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Quarta Era: o que é mesmo jogar D&D?

É bem comum observar edições de jogos de RPG como portadoras de necessários aperfeiçoamentos nas mecânicas de um sistema. E ainda mais comum a luta ferrenha contra esta noção por parte de quem joga (muito bem, obrigado) o sistema antigo. “Ora, como assim eu tenho que ‘me atualizar’? Vá se F@&er….” brada o jogador/mestre/consumidor. E, dessa forma, muita coisa começa já sendo hostilizada com uma rápidez flashânica (é, eu invento palavras. Você não?).
Vejamos, de relance, o caso do Novo Mundo das Trevas. Nunca vi uma resistência tão grande (ao menos na minha cidade) para com as mudanças dos RPGs que reinaram soberanos na década de 1990. Não é de se espantar já que falamos não apenas de uma nova edição das regras, mas sim de uma reinvenção de todo o cenário e clima do jogo. Alguns até alegaram que, “finalmente”, teríamos jogos de horror com Vampire: The Requiem. Para quem é jovem o suficiente apenas para ter ouvido falar de WoD, gosto de lembrar que, antes disso, quando passamos da 2ª para a 3ª edição de Vampiro: A Máscara e seus primos, a recepção foi boa. Algumas mudanças técnicas importantes melhoraram o já muito criticado sistema Storyteller. E mesmo as mudanças de cenário, que foram espécies de atualização da linha de tempo do Mundo, não foram muito apedrejadas (ainda que eu até hoje prefira Mago: A Ascensão Segunda Edição. Acho que tenho sorte com números pares).
Mas então, veja só: as mudanças chegaram também ao velho AD&D de guerra. Lembro muito bem do estardalhaço e da incrível recepção que a 3 ª edição de D&D teve. Foi uma sensação. E foi movimentada, claro, pela enorme qualidade do novo sistema, pelo brilhante tratamento dos livros e dos mundos de jogo. D&D voltava com força total para retomar seu velho lugar “de direito”: o RPG mais jogado do mundo. Claro que digo isso sabendo que, no geral, a novidade também tem poder. E a voz dos amantes de AD&D foi bastante obliterada pelo furor do novo formato, da praticidade técnica e de um novo imaginário. Não foi apenas a qualidade da renovação do sistema ou das atualizações dos mundos de campanha que renovou D&D. Foi a perspectiva que a nova edição trouxe. A possibilidade de acrescentar materiais novos por meio da idéia da Open Game License, juntamente com a fabulosa ressurreição de cenários esgotados, com o retorno do primeiro RPG após anos de considerável abandono por parte do mundo editorial, deu um fôlego incrível à proposta. D&D era uma marca forte mais uma vez.
A etapa seguinte carrega, como você leitor deve imaginar, suas polêmicas. O que significou a “edição revisada”? Mera ganância da Wizard Of The Coast? Acho que muitos vão concordar comigo quando digo que, mais do que uma simples estratégia comercial perfeita, que visava a manutenção de uma linha de consumo, a 3.5 trazia sim, novidades. Algumas sutis mudanças nas regras (quem nunca revisou a Magia Velocidade, ainda que não tenha comprado os livros?) permitiram manter toneladas de material compatível e ainda criar um “nicho dentro do nicho”, fazendo com que uma parcela de jogadores migrassem para os novos manuais. Não penso que esse momento seja tão forte aqui no Brasil quanto nos EUA. Já foi dito mais de uma vez que a maioria dos grupos por aqui ainda joga a 3.0. A despeito dessa estatística ser complicada, é relevante dizer que esse é um exemplo possível de como a força da revolução da 3ª edição foi capaz de reagir até mesmo contra sua suposta sucessora. O novo D&D fora tão bem recebido que a edição revisada não representou nem uma afronta nem uma necessidade.
Mas, como você também deve imaginar, a historinha segue até… a Quarta Edição. Ahh… Muitos paladinos sofreram nesta guerra santa ainda não terminada. E julgo que muitos ainda sofrerão. A mudança de edição, neste caso, todos sabemos, é bem mais profunda. Não apenas em termos jurídicos (com a criação de uma nova licença para produtos de outras editoras e pessoas), a 4E alterou bases fortes de sua antecessora. Reconstruiu o coração do sistema de criação de personagens, alterou a mecânica o suficiente para “obrigar” qualquer um que queira conhecê-la a ler seus livros novos. Em suma, desta vez, não se trata de algo que possa ser ignorado se a sua intenção é jogar o “D&D oficial” ou, dito de outra forma, se você deseja acompanhar o primeiro RPG em sua nova encarnação.
A maior das polêmicas aqui é: ainda é D&D? Há alguns meses eu me fazia a mesma pergunta e não acho que ela seja boba. Se trata de uma tentativa de reconhecimento. Afinal, por quase dez anos “jogar D&D” envolvia jogar no que a 3.0/3.5 criaram. Hoje, me contentando com a idéia de que jogar D&D é fazer uso de qualquer de suas versões, penso também que a 4ª Edição de Dungeons & Dragons foi criada como um novo produto e, como tal, precisa ser… bem, novo. Além dessas redundâncias chego a pensar que o novo D&D sofre e ainda sofrerá porque é uma retomada das mudanças em uma época que poucos queriam mudanças tão radicais. O tempo da editora e o tempo dos consumidores estão diferentes desta vez. A demanda por uma novidade radical – e ainda mais uma novidade em termos tão diversos – não existia na grande massa de jogadores. É bem possível que jogos nos patamares de 3.6, 3.7, e 3.8 ainda se sustentem, especialmente quando as inovações conseguem “romper sem romper” (como Mutantes & Malfeitores, True20 e outros OGLs). Mas a 4ª edição está aí. Faz sentido dizer que ela é “menos RPG” porque assumiu uma leitura diferente de D&D? Faz sentido pensar que sua ênfase no combate retira a possibilidade de interpretação?
Essas perguntas já tem muitas respostas por aí e a intenção aqui não é reiventar roda nenhuma. Só gostaria de concluir esse raciocínio dizendo que a 4E tem vantagens mecânicas curiosas e que o jogo de ataca-rebate tem impedido muitos de vê-las – o preconceito é sempre mais forte sobre as nossas escolhas do que a gente gosta de admitir. Esperei até sua versão nacional para conhecê-la melhor e para perceber que a sua simplificação dos aspectos narrativos não é um prejuízo para a minha mesa ou para notar que suas resoluções de regras não sejam um problema. Posso, sem grande dificuldade, ver Pulsos de Cura como folêgo retomado, PVs como fadiga em combate e poderes como proezas marciais. Posso entender que as capacidades de combate listadas não fecham as capacidades de um personagem fora da luta. Posso, muito bem, viver com o fato de que criaturas e personagens não-jogadores não tem classe de jogadores. Pode ser que eu consiga essas abstrações porque AD&D e D&D 3ª edição já tenham forjado uma visão de RPGs de fantasia para mim e para meu grupo que nenhuma simplificação pode desfazer. Dessa forma vejo que como parte de uma boa ironia, a 4E pode ser bem mais interessante para jogadores mais antigos. Porque serão esses os que melhor poderão se valer das histórias antigas com variações técnicas curiosas. Não porque a 4E seja uma “evolução do jogo” em si, mas porque talvez, e só talvez, jogar D&D signifique conhecer e aproveitar a sua história de mutações, inovações e edições, se valendo do passado para repensar a “mesa de agora”.
É isso. Eu precisava dizer o que passei a pensar.
Abraços.

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