequenos cilindros). A pólvora é socada suavemente e um zagalote é introduzido com o auxílio de uma haste. Ou introduz-se uma bucha e uma carga de pequenos chumbos (conhecidos como “chumbinhos” ou simplesmente “carga”). Coloca-se o polvilho do polvorinho dentro do ouvido da arma e ajusta-se a mecha acesa na mordaça da serpentina ou do serpe.
Além da preparação demorada, este tipo de ignição também apresenta algumas dificuldades nas caçadas ou emboscadas, já que a brasa da mecha pode denunciar a posição do atirador. Mas sua simplicidade mecânica tornou-a preferível, na infantaria, ao fecho de roda. É interessante dizer também que a Índia, Japão e grande parte do oriente demonstraram grande apreço por este sistema desde que o mesmo foi introduzido por mercadores europeus, provavelmente no final do séc. XV. Fuzis e mosquetes com fecho de mecha permaneceram sendo fabricados e utilizados nestes locais até fins do séc. XIX (ou seja, mosquetes de mecha hindus chegaram a se confrontar com fuzis de percussão e mesmo os primeiros fuzis de retrocarga europeus. As desvantagens apresentadas no municiamento destas armas eram compensadas através de um
As armas japonesas, embora também muito ornamentadas, não contavam com tamanho refino mecânico. Sob o ponto de vista puramente funcional, os mosquetes japoneses se assemelham às primeiras armas-de-mecha medievais, portando todo o mecanismo à vista do lado de fora da arma.
Mas retornando à Europa do séc. XIV, outro sistema de ignição surgiu para substituir a mecha: a Ignição por Atrito.
Para entender a ignição pro atrito é preciso entender o funcionamento da Pederneira e Isqueiro, itens presentes em quase todos os “kits” de aventureiros em rpgs medievais. Então vamos lá!
A Pederneira é uma pedra dura, o sílex pirômaco, que ao receber atrito com alguma peça mais rígida produz faíscas de alta temperatura, inflamáveis. O isqueiro é uma peça de metal, como se fosse uma lata, caixa ou pequena panela, na qual são feitas e armazenadas as iscas. As iscas, finalmente, são pedacinhos de pano carbonizados para atuarem como carvão, incendiando-se em contato com as faíscas da pederneira. De posse deste material todo, tudo que o aventureiro precisa fazer é segurar um pedaço de isca junto com a pederneira e raspar a pedra com uma faca, anel de ferro ou qualquer outra coisa, para que as fagulhas produzidas atinjam a isca da maneira mais concentrada possível. Quando a isca se tornar uma pequenina brasa, deve ser coberta com palha, folhas secas (folhas de pinheiro são ótimas para isto) ou gravetos muito finos, e assoprada cuidadosamente para atear fogo neste material. Quando ele pegar fogo basta colocar sob lenha e armar a fogueira.
Muito bem… Os fechos de atrito seguem a mesma lógica. O primeiro destes foi o fecho de roda(1517), que substituía a mecha por um pedaço de pederneira (de sílex ou pirita. A pirita se quebra em lascas afiadas, melhores para a produção de fagulhas) preso na mordaça da serpe — a partir de então denominada pata-de-gato, pela semelhança com a ferramenta de mesmo nome, ou cão, como é conhecida até hoje. Uma mola de enrolar era presa a um eixo com engrenagem de catraca de um lado e uma roda áspera (rastilho) do outro.
Vale dizer que esta ainda é a pólvora negra, que produz muita fumaça durante o disparo, dando um efeito enevoado durante a saraivada de infantaria. A pólvora branca, bem mais eficaz e que produz muito menos fumaça (também é conhecida como “pólvora sem fumaça”) foi inventada apenas em 1886. Em 1887, Alfred Nobel evoluiu a fórmula da pólvora branca para a forma como é mais conhecida atualmente, denominada cordite ou cordita.
O fecho de roda foi muito utilizado para suprir a cavalaria com pistolas, mas apresentava uma grande desvantagem, que motivava a insistência da infantaria em utilizar o fecho de mecha: dependia de uma chaveta própria para dar corda à roda. A perda da chaveta inutilizava a arma durante todo o combate.
O segundo grupo dos fechos de atrito surgiu no séc. XVI: a família dos fechos de sílex. É o sistema que estamos acostumados a ver nos filmes de piratas e trata-se de uma mola potente
Apenas por volta de 1610 seria criado o último grande fecho de sílex, o fecho à Francesa, que combinava as vantagens do Miquelete e do Snaphaunce para obter uma arma com gatilho suave e maior segurança.
O Fecho de Percussão
O principal defeito do fecho de sílex é a impossibilidade de usá-lo sob a chuva. Buscar contornar o problema e adicionar mais segurança às armas-de-fogo ocupou os armeiros desde o princípio do uso do fecho de sílex, mas este último mostrou-se superior às várias alternativas, até o aparecimento dos fulminatos.
As primeiras investigações sobre pólvoras fulminantes de que se tem notícia foram feitas pelo francês Pedro Bolduc, em fins do séc. XVII, mas apenas no reinado de Luis XV que um químico do Ministério da Guerra chegou ao fulminato de mercúrio, de alto poder explosivo. Substância muito instável, os acidentes com sua manipulação a tornaram impossível para o uso em armamentos no decorrer do séc. XVIII, embora em fins do mesmo o químico Claude Louis Berthollet tenha conseguido isolar o fulminato de prata, ainda muito sensível para o manuseio.
Somente em 1800 que o químico inglês Edward Charles Howard descobriu um método seguro para obtenção do fulminato de mercúrio e salitre (in “On a New Fulminating Mercury“, artigo para a Sociedade Real de Londres, em 1800). Este fulminato possuía as qualidades necessárias — relativa segurança de manuseio e alto poder detonante — para uso nas armas de fogo.
E em 1807 o pároco escocês Alexandre John Forsyth inventou a chave de percussão, mecanismo no qual o cão caía sobre uma espoleta de aço, colocada sobre uma pequena caçoleta cujo fundo estava recoberto com pequena quantidade de pólvora fulminante. Antes disto ele mesmo patenteara o fecho Forsyth, também conhecido como “frasco de perfume”, no qual uma peça de aço em forma de frasco de perfume, ao ser girada, depositava uma pequena quantidade de fulminato líquido (clorato de potássio) no ouvido da arma. Uma agulha de aço, ao ser ferida pelo cão, causava a detonação do fulminante.
A evolução dos fechos de percussão passou por diversas variações de fechos e espoletas, com fulminantes envolvidos em fitas ou pacotes de papel, ou em pílulas envernizadas para protegê-las da umidade. Algumas armas contavam com depósitos para até cem iscas, mas todas estas invenções eram muito perigosas e pouco práticas, dado o risco de inflamação dos depósitos de iscas.
Em 1815 o inglês Joseph Egg reclamou a patente (e apesar de tantos pretendentes, é considerado o mais provável inventor) das cápsulas fulminantes. Consiste a mesma numa cápsula de cobre em cujo interior era depositada uma pequena quantidade de pólvora fulminante. As cápsulas de Joshua Shaw, contemporâneas às de Egg, eram de aço e podiam ser reutilizadas. Mais tarde o sistema foi combinado e produzidas as cápsulas reutilizáveis em latão ou cobre.
O ouvido da arma foi transformado em um pequeno tubo de formato tronco-cônico (para facilitar a remoção da cápsula) e enroscava-se na lateral da câmara do cano. As cápsulas colocadas neste ouvido, ao serem golpeadas pelo cão (percussor), inflamavam a porção de fulminante ali contida, comunicando fogo ao interior do cano.
O processo logo se mostrou muito superior aos fechos de pederneira. Enquanto que a média de falha destes era de um a cada quinze tiros, o fecho de percussão falhava numa média de um a cada trezentos disparos. Ainda na metade do séc. XIX as cápsulas fulminantes foram alongadas e receberam pequenas abas
Ainda na década de 1830, nos EUA, surgiu o primeiro resultado deste processo: Ethan Allen, armeiro norteamericano, criou a Pimenteira (conhecida também como “ninho de vespas” ou “pepperbox”), uma pistola de vários canos arrumados em um cilindro que girava para colocar cada cano carregado (eram carregados pela boca) defronte à cápsula. Era a realização de um sonho antigo do homem, uma arma de fogo funcional (várias tentativas foram feitas, anteriormente. Inclusive um ancestral perdido do revólver, datado de 1640) que permitisse diversos disparos. Tamanho foi o sucesso da pimenteira que esta tornou-se conhecida como “a arma que conquistou o Leste”.
O sistema clássico de disparo de um fecho de percussão envolve carregar a arma pela boca, da mesma maneira que a mecha ou a pederneira, introduzir uma cápsula na “chaminé” do ouvido, puxar o cão (que ficava preso pelo ferrolho) e estava pronta para o disparo. No caso do revólver de percussão um cilindro é carregado, cano por cano, e cápsulas são colocadas em cada chaminé, localizadas no fundo dos canos do cilindro — chamado tambor. Para efetuar o disparo, basta puxar o cão com o polegar, movimento que gira o tambor, mirar e apertar o gatilho.
O Cartucho
A idéia é muito simples… preparar um cartucho que contivesse o projétil, propelente e cápsula fulminante, empacotados e prontos para uso imediato. Desde 1808, na França, testes com cartuchos de papel demonstraram que seria possível implementar o sistema, mas tanto a instabilidade do fulminante quanto problemas na qualidade do material e de produção tornavam os cartuchos pouco confiáveis. Ainda assim os fuzis Chassepot, franceses, já contavam com cartuchos de papel, em 1866.
No decorrer da primeira metade do séc. XIX a idéia foi desenvolvida para adaptar cartuchos metálicos. O sistema de percussão por agulha (needle-gun) de Johann Nicholas Dreyse (1829) influenciou a fabricação dos fuzis longos de percussão do séc. XIX, enquanto que seu contemporâneo, o cartucho de pino (pin-fire), do francês Casimir Lefaucheaux, chegou a ser utilizado nos diversos conflitos do séc. XIX. Corria, no entanto, muito risco de detonações involuntárias devido ao seu pino protuberante.
A arma de retrocarga com cartucho metálico de fogo central (nomezinho grande, não é mesmo?) é o sistema mais utilizado até hoje, surgido em 1866 e consagrado no célebre revólver Colt Army Single Action 1873, calibre .45.
Sistema de Ignição Elétrica
O mais novo da família de ignições é a ignição elétrica ou eletrônica. Nestas ainda raras peças o gatilho é substituído por um sistema interruptor que aciona um eletrodo diretamente no fulminante do cartucho. Suas maiores vantagens são a leveza e velocidade do disparo. Alguns dos novos modelos de fuzis Remington já recebem este sistema (inclusive o “vovô” Remington 700).
E é isto, pessoal…
Espero poder escrever mais um artigo, falando sobre o revólver e alguns fuzis, especificamente para períodos do “velho oeste” e Segunda Grande Guerra. Mas aí já é outro papo…
E para finalizar este artigo, quero agradecer ao Marco Morte, que generosamente produziu estes detalhes de armas em tons de sépia; ao Álvaro, que deu uma ótima idéia para produzir as caixas de texto, e ao Nume que teve o trabalho de diagramar tudo isto para mim, dentro do blog.
Abração!