Na primeira parte deste artigo discutimos a fisiologia desmorta e, munidos de uma visão mais naturalista, descontaminada de absolutos morais e abracadabrismos inexplicáveis — que são ruins por não permitirem um manejo flexível dos elementos envolvidos –, observamos algumas possibilidades interessantes como processos de construção de mortos-vivos, o uso destes como força de trabalho e a desmorte como tecnologia de imortalidade na ausência de meios mais “limpos” ou mais baratos. Isto foi apenas a ponta do iceberg.
E quanto aos esqueletos e mortos-vivos incorpóreos? Que difere o lich de um zumbi regular? De onde os mortos-vivos tiram energia para funcionar? Como a sociedade vai encarar cadáveres embalsamados andando por aí? Que fará a religião para se aproveitar da situação ou estragar a festa?
Mortos-vivos incorpóreos e a natureza da alma
Vamos definir: morto-vivo — ou, para traduzir melhor o termo undead, desmorto –, para fazer jus ao nome, precisa primeiro ter estado vivo, morrido e depois posto novamente em funcionamento usando meios distintos da, hã…, “biologia tradicional”. Com os zumbis/múmias da primeira parte do artigo, foi fácil — um tratamento físico-químico que retém algumas funções do corpo — cerebrais e motoras — enquanto some com outras — metabolismo, movimentos musculares involuntários… Com os incorpóreos, não há corpo para tratar, logo, precisamos de algo:
1. Que exista no indivíduo vivo;
2. Que possa ser posto novamente em funcionamento sob outra estrutura corpórea;
3. Que seja suficientemente semelhante ao original vivo, o suficiente para se afirmar “é o mesmo indivíduo, só que trazido de volta”.
Alma? É vago demais, impregnado de abracadabrismos religiosos ao ponto de ser inaceitável. Pode até ser aceitável, mas não é divertido — cai-se em “é magia” ou “é a alma imortal”, seguido de “fim de papo”, o que é broxante — metade da graça está em mexer nas variáveis, ajustar aqui e ali, jogar as informações e colher algo inesperado na saída.
Mente, por outro lado, já pode ser mais palpável. De acordo com Marvin Minsky, “Mentes são aquilo que cérebros fazem”. E o que cérebros fazem? Além de regular as funções do corpo, eles processam e armazenam informação. Funcionam através de sinapses, correntes elétricas em uma matriz neuroquímica (generalizando bastante, claro). Desse modo, a forma de “descarnar” uma mente é arrumar uma outra matriz onde o mesmo mapa sináptico possa rodar.
Se você leu meu artigo sobre inteligências divinas, já pode imaginar que se pode fazer fantasmas da mesma maneira que os deuses, que, segundo o texto, nada mais são que mentes rodando em uma matriz imaterial. Em um primeiro momento, serão as mesmas mentes de “ex-vivos” funcionando em uma nova matriz, o que os classifica como desmortos.
Para exemplificar, vou usar a matriz do modelo físico do éter, utilizado no Romância, que se presta bem para isso. Uma mente baseada no éter é muito semelhante a um software — ela percebe o meio, cruza as informações com aquelas que tem armazenadas, aplica critérios particulares (personalidade, por assim dizer) e, como produto, reage ao meio. Essa mente pode se modificar. Da mesma forma que um bebê aprende a mexer seu membros, a andar e a manipular objetos no ambiente material em que funciona, a “mente descarnada” se adapta de modo a funcionar dentro da matriz etérica. Que é o mesmo “console” onde a magia também roda. Daí temos certas capacidades incríveis associadas a fantasmas, como se manifestar visualmente (manipulação holográfica da luz), meter um medo do caramba (sugestão telepática) e, em casos perigosos, envelhecer aventureiros (manipulação biocinética) ou aqueles “toques gélidos” (criocinese 101). Mesmo que tal mente, em seu corpo original de carne, nada soubesse sobre taumaturgia — para formas de carne, são necessários sistemas e artifícios para influenciar o éter que lhes é invisível; uma forma baseada em éter, por outro lado, pode interagir com o meio da mesma forma que abrimos uma porta utilizando a maçaneta.
Uma mente “upload” com “poderes de fantasma” é uma alteração menor. As coisas começam a se tornar interessantes — e perigosas — quando começam a ocorrer transformações psicológicas mais profundas. Se você, por exemplo, acordasse, sem aviso, com o corpo de um leão, acabaria, transcorrido suficiente tempo, abandonando procedimentos humanos que não mais são práticos para a nova forma — como a relutância em comer carne crua ou matar outros organismos para adquiri-la.
A mente upload não se descobre um leão, mas algo mais perigoso, capaz de manipular à vontade forças invisíveis e, com suficiente prática, até mesmo a matéria em seu nível atômico ou menor. Moralidade que previne agressões contra outras formas de carne pode se tornar uma preocupação progressivamente menos relevante, até o ponto de ser descartada, e o mesmo vale para outras características da psicologia humana.
Daí temos sombras, espectros, allips e outros exemplares da fauna desmorta incorpórea. As condições do upload também podem ser cruciais para a nova configuração. Se definimos “morte traumática” como uma das variáveis, uma mente descarnada em um meio de possibilidades ilimitadas e traumatizada/furiosa é um resultado possível. Da mesma forma que com os desmortos embalsamados, o momento do upload também é relevate. Poucos segundos após a morte? Mente funcional. Seis horas? O mapa mental “uplodeado” será aquele de um cérebro danificado, com uma gama enorme de distorções possíveis.
Algo interessante sobre a mente upload: no momento em que ela se torna um conjunto de informação, em vez de uma peça biológica (como um cérebro), fica relativamente fácil de replicar. Você não consegue fazer cópias de seu HD ou de seu pen drive, mas consegue fazer um número ilimitado de cópias da informação contida neles. Mantenha isso em mente, usaremos daqui a pouco.
E os esqueletos?
Não há como aplicar os processos discutidos na primeira parte do artigo — eles não possuem carne alguma. Em vez de mortos-vivos per se, eles mais me parecem objetos animados. O que os diferencia do amigável candelabro d’A Bela e a Fera? Por serem restos de alguém morto, metem medo. Se eu estou em um salão escuro e um esqueleto vem cambaleando na minha direção, a primeira reação, em virtude do medo associado com uma carga cultural impregnada de superstição, seria “PQP, essa coisa voltou da morte pra puxar meu pé” — quando, na verdade, poderia ser uma “marionete” controlada por um telecinético de senso de humor doentio, ou um feitiço/programa de loop infinito de algoritmo telecinético.
Notem que a parte da profanidade/maldade/forças do Tinhoso não é eliminada — ela apenas passa de causa para efeito, existindo apenas na mente do observador. E nem por isso desprezível — essas coisas são, afinal, reais na mente de quem as percebe.
Se se quiser uma causa “realmente morta-viva” para um esqueleto que se mova, o primeiro candidato invisível que vem à cabeça são os fantasmas-uploads do exemplo anterior. Suas capacidades poltergeist podem atirar louça e prataria nas pessoas — ou mover um esqueleto, de forma a ser ainda mais desagradável. (Se você morresse e “acordasse” com a memória de ter morrido doloroda e traumaticamente e, pior ainda, sem seu corpo, provavelmente enlouqueceria e se tornaria mais intragável que a Suzana Vieira…)
Liches
Além da inteligência, o que difere o lich do zumbi são os acessórios. O lich é um cadáver embalsamado e funcional que possui um arsenal de poderes — muito provavelmente advindos de sua carreira de mago — e a tal da filacteria, que é um nome bonito para save point. Aquilo que escrevi sobre upload de mentes se faz útil aqui — a tal da filacteria é um HD (ou qualquer outra unidade de armazenamento de dados conveniente), que guarda todo o mapa sináptico do lich — personalidade, memórias, etc. O cérebro do lich, evidentemente, está em conexão direta com a filacteria, realizando backups constantes. Uma filacteria, portanto, nada mais é que uma cópia de segurança.
Aqueles aventureiros sacanas destruíram o lich por causa de um mal-entendido cultural, crentes de que estavam fazendo “a coisa certa”? Sem problemas — todos os dados da mente do lich, aquilo que faz dele um indivíduo, estão convenientemente salvos em local seguro (espera-se), apenas esperando para serem baixados no cérebro de outro corpo.
Outro corpo? Então por que raios o cara se submeteu a um embalsamamento “forçado” em primeiro lugar? Ele não poderia ter simplesmente continuado no corpo e, quando lhe parecesse conveniente, “pulado fora” para o corpo de outro indivíduo (devidamente lavado cerebralmente — mas isso seria realmente maligno) ou para uma cópia — i.e. clone — de seu próprio corpo?
Para a resposta ser não, devemos supor que a magia/tecnologia que lida com matéria viva no cenário (chamaremos genericamente de biomancia) não é suficientemente desenvolvida para criar um clone. Pelo menos não um clone funcional — da mesma maneira que se pode produzir carne em laboratório, um biomante de bom nível pode replicar seus ossos e músculos (já deixando de fora órgãos que não serão usados) e o hard drive cerebral vazio. Não é o mesmo que clonar a Dolly — em vez de um organismo inteiro e funcional, essa clonagem “tosca” produz apenas “peças de reposição”. (E o laboratório do lich pode conter um time de zumbis semi-inteligentes, produzindo partes enquanto houver matéria-prima.)
O embalsamamento se faz útil: no momento em que a filacteria copia todos os dados do cérebro-matriz, isto inclui a perda de capacidade proveniente do processo envelhecimento. Se uma clonagem “tosca” está disponível, nosso lich-necromante pode clonar seu corpo para a seguir embalsamá-lo e submetê-lo ao tratamento de desmorte apresentado na primeira parte do artigo.
Você já deve ter imaginado a essa altura: se a mente usada é uma cópia, e o corpo é outro, o lich precisa realmente esperar para ser destruído? Teoricamente, nada o impediria de fazer outras cópias de seu corpo e baixar neles cópias da sua mente, tendo assim diversas réplicas independentes de si, todas com sua personalidade e memórias até o momento da cópia — a partir daí, as memórias começam a ser particulares para cada réplica, mas todas estariam conectadas à filacteria, e poderiam compartilhar memórias das todas as unidades mediante atualizações regulares.
O efeito é o mesmo — os aventureiros “matam” o lich, mas ele não morre de verdade; a diferença é que já existem outras cópias ativas. A cópia que foi destruída pode ter sido usada apenas como isca, uma distração para manter ocupados os aventureiros enquanto outras unidades continuam com a realização dos planos do lich sem interrupções por parte de grupos intrometidos. Mas é claro que cada cópia é um indivíduo com personalidade e senso de auto-preservação. Por alguma razão uma dada unidade pode discordar, ou até se voltar contra o coletivo.
Energia
Mortos-vivos não possuem um metabolismo para converter alimentos em energia. O processo de construção nos informou como o liquidificador funciona, mas ele apenas funciona se conectado a uma tomada. O mesmo vale para os mortos-vivos.
Eis que voltamos a ela, a irritante energia negativa. Na falta de coisa melhor, ela serve. É demais pedir que, num golpe só, ela conserve tecidos, altere a química dos músculos e tudo o que mais precisamos para cadávers ambulantes funcionais. Mas se estas coisas já estão feitas, é menos forçoso pedir apenas que ela apenas dê o “choque”, sirva de tomada para fazer a máquina funcionar. Se se quiser, dá até para fazer uma analogia com o orgônio — ou, mais precisamente, com o d-orgone, a forma “negativa” desta “energia vital”.
Falamos em choque, e isto remete à eletricidade. O romance Frankenstein de Mary Shelley foi forte em inserir em nosso imaginário o meme “descarga elétrica faz gente morte andar”. Na época em que Shelley escreveu o romance, estavam sendo conduzidos experimentos envolvendo cadáveres e eletricidade por parte de alguns cientistas. Luigi Galvani, um cientista italiano, descobriu que a estimulação elétrica nos nervos de uma rã morta faziam as perninhas da mesma se mexerem. Com base nessas informações, outros chegaram ao extremo (de gosto duvidoso…) de conduzir experimentos semelhantes com cadáveres humanos — às vezes em frente a uma platéia, que se apavorava ao ver cadáveres fechando as mãos ou tendo espasmos quando tinham os nervos, expostos por cortes, estimulados com eletricidade.
Neste ponto, a linha entre mortos-vivos, golens e outros constructos se torna difusa. Um cadáver embalsamado capaz de ação que é animado por alguma espécie de bateria ou elemental da eletricidade — morto-vivo ou golem? Tal distinção é, na minha opinião, essencialmente fútil. Mesmo nas regras do Dungeons & Dragons ambos carecem de um valor de Constituição, de modo que eles são mais semelhantes do que a maioria de nós se sente confortável em admitir.
Se, por outro lado, o funcionamento é baseado em alguma espécie de bactéria/parasita/nanomáquina biológica, é possível que o morto-vivo de fato precise se alimentar — ou, mais precisamente, ingerir nutrientes para que as tais bactérias se alimentem e possam gerar os sub-produtos que mantém funcionando o corpo desmorto. Sangue e carne aparecem como as opções mais óbvias, mas nada impede altenativas mais exóticas como algum tipo específico de planta, uma solução (al)química de nutrientes…
Sociedade necrofílica
Nossa sociedade não vê a morte com bons olhos. E com boas razões — se alguém em nossa casa morre, é instintivo colocar o ente querido em algum local preferivelmente distante e não-visível. O corpo se decompõe, e a festa das bactérias pode provocar doenças — sem falar na nossa aversão ao odor de decomposição, que pode ser um reflexo evolutivo para nos manter longe de matéria decomposta e potencialmente perigosa. Não deve existir coisa mais desagradável do que presenciar alguém querido, que participou de momentos importantes em nossa vida, se transmutar em uma massa amorfa. E morte é o fim — quando alguém morre, nunca mais teremos chance de interagir com aquela pessoa; se nós morremos, nossa consciência como indivíduo chega ao fim, e não poderemos mais interagir com ninguém. E mesmo que acreditemos em coisas como “vida após a morte”, ainda tememos a morte porque ainda se trata de uma condição clínica irreversível.
Mas um mundo de fantasia não é necessariamente igual ao nosso. O basicão pode ser — rotação de 24 horas e translação de 365 dias do planeta, uma gravidade que “puxa” as coisas para baixo, atmosfera rica em oxigênio, presença de macacos que evoluíram de modo a conseguir usar ferramentas e linguagem… –, mas há também as diferenças, e é ingênuo pensar que elas não influenciam a vida e a visão de mundo dos habitantes de tal mundo.
Portanto, em vez de jogar nossa cultura em cima de uma matriz fantástica como se ela fosse um absoluto, convém tentar saber por que pensamos as coisas desta forma e, se as condições fossem diferentes (como são em um cenário fantástico), como isso alteraria nossa percepção. Foi por isso que eu cruelmente submeti vocês a parágrafos e mais parágrafos de “Anatomia de mortos-vivos 101” — para termos uma visão palpável das coisas, sem amarras culturais, de modo que agora, conhecendo como a coisa funciona, podemos especular como as pessoas no mundo ficcional percebem e se posicional quanto a isso.
Vamos supor, primeiramente, uma sociedade (predominantemente) humana. Nós temos razão para torcer o nariz para a morte (e imagens, cores e símbolos associados a ela) porque morte é, para nós, o fim. Mas e se ela deixa de ser o fim, e passa a ser uma “aposentadoria” durante a qual não mais precisamos nos preocupar com coisas como envelhecimento, doenças, fome e todos os demais sub-produtos indesejáveis de nossa biologia? O morto-vivo deixa de ser uma “violação das leis naturais” e se torna uma condição desejável.
A morte se torna uma doença curável, a figura do morto (que não permanece morto por muito tempo) deixa de povoar pesadelos, se torna parte do quotidiano. A História pode se tornar mais confiável, se a prática da desmorte é adotada por tempo suficiente — eu não preciso confiar apenas em documentos que datam de dois séculos atrás quando eu posso entrevistar alguém que esteve presente nos eventos.
Se tal aposentadoria for muito cara, acessível apenas a poucos, e a sociedade tiver uma distribuição desigual de renda, símbolos associados à morte retêm parte de seu valor de medo (afinal, a maioria das pessoas ainda morre irreversivelmente), mas agora também provocam revolta, por serem símbolos também de uma aristocracia/burguesia/(necrocracia?) opressora.
Entram os “zumbis trabalhadores”. Se mantivermos o foco em uma sociedade desigual (se seu cenário de fantasia for feudal, é desigual pra caramba), famílias podem, mesmo ressentindo fazer isso, vender o corpo de um ente querido para detentores de poder e recursos (extrapolando a forma como vendemos ou doamos as roupas de parentes falecidos, por exemplo). Ou, se o cenário for medieval mesmo, com a presença de uma religião dominante e essencialmente mal-intencionada atuando em concerto com o Estado, padres, bispos e cardeais podem engambelar as pessoas com um “paraíso” pós-morte mais tangível — a servidão feudal continuada após o falecimento, travestida com memes de “a mais alta honra”. Se um servo feudal não imagina outra vida que não a de servo, o prospecto de ser um servo que não se cansa, nem sente fome ou angústia psicológica pode até parecer atraente.
Se tivermos um comércio de cadáveres em uma sociedade que não seja necessariamente feudal-desagradável como no exemplo anterior, podem haver algumas medidas para driblar o desconforto de ver a sua bisavó empilhando tijolos na construção civil. As faces de zumbis-de-trabalho podem ser desfiguradas ou substituídas por uma espécie de máscara; ou de certo há leis que postulam que cadáveres colhidos no país/reino X só podem ser postos em atividade no país Y, que é suficientemente distante (o que pode fazer certos países lucrarem um bocado com uma eventual guerra). Se o zumbi-trabalhador for suficientemente “impessoal”, o desconforto provavelmente não será maior que a comodidade te tê-los enguendo paredes ou arando a terra sob o sol escaldante — evitando que você precise fazê-lo.
Outras implicações de cunho funcional aparecem no artigo sobre ressureição (com uma segunda parte) que o Leonel Domingos publicou aqui no blogue faz algum tempo. Eu sei que mortos-vivos não são o mesmo que ressureição, mas, na prática, funcionam de maneira semelhante — alguém dado como morto retorna ao convívio social.
Religião
Religião é apenas mais um dentre muitos fatores sócio-culturais, e está longe de ser a característica importante que se pode conceber, mas tem algumas particularidades interessantes. No Romância, por exemplo, a religião foi uma forma interessante de amarrar os cadaveri (a “raça” de mortos-vivos que não os vampiros) ao cenário, e tudo por causa da seguinte citação:
Culto aos ancestrais deve ser uma idéia atraente para aqueles que estão prestes a se tornar ancestrais.
-Steve Pinker, How the Mind Works
E quão mais atraente essa noção se torna quando se pode continuar influenciando a sociedade mesmo depois de morto? Foi graças à dominação pela religião que os cadaveri (organizados em uma necro-máfia-eclesiástica) conseguiram, por um tempo, monopolizar o processo de desmorte que, sendo uma coisa desejável, lhes dava uma boa alavanca social. (O culto a ancestrais mortos-vivos também aparece no Eberron, com os deathless — que são mortos-vivos ressequidos, só que animados por energia “boazinha”, pra ninguém se sentir desconfortável com mortos-vivos diferentes de “sinônimo de vilania”).
Para o culto aos ancestrais ser eficaz, os tais ancestrais devem ter (ou serem percebidos como tendo) acesso perfeito e automático* às informações. O motivo é simples — é um atributo que esperamos de deuses. O bicho humano é obcecado por relações sociais, na qual a moeda é a confiança e a reputação. Não pagamos uma dívida por apreço à entidade comercial credora — o fazemos para não “sujar o nome na praça”, coisa que prejudicaria nosso “valor de confiança” futuramente. Funcionamos na “rede social” assumindo sempre que o acesso à informação por parte de outros agentes não é perfeito e nem automático — “Será que ela sabe que eu fiz tal coisa?’ –, e fazemos nossas jogadas com base nessas incertezas, e aqueles com quem nos relacionados fazem o mesmo.
(*Breaking the Spell – Religion as a Natural Phenomenon, de Daniel C. Dennett)
Com deus, é diferente — ele tem acesso perfeito e automático à informação. Não se pode enganá-lo. Por isso que deuses funcionam bem como recipientes do mais alto respeito e temor. Os acentrais têm um pouco disso — sabe como você consegue esconder todo o tipo de coisas de todo mundo, mas sua mãe sempre sabe quando você mente? O ancestral tem esse poder mas, se ele estiver morto, é percebido como “fora da esfera da vida” — e essa posição externa faz dele um obervador muito mais eficaz.
O desmorto tem tudo isso, e mais — ele tem o “sentido de mãe”, está fora da esfera da vida mas, diferentemente dos ancestrais de religiões reais — que são apenas um construto psicológico nas mentes de quem acredita — são agentes capazes de ação concreta na sociedade. Para que possam continuar colhendo os frutos do “pacote ancestral”, é necessário que limitem o acesso à desmorte apenas para iniciados ou aqueles que de alguma forma se comprometam a perpetuar a fraude.
Saindo da esfera dos ancestrais, vamos a outro meme relacionado à morte que faz com que várias religiões consigam infectar a mente dos fiéis, um que é realmente atraente — a vida após a morte. Se a coisa já é atraente sem qualquer comprovação — alguém já te contactou do “outro lado” confirmando? –, imagine se fosse líquido e certo? A igreja controla o acesso ao processo de desmorte — se o indivíduo observa os dogmas, tem uma boa conduta e, claro, contribui com fundos, é recompensado com a vida eterna. Uma versão “inferno” pode também estar disponível: é tudo igual, mas sem as medidas anti-rigor mortis, transformando nosso pecador em um prisioneiro no próprio corpo — para sempre.
Ou talvez o paraíso seja, de fato, imaterial — em vez de zumbis, fantasmas upload. A “extrema unção” se torna o processo em que o mapa sináptico (que podem muito bem chamar de “alma”) é colhido, assegurando que aquela personalidade individual sobreviva à morte do corpo. E depois? A mente descarnada é solta para ficar zanzando por aí? Seria estranho, principalmente tendo em vista o fato de que mentes soltas podem se modificar (e nem sempre de forma agradável). Talvez as mentes sejam descarregadas em um meio seguro e contido, algo semelhante à filacteria hard drive, mas “turbinada” com algum magismo de ilusão, de modo a criar uma realidade de acordo com o que é dito sobre o paraíso pós-morte nas escrituras da religião. Se mais de uma religião contar com tal serviço, a qualidade do “paraíso” pode ser crucial para ganhar fiéis. “Nosso Céu conta com diversos recursos exclusivos que a concorrência não oferece; inscreva-se agora e veja nossas opções de parcelamento do dízimo.”
Partindo, claro, da premissa de que esse paraíso também é como dizem. Tais “paraísos de 72 virgens” podem ser prometidos, mas nem sempre cumpridos. E se o upload mental não é descarregado em um desses paraísos artificiais, mas é absorvido pela própria divindade patrona da religião (assumindo que ambas rodam no mesmo meio), que dissolve a personalidade da mente descarnada e fica apenas com seus conhecimentos, de modo a suplementar sua “onisciência”? Ou pode ser algo menos obscuro — de maneira semelhante ao sumo-sacertode de Tanna-toh em Tormenta, as mentes podem, declaradamente, estarem destinadas a um “repositório de memórias” — “Você não sobrevive, mas seus conhecimentos, sim.”
Digamos que a religião — ou outras religiões, já que geralmente lidamos com politeísmo — não goste dessa tecnologia. “Contraria as leis da natureza” ou algo assim. Entram situações com que somos bem familiares — caça às bruxas, inquisição, “mortos-vivos são malignos”. Se esse tipo de religião tem poder e recursos suficientes, eles podem virtualmente levar a tecnologia de desmorte à extinção. Caso não seja suficientemente influente, podem desaprovar desde a maneira mais leve — beicinho e reprimenda “moral” — até meios mais pesados — que tal grupos da “Juventude de Khalmyr” atuando como skinheads “bondosos”? Uma ala mais moderada de uma religião anti-undead, caso venha a julgar a tecnologia como útil, ou, ao menos, como não “maligna”, pode acabar por dar origem a uma nova religião embrionária.
Ou pode ser que a maioria das religiões não dê a mínima. Desmorte não seria para eles um tema sensível como o uso de preservativo ou aborto — seria algo mais semelhante a carros ou computadores. Claro que isso só é possível se, em primeiro lugar, tais religiões se ocuparem de alguma outra coisa que não a obsessão pelo pós-morte.
Por hoje é só, pessoal
Já passamos de quatro mil palavras, logo, invoco o direito de retomar o assunto na parte 3. Finalmente colocaremos a mão na massa: como lidar com a expulsão de mortos-vivos na ausência da (irritante) energia negativa? Se eles não são mais vilões, como jogar com eles (no d20 3.5, ao menos) sem desequilibrar tudo? Discorri um monte sobre mortos-vivos intencionais, mas e os espontâneos, aqueles que aparecem às pencas em campos de batalha antigos, cemitérios e masmorras? Esqueci algum ponto de interesse? Então sugira o que pode ser abordado.