RPG é um jogo com tremendo potencial “micoso”. Em outras palavras, jogar RPG diante de um público não-RPGista traz um conjunto de problemas clássicos; situações que remontam a imagem midiática do passatempo: coisa de gente maluca, jogo de satanista, prática estranha, lazer infantil…
Este panteão de definições preconceituosas, ainda que frágeis, sabemos, não foi produzido à toa. O contato comum entre leigos e praticantes, neste caso, induz, sem muita dificuldade, à erros de interpretação e pré-julgamentos. Aliás, pode muito bem induzir as testemunhas desavisadas a sustos, enganos policiais e até a aversão definitiva e irremediável. Isso tudo porque imaginar mundos irreais e contar histórias fantásticas (em todos os sentidos) à volta da mesa não é parte do cotidiano da maioria das pessoas. Normal, certo?
Mas será que RPG é tão chamativo assim? Por que, ora bolas, uma simples conversa entre amigos, entrecortada por algumas jogadas inofensivas de dados estranhos, chama a atenção, positiva ou negativa, de curiosos, transeuntes e expectadores de rabo-de-olho?
Aí entra, naturalmente, outras perguntas associadas: alguém aqui conhece uma mesa inteira (um grupo) que joga de forma civilizada, quase silenciosa, com gestos brandos e descrições singelas e educadas das cenas que imagina? O RPG tem graça quando jogado sob todas as chancelas do bom comportamento cotidiano, sem gritarias, discussões acaloradas, gargalhadas berrantes ou piadas infames sobre os órgãos e práticas sexuais dos beholders (ok, essa é rara…)?
Toda essa conversa é para defender uma pequena “tese” : a de que jogos de interpretação são jogos onde a fala, com cada uma de suas vantagens e custos, é fundamental. Para ser mais específico e não tornar esta afirmação uma obviedade completa e idiota, defendo que a fala, nesse sentido, significa não apenas o exercício narrativo dos envolvidos, mas um compromisso geral com um tipo de lazer pouco comum e compreendido: a fala que surge por causa do imaginado.
Você fala como um Anão Guerreiro?
Isso é normalmente esperado de um narrador: em meio ao jantar com o rei dragão, os aventureiros ouvem as explicações de Nagor, o Mago. Enquanto fala dos desafios a serem enfrentados, Nagor tosse ligeiramente, revelando um dos males que sua mágica jamais foi capaz de curar. Sua voz é rouca, dados os anos de pigarros e ervas sem efeito. Ele fala com lentidão, num tom quase monótono. “Você precisam… cof… cof… entender… A Caverna é antiga e… ah… ela…. ah… guarda um segredo importante… ela… cof, cof… escutem: ela…. é… o re… cof, cof.. maldito do…. ah…. cof… cof… O refúgio…”
Imaginem só se, em meio a tentativa complicada de Nagor, ocorrem interrupções? E se um dos convidados o fere gravemente? Quanto tempo o moribundo arcano de fala lenta ainda tem para revelar o mistério? Agora, o quanto, neste ponto, uma boa imitação de rouquidão, comunicação demorada e tosse esganiçada, por parte do mestre, pode enriquecer a cena tensa?
Isso vale pra inúmeras coisas. sotaques, palavreado rebuscado, impostação de voz, risinhos macabros ou gargalhadas vilânicas. Não é só do potencial engraçado de que estou falando, mas sim da divertida experiência de se pensar como e em que níveis, personagens da fantasia falam e como essas diferenças eventuais podem contribuir para algo na tarde. Algo como o entrosamento, a risada ou a competição pela voz mais esforçada.
(No grupo de um amigo, uma das cenas mais divertidas era o hábito de um anão em sempre corrigir, nos outros, a pronúncia impossível e sempre mutável de seu nome. “Não me chamo Braknar. Me chamo Brrakhnarq, imbecil! Brreknarqt, entendeu? Malditos hurrumanos!”)
Isso pode até mesmo chegar ao ponto de compor algo dentro do jogo, como alguns de vocês já podem ter tentado. Desafios ou testes resistidos de perícias sociais? Onde está a dicção, aquele tom de convencimento ou o ar de “seu tolo, sei do que estou falando” do blefador? E se a porta do Castelo dos Ossos só se abrir quando as palavras mirabolantes da senha forem perfeitamente pronunciadas? Como assim você é um cavaleiro do rei falando aos aldeões enquanto usa expressões como “Então, vamu lá, aplaudam o rei, povo!”
(Nunca permiti, em minhas sessões, que um jogador metamorfoseado não imitasse a voz de sua nova forma. E vivemos, entre outras coisas, grande momentos ouvindo um feiticeiro transmutado em uma cortesã nas ruas de Águas Profundas!)
Os Contras da Fala
Imagino duas objeções: 1) “Mas como assim eu preciso disso pra interpretar meu personagem?” e 2) Mas isso é ridículo! “Não vou ficar fazendo voz de anão na casa da minha avó! Ela vai pensar que eu pirei!”
Para a primeira não há resposta mais simples: não, você não é obrigado a isso (e não precisava de mim pra relembrar esse detalhe da democracia, certo?) Por mais que este texto expresse uma opinião sobre o é um bom jogo, todos sabemos o quanto “varia de mesa pra mesa” e todo aquele blábláblá. A proposta no caso é pensar o quanto pode ser divertido incrementar e completar seus jogos com um aspecto que está presente nas histórias oralizadas: as vozes são parte da imaginação e tem impactos muito próprios, que se perdem quando resumidos ao “o mago fica tossindo enquanto fala”. Você tem todo o direito, contudo, de não achar isso divertido. E eu tenho todo o direito de achar sua opinião limitada, caso você não me conveça. 🙂
Sobre a segunda objeção…
Bem…. Algumas pessoas dizem que rpgistas se tornam imunes ao senso do “ridículo” durante suas sessões. Alguns até se tornam imunes a vida toda, todo o tempo. Essa é uma característica fundamental para o divertimento: o “desgrilamento”. Quem, em sã consciência, consegue se divertir, seja como for, com medo do riso alheio? Quem, por mais maduro e certo de si que seja, pode desprezar completamente, a intrusão e o pentelhismo, enquanto se diverte? Ou: como se divertir com receio de incomodar alguém (é, existem pessoas que pensam nisso, mas também são raras)?
Nesse sentido, convém afirmar que, o mundo da fala em RPG exige, em primeiro lugar, a consciência de que este é um “ridículo” permitido. No momento da diversão, do jogo, durante a tarde ou noite que o abriga, o que é feito dele é, inteiramente, normal e desprovido de seriedades impostas (com algumas limites judiciais ainda em voga…). Quem joga, joga um universo diferente, interpreta histórias em mundos imaginados e tem o direito de viver isso sem problemas. Para isso é necessário 1) um espaço privado, onde ninguém vai te incomodar e você não vai incomodar ninguém; ou 2) um lugar onde todos estejam cientes (e dispostos) para com o jogo.
Um amigo professor me contou de sua primeira experiência no RPG. Segundo ele, tudo começa numa “certa tarde de sol”. Junto com uma amiga, o dito professor participaria de um sessão à três (sem maldades, por favor), organizada por um narrador de O Senhor dos Anéis RPG (sem maldades, mais uma vez). Tudo acertado, o trio à volta da mesa, o narrador apronta o escudo do mestre. O casal de jogadores conversa sobre frivolidades antes que as coisas estejam prontas… Eis que uma música, saída do filme de Peter Jackson, começa a tocar (providenciada pelo mestre anfitrião) e ele, de súbito, encarna o tom de voz de Gandalf, respira como Sarumam e começa a descrever, com as minúcias e palavras próprias de Elrond, a situação inicial dos personagens já prontos.
Os dois jogadores se entreolham, alarmados pela rápida transformação do colega e… seguram o riso… por um tempo. 🙂
Isso nos serve para que voltemos ao ponto inicial: as diferenças de expectativas, o conhecimento geral e até mesmo o conjunto de disposições de cada pessoa vão sempre criar abismos entre jogadores e não-jogadores. Mas pontes são sempre possíveis e, cabe a nós, que conhecemos o hobby, tentar eliminar essas distâncias ou descobrir quando isso não é possível. Se sua vizinha não entende suas estranhas conversas de domingo à tarde, mas está curiosa, convide-a para uma partida (sem maldad… ah isso fica a cargo de vocês…). Mas convém realizar o processo contrário? Deixar de aproveitar parte do seu jogo para parecer “normal”? Deixar de berrar como um meio-orc porque isso vai fazer sua colega de faculdade rir? Ninguém precisa de urros à meia-noite ou rituais místicos fictícios proferidos ao lado da Igreja do bairro, claro. Mas aproveitar o irreal quando possível é parte do divertido. Ou não? Talvez a vida já seja séria demais, ”adulta” demais. E RPG não é sobre se divertir no meio dela, contando histórias?