Durante meus dias lá no Rio Grande do Sul tive a oportunidade de submeter o Sistema Shelley — anteriormente conhecido como “Frankensystem” ou simplesmente sistema do Romância, um OGL cheio de idiossincrasias — ao teste prático.
Foram constatadas ocorrências bastante curiosas (no sentido de “não esperava isso”), que creio ser interessante partilhar aqui.
Coisas que funcionaram bem
“O que é bom a gente mostra, o que é ruim a gente esconde” — quem se lembra da estréia do Real por certo se lembra desta (infeliz) afirmação — que custou o cargo do boca-solta. Meu código de honra paladínico me impede de proceder desta maneira, mas não me impede de primeiro chamar a atenção para os pontos positivos.
A livre combinação Storytelleriana de Atributos e Perícias mostrou-se bastante satisfatória. Nenhum dos jogadores chegou a gastar muito tempo para fazer a soma simples necessária; o mestre (que não era eu) ignorou solenemente a classificação de perícias entre “físicas” e “mentais”, invocando associações entre atributos físicos e perícias que encararíamos como “necessariamente associadas a atributos mentais” conforme lhe parecia apropriado, o que gerou variações bastante interessantes.
O Foco em Perícia — role 4d6 e escolha os 3 melhores dados — fez bem o seu trabalho. Os personagens que o possuíam conseguiram, com freqüência, resultados melhores (o que era desejado). Umas poucas vezes essa mecânica causou uma certa frustração — as rolagens de um dos jogadores insistiam em sempre apresentar dois 1s. É necessário testar mais para saber se isso se trata de uma anomalia ou algo corriqueiro.
A disposiçao das informações se mostrou prática. As fichas já foram entregues preenchidas aos jogadores e, com uma breve exposição do esqueleto da coisa — “use tal valor, jogue tais dados, compare com tal valor” –, todos foram capazes de usar as habilidades apenas com uma consulta rápida ao bloco de informações anexado à ficha.
As margens de sucesso, vide exemplo que segue:
Ataque Mental
Pré-requisito: Telepatia
Cansativo
Ação padrão: role Presença + Taumaturgia contra Vontade do alvo
Sucesso: o alvo sofre uma condição de dano não-letal (Escoriado)
Sucesso 3+: o alvo sofre uma condição de dano não-letal (Aturdido)
Sucesso 6+: o alvo sofre uma condição de dano não-letal (Cambaleante)
Funcionaram satisfatoriamente, a despeito de dúvidas que eu tinha quanto a isto. Mesmo contra oponentes dotados de salvamentos de valor alto, resultados com alta margem de sucesso aconteceram com freqüência satisfatória — i.e. o bastante para empolgar o jogador, mas não freqüentes a ponto de se tornarem corriqueiros ou constituírem uma vantagem desproporcional.
NPCs com bloco de regras ultra-reduzido deu certo. Eles possuíam apenas valores de Vontade, Reflexo e Fortitude, seguidos dos feitos que possuíam. Se o feito em questão usava “Presença + tal perícia”, o NPC usava o bônus de Vontade; se requeria “Inteligência ou Destreza + tal perícia”, usava Reflexo, e por aí vai. Conforme a situação, o mestre fez pequenas modificações nos números (entre -3 e +3), usando as estatísticas prontas apenas como guias, reduzindo ou aumentado os valores conforme fosse necessário para um confronto mais ou menos desafiador.
Fiz os blocos de NPCs dessa forma por causa do background do mestre — mesmo tendo passado por GURPS, Storyteller, AD&D e coisas mais indie como o Paranóia, a predileção dele jaz na simplicidade do Dungeoneer — onde se pode montar qualquer oponente ad-hoc, apenas alocando valores de Habilidade e Energia coerentes com o nível de desafio que se quer proporcionar. Claro que se pode montar NPCs alocando apenas atributos e perícias e feitos relevantes à função do NPC — é fútil estipular as estatísticas de combate de um NPC usado em uma cena diplomática, por exemplo. Ou, no caso de NPCs complexos, recorrentes e polivalentes, montar a ficha inteira como se fosse um personagem jogador. Mas como eu tive apenas um dia para montar diversos NPCs, o acúmulo de funções em cima dos valores de salvamento se mostraram práticos e funcionais.
Distâncias subjetivas não apresentam dificuldades para um conflito um-contra-um. Mas, e se um confronto contar com uma quantidade maior de variáveis? O único conflito combativo realmente complexo (i.e. vários oponentes, com elementos cenográficos que constituíam obstáculos) que tivemos tomou lugar em uma biblioteca em que uma taumaturga de saúde muito frágil (e uma baita megera) resolveu derrubar algumas nas enormes prateleiras em cima de nós, criando uma espécie de labirinto estranho.
Normalmente se recorreria a um mapa nessa ocasião, mas não usamos. Isso não é tanto coisa do sistema em si, mas do mestre, que, no início de cada rodada, nos presenteava com “sim” ou “não” em relação à localização, e nos movíamos em relação a um objetivo — chegar a este ou aquele oponente –, sendo a coisa complementada por testes — subir em cima de alguma das prateleiras facilitava localizar os inimigos, mas se podia cair; testes de Destreza + Percepção para correr na maior velocidade possível (que não importava de quantos metros por rodada era) enquanto se guiando pelos gritos dos companheiros de grupo que apanhavam. Não foi um combate tático no sentido a que estamos acostumados — mas nem por isso foi desprovido de planejamento ou emoção.
A lida com esse tipo de situação por certo merece uns parágrafos na seção “Narrando o jogo” (ou equivalente), de modo que combates, pela ausência de mapas e distâncias quantificadas, não caia na mesmice do “eu ataco”. Esta abordagem dá mais poderes ao mestre, que pode, através do “controle cenográfico” vetar certas linhas de ação (de modo imperceptível, se bem feito) que findariam muito rápido um confronto que, em termos de história, ficaria melhor sendo mais dramático/desafiador — sem precisar possuir um conhecimento enciclopédico do sistema de modo antever toda e qualquer ação por parte dos personagens jogadores.
Coisas que não funcionaram tão bem
A margem de sucesso decisivo que estipulei (17 ou 18 em 3d6) acabou provendo uma freqüência de críticos abaixo do esperado. Apenas um dos personagens que possuía o feito de Crítico Aprimorado (críticos com 16 ou mais) conseguiu decisivos com mais freqüência, ao passo que, dentro os demais, apenas um dos jogadores conseguiu crítico uma única vez com 6-6-6. Talvez seja conveniente baixar a base para 16.
Inesperadamente, “jogadores rolam todos os dados” não foi uma característica tão bem recebida — pelo mestre, sobretudo. Nas primeiras rodadas de um confronto em que valores estáticos de ataque-e-defesa de NPCs foram usados, os resultados se tornaram um pouco… estáticos. Cedo se formaram configurações do tipo “eu sempre tenho sucesso quando uso uma habilidade resistida por X” e “usar uma habilidade resistida por Y é falha na certa”. No momento em que o mestre passou fazer rolagens para os NPCs — fossem ações ofensivas ou defensivas –, o confronto sofreu uma injeção de vigor por parte da incerteza gerada.
É preciso testar a coisa em uma variedade maior de situações. Se tivéssemos entrado em um embate com um número enorme de oponentes (o que geralmente é feito com minions, conforme visto no Mutantes & Malfeitores e True20), talvez tivesse sido mais prático deixar esses oponentes de menor relevância com os valores estáticos e rolar para aqueles de maior destaque.
O sistema de rolagem de dano pecou também para o lado da estase. Me utilizei de uma variação do sistema de dano do True20 que dispensa a contabilização de redutores por parte de ataques que causam o nível mínimo de dano, acrescida de algumas modificações. O funcionamento é o seguinte: some Força + Bônus de dano da arma + 1d6, e, deste valor, subtraia Constituição + Armadura, comparando o valor final obtido com o seguinte:
1-5 Escoriado/Machucado O O O
6-10 Aturtido/Ferido O O O
11-15 Desabilitado O
16+ Moribundo O
A “bolinha” (“O”) ao lado do nome da condição é marcada quando o personagem sofre aquela condição; se sofrer uma condição na qual todas as bolinhas (era para ser quadradinhos, mas não sei fazê-los aqui no WordPress…) estão marcadas, marque uma bolinha na condição mais severa seguinte onde houver bolinhas vazias. Se um personagem já sofreu 3 condições de Ferido e sofre uma quarta, ele fica Desabilitado.
Ocorreu o seguinte: nunca, nem uma vezinha sequer, um ataque conseguiu ser devastador o suficiente para deixar um oponente, mesmo sem armadura e de Constituição baixa, Desabilitado ou pior. Não era o efeito desejado — deveria ser possível derrubar um oponente num golpe só. O mais alto — por parte do Bashimi, o Oni ronin especializado em causar quantidades grandes de dano — conseguiu no máximo um ferido. Talvez seja interessante aumentar o fator de aleatoriedade no dano — adicionar 2d6 (ou talvez até 3d6) nas rolagens de dano, e/ou transpor o dano das armas (que é um bônus fixo, em torno de +3) para um padrão de Xd6.
As magias cansativas não foram cansativas o bastante. O teste requerido (Vontade vs. 21) nunca chegou a resultar em falha, e, em certo ponto, o mestre passou a ignorar tal rolagem (que, em si, não é muito boa, pois demanda duas rolagens para uma única ação). Efetivamente, todos os arcanos foram usados como sendo “sem limite”, e, estranhamente, não foram usados abusivamente — o uso de arcanos não mostrou possuir vantagem desproporcional sobre usos “mundanos” de perícia e, em combate, o uso dos mesmos se mostrou equivalente ao uso de manobras “não-arcanas” por parte dos personagens não-magistas.
Talvez se deva: aumentar a dificuldade das magias cansativas (para 24), ou arrumar outra forma de controle, ou deixá-las também ilimitadas, balanceando as que podem se tornar abusivas. (O fato de não ter havido abuso, claro, pode ter se dado primeiro pelo fato de o grupo como um todo não ser dado a “combos” e, segundo, pela pouca familiaridade com o sistema.)
Ou, alternativamente, dar a todas as magias um efeito menor, gratuito, sem limite de uso, e postular que efeitos melhores causam automaticamente um nível de fadiga. No exemplo anterior, do Ataque Mental, sua versão ilimitada poderia não dar acesso aos níveis de Sucesso 3+ ou maior (causando sempre, no caso de sucesso, um resultado de Escoriado), ao passo que a versão “paga” possibilitaria os efeitos superiores.
Também é interessante rever alguns dos arcanos. A luminomancia (controle de luz visível), por exemplo, uma transposição do light shaping do True20, fornece uma série de habilidades — criar ilusões “holográficas”, ficar invisível, iluminar uma área… — ao custo de apenas um feito. Tematicamente, é coerente — se o personagem sabe manipular a luz, ele deveria saber fazer essas coisas todas –, mas, mecanicamente, pode representar uma vantagem desproporcional.
Concluindo
Uma vez feitos ajustes com base nestas constatações, é interessante disponibilizar aqui o .doc da versão preliminar das regras para playtest mais amplo — é bom variar as condições de teste, submetendo a mecânica a outros estilos de jogo. Infelizmente não foi possível testar os conflitos de natureza social — o mestre já havia elaborado a aventura faz um tempo, essencialmente sob um paradigma de jogo mais “normal”.
De resto, não há urgência quanto a isso — o RPG em si do Romância vai ficar na geladeira um pouco enquanto eu me dedico a ficção ambientada no cenário.