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Zumbis, liches e múmias! Oh, my! (Parte 1)

Mal chegamos na terra da fantasia e nos deparamos com cadáveres ambulando pela paisagem. Uma tanatofilia saudável, se você quer saber — gente morta que anda, liches, zumbis e afins são legais. Legais e pouco aproveitados, porém. De modo semelhante a outros elementos fantásticos, impera aqui a “Sídrome Pokémon”: um balaio de criaturas exóticas das quais somente o potencial porradeiro é aproveitado. Um uso legítimo, mas apenas um dentre muitos.
Vislumbremos a anatomia destes mortos-vivos, de modo a saber seu funcionamento e limites e, armados destas informações, desbravemos possibilidades como o processo de contrução, força de trabalho, tecnologia de imortalidade e outras que por ventura surgirem.

Undead anatomy 101

“Mortos-vivos são criaturas animadas por forças do Mal.” Pode até ser, mas prefiro não. Deixemos um pouco de lado os tabus de nossa sociedade referentes a cadáveres e todo o processo de morte em si, e tentemos encarar a coisa de forma neutra. Os mundos de fantasia podem ser modelados a partir do nosso, mas são diferentes — proponho, portanto, abordar primeiro o processo e uso dos mortos-vivos em si para depois aplicar qualquer juízo de valor.
Próxima candidata, energia negativa. Pode parecer uma boa explicação, mas não é. Por quê? Por não explicar coisa alguma. É como se eu quisesse saber como um carro se move, e o peão me respondesse “por causa da gasolina”. Até explica, mas de forma insuficiente. Já uma explicação que me fale sobre a interação das partesdo motor — pistões, câmara de combustão, velas… –, e como estas interagem com a gasolina, faz um melhor trabalho. Se considerarmos o morto-vivo um automóvel, a energia negativa faz as vezes de combustível. Retomaremos isto adiante.
Com base nas informações mais difundidas por aí, podemos assumir o seguinte quanto ao funcionamento corpóreo dos mortos-vivos.
1. Mortos-vivos não respiram, não necessitam de alimentação, não possuem circulação sanguínea ou metabolismo. O que podemos entender daí é que todo e qualquer processo aeróbio (que necessita de oxigênio) inexiste nos cadáveres que ambulam. O sistema circulatório serve para distribuir o oxigênio no corpo (que não utilizam, já que não respiram), e, como não se alimentam, a energia empregada nos processos existentes deve vir de outro lugar — “energia negativa” em Dungeons & Dragons, mas não precisamos nos limitar a isso.
2. Mortos-vivos se movem, percebem os arredores e reagem de acordo. O cérebro funciona, e faz funcionar o sistema muscular, os órgãos dos sentidos, e pode haver presença de cognição (liches sim, zumbis não). Músculos também funcionam — mas apenas a musculatura estriada, a responsável por movimentos voluntários; a lisa, responsável por movimentos involuntários (coração, peristaltismo do sistema digestivo…), não tem razão para funcionar, visto que, conforme vimos no item anterior, mortos-vivos não apresentam tais funções.
(Ou talvez esses músculos lisos funcionem, ainda que, contraditoriamente, não desempenhem suas funções, transformando toda ação muscular involuntária em algo errático e espasmódico — passível de fornecer ao mestre um mundo de descrições inquietantes no momento de descrever zumbis com órgãos expostos.)

Enquanto isso, dentro do crânio

De acordo com o Open Grave, o que difere os mortos dos vivos é a presença de alma. Além da alma, há um componente na ligação desta com o corpo — o animus. É a “alma” que fornece consciência e seus derivados, como discernimento, moral, etc. Mortos-vivos considerados como não-inteligentes possuem animus, mas não alma, e por isso se comportam como animais movidos por instinto (fome, principalmente — mesmo não precisando se alimentar, o animus dá, supostamente, ordens para o corpo fazê-lo).
Limando o supérfluo (sobretudo o papo sobre “alma imortal” que o livro aborda…), podemos entender o seguinte: não há mortos-vivos sem inteligência, mas, sim, com inteligência de bicho. Não que aqueles que conservem sua racionalidade intacta — liches, vampiros… — sejam mais “bonzinhos” por isso: apenas têm formas mais estratégicas de satisfazer suas necessidades animalescas do que simplesmente investir para cima das vítimas gemendo “miolos”. (Mas, se varrermos para fora de casa todo o estereótipo de “maldade inerente em mortos-vivos”, eles podem ser perfeitamente capazes de moralidade.)
A questão não é maldade, bondade, alma ou sua ausência: o jogo real é entre razão e instinto.
Com a ausência de um superego censor — todo um conjunto de normas e proibições aprendidos na infância e depois internalizados, que nos permite funcionar em sociedade –, os instintos tomam conta. Sempre pensamos em zumbis devorando gente, mas eles podiam muito bem se dedicar a arrastões de estupro, por exemplo — ambos sexo e fome são, afinal, instintos básicos  –, mesmo que não possuam órgãos sexuais funcionais para tal. Mortos-vivos de consciência limitada podem se munir de bizarras próteses para este fim, e levar suas aventuras para novos patamares de Escatologia & Sadismo (Disclaimer: Escatologia & Sadismo é (c) Leonel Caldela, todos os direitos reservados).

Podreira!

Como diferenciar os mortos-vivos entre “racionais” e “instintivos”? A resposta está na conservação do cérebro. É seguro postular que os mortos-vivos ditos “instintivos” compartilham uma coisa em comum: certas partes do cérebro simplesmente não funcionam (ou funcionam muito mal). O candidato mais provável é o lobo frontal, a que se atribui funções como planejamento e pensamento abstrato. Sem pensamento abstrato, cai por terra toda a possibilidade de se lidar com conceitos como ética, civilização, ou qualquer outra coisa mais complexa do que “comida ali”.
E por que partes do cérebro não funcionariam? Apodrecimento. Cinco minutinhos sem oxigênio e o cérebro já sofre danos nada desprezíveis. Que dizer, então, de horas? Ou, pior, dias? É um milagre que zumbis e similares sejam capazes até mesmo da mais básica instintividade.
O sinal de apodrecimento mais evidente, contudo, é aquele que afeta o corpo. A lentidão caracteristicamente atribuída a zumbis deve ter como causa o rigor mortis. A química muscular entra em parafuso, a carne acaba “empedrando” e, até que a putrefação transforme tudo em mingau, o que temos é uma (não tão) bela estátua de treliças de proteína.

Manual do fabricante

Se temos um cadáver, a putrefação será rápida em mastigá-lo e nos devolver uma massa amorfa sem utilidade. Mesmo que ela seja clemente, o resultado, um cadáver duro como pedra e um cérebro inutilizável, não é exatamente favorável à criação de mortos-vivos funcionais. Para que um dado corpo se preste ao ingresso na morte-em-vida/vida-em-morte, ele deve ser devidamente conservado — entra o embalsamamento.
A forma mais difundida é a mumificação, que, acredite ou não, nada tem a ver com bandagens — o nome do jogo aqui é desidratação. Sem água, sem bactérias, sem apodrecimento (os fungos são outra história). Cabe expor, brevemente, o processo utilizado pelos egípcios.
Primeiramente, uma perfuração craniana para extrair o cérebro. A seguir, outra perfuração na lateral do abdômen (nada escandaloso, do tamanho de um punho apenas) para possibilitar a retirada das vísceras. Estas, então, são substituídas por saquinhos de linho recheados de sódio — compostos naturais deste metal, como carbonato e bicarbonato de sódio, peneirados com sal. Feito o recheio, o caráver é coberto com fracos e frascos do mesmo composto. O uso do sódio, você já deve ter adivinhado, serve para desidratar o corpo. A carne ressecada é lavada com álcool esterilizante (matar bactérias nunca é demais), e o corpo é friccionado com resina e especiarias aromáticas. Finalize com uma camada de resina e seu cadáver embalsamado está pronto — limpinho, sequinho e à prova de apodrecimento.
Não é exatamente o melhor procedimento para fazer mortos-vivos — uma estátua de proteína sem cérebro e tão seca que chega a ser quebradiça não é um bom zumbi. Mas nem por isso deixa de ser um bom procedimento, que se torna ideal com alguns ajustes. Primeiramente, precisamos conservar o cérebro (ou, ao menos, o que restou dele), e, de preferência com alguma substância que permita a condutividade elétrica (nós precisamos das sinapses, afinal). A carne nos desafia com duas necessidades aparentemente irreconciliáveis — desitratação e flexibilidade. Eu arriscaria alguma espécie de óleo. Provavelmente enriquecido com substâncias que reproduzam a ação do cálcio e da adenosina tri-fosfato, de modo a possibilitar o movimento dos músculos e substituir a química original, que, se não for neutralizada rapidamente, nos dará um caráver duro de rigor mortis.
Talvez nem se necessite secar o corpo como se fosse uma peça de charque. Seu sistema/cenário de escolha possui magias que permitem controlar água? Ótimo, eis tudo o que você precisa — se movimenta água, também movimenta outros fluidos mais ou menos viscosos (a menos que seja especificado que a magia age sobre oxigênio/hidrogênio ou manipula as pontes de hidrogênio que ligam as moléculas, mas eu duvido). É só orquestrar simultaneamente a saída da água e a entrada do óleo nos tecidos.
A conservação de corpos pode também seguir outros caminhos. Vos apresento o Homem de Tollund. Ele foi assassinado, e provavelmente jogado em um pântano na terra do tr00-666-metal — tal sepultura improvisada garantiu que seu corpo se conservasse do século IV a.c. até o ano de sua descoberta, 1850. Nesse caso, a alquimia da natureza vez as vezes da mão do homem. De acordo com as teorias vigentes, a conservação do corpo em tais circunstâncias se deve a alterações químicas causadas pela morte do musgo sphagnum, presente na flora destes pântanos. Na ocasião de sua morte, o musgo libera uma substância instável conhecida como sphagnan, que se converte em ácido húmico. Estes compostos e suas etapas transitórias afetam o cadáver de maneira singular. Tais substâncias extraem o cálcio dos ossos, amolecendo-os, e, mais importante, desencadeiam uma reação com o nitrogênio presente na carne humana, desacelerando o crescimento de bactérias — e verdadeiramente curtindo pele e órgãos, emprestando-lhes um aspecto escurecido de couro curtido. A ausência de oxigênio também deve ser apontada como aliada da conservação.
Foi esta a base que usei para definir o procedimento de embalsamamento dos cadaveri, uma das duas raças de mortos-vivos disponíveis no Romância (a outra são os vampiros). Tudo com uma boa ajuda nanotecnológica — ou melhor, biotecnológica. Embora muitas das etapas sejam retiradas do processo de mumificação tradicional, a manutenção das partes funcionais — músculos e nervos — é baseada no uso dos compostos citados no parágrafo anterior e em reações realizadas por bactérias anaeróbicas.
Bactérias são nanomáquinas naturais, e, com um pouquinho de engenharia (ou você achava que bio-taumaturgia servia apenas para remendar ferimentos?), podem ser configuradas de modo a realizar tarefas desejáveis. No caso dos cadaveri, a tarefa das batérias é impregnar os tecidos (mas não os ossos; queremos que o morto-vivo pare de pé) com o ácido húmico e os demais componentes conservadores, ao passo que um segundo time, aplicado posteriormente, se ocupa de reproduzir funções metabólicas que permitam o funcionamento de cérebro e músculos.

Mão de obra

Agora que temos mortos-vivos funcionais, vamos colocá-los para trabalhar. Parece estranho, e com razão: é um pouco demais para o frágil estômago da grande maioria, sem falar em todo o desconforto geral, visto que a maioria das sociedades está mais para Eros do que Tânatos. Novamente, vamos deixar de lado os nossos tabus e frescuras provenientes de vivermos em uma sociedade que, até poucos séculos atrás, via como “pecaminoso” manipular e abrir cadáveres e ver a coisa pelo lado prático.
Por que raios alguém preferiria um cadáver ressequido e embalsamado para executar algum trabalho em vez de, por exemplo, um constructo mecânico, um elemental, um animal ou até mesmo um empregado vivo padrão? Derrubemos um a um os concorrentes:
Elementais são geniosos demais, difíceis de dominar e, se escapam da coleira, bichos assim podem fazer um enorme estrago. É como ter um tigre fazendo as vezes de gato de estimação — pode ser muito bonito e bacana, mas o perigo potencial beira o proibitivo. Sem falar que ou você é um arcano de poder considerável ou possui algum artefato místico igualmente potente, e, conseqüentemente, caro para constrolar o bicho satisfatoriamente;
Constructos mecânicos não se cansam ou reclamam, mas são de difícil elaboração. Você precisa criar a coisa toda do zero (a menos que existam no mercado “cérebros positrônicos” já prontos, à Asimov). E, a menos que o objetivo seja uma tarefa muito simples/repetitiva (como uma colheitadeira), é necessário construir toda uma inteligência artificial, uma com sistemas sensores, mecanismos para avaliar a informação percebida e, a seguir, traduzi-la em uma resposta apropriada. Talvez pareça simples, mas não é — mesmo os robôs mais avançados que temos hoje em dia são bastante limitados;
Animais e gente comum. Os primeiros só realizam as tarefas mais especializadas. Já as pessoas podem realizar mais, mas, assim como os animais, demandam descanso — e salário, direitos trabalhistas…
O morto-vivo une o melhor de vários mundos. São incansáveis como os constructos e, em essência, são (semi-)humanos, mas do tipo que não reclama ou precisa descansar. Isto se dá pelo fato de que toda a parte de estrutura e “programa de inteligência artificial” já vem pronta — o que, mesmo levando em conta o custo de embalsamamento e animação, deve sair mais barato que fazer um golem do zero. E, como bônus, pode-se “programar” o cérebro para diversos tipos de trabalho, de forma semelhante ao que ocorre no Admirável Mundo Novo.
Quer um empregado barato apenas para fazer limpeza? Encomende um zumbi que só tem conservadas as vias sinápticas do cérebro que são necessárias para tal tarefa (que, por ser simples, provavelmente será mais barato). Se encararmos o morto-vivo estritamente como máquina, nada haveria de anti-ético em submetê-lo a feitiços de cirurgia e edição mental (se conservação seletiva do cérebro não é sua praia), de modo a deixá-lo eficaz para a tarefa e seguro contra revoltas. Coisas que não se pode fazer com um ser humano — mas que são factíveis em se tratando de um cérebro humano que não possui consciência/individualidade/personalidade. (Claro que essas “máquinas” já foram pessoas com personalidade, amigos, família — veremos as implicações disto posteriormente.)
Outra parte boa é o “chassis” antropomórfico, que segundo o Asimov, é desejável para constructos porque a esmagadora maioria dos utensílios que existem por aí são feitos para serem utilizados por humanos. Um fazendeiro não precisa de uma colheitadeira, uma semeadeira e todo o resto se ele tem um zumbi programado para tarefas rurais — um único zumbi pode operar o arado e outras ferramentas já existentes na fazenda. E ele não possui metabolismo, e não não vai sofrer queimaduras de sol, ou reclamar se você o pôr para arar a terra do nascer ao pôr do sol, sem intervalos.
Além de servir de guardas para torres de necromantes “malignos”, mortos-vivos podem ter outros usos marciais. No cenário Eberron, por exemplo, a nação de Karnath possui um exército de mortos-vivos. Não sentem dor, nem fome, nem medo (pelo contrário, o provocam) — dão, afinal, bons soldados. E são obtidos a partir de uma matéria-prima abundante em campos de batalha — gente morta.
Se você acessou o link sobre o Homem de Tollund, viu que ele nem é tão feio assim. É o paradigma que adoto aqui, mortos-vivos conservados — não chegam nem perto de serem perturbadores como um cadáver em decomposição e cheirando a carniça. Talvez, com certa razão, você prefira não ser servido na taverna por uma “garçonete de Tollund” — pode estragar o apetite –, mas para outros tipos de tarefas, são muito bons.

Tecnologia da imortalidade

Cobrimos os zumbis e outros tipos de mortos-vivos “capangas” — aqueles que colocamos para realizar as tarefas com que preferimos não sujar as mãos. Mas e os mortos-vivos mais “nobres”, aqueles que se tornam desmortos por opção e retêm sua inteligência e personalidade, como liches, algumas múmias e afins? Nesse caso, a coisa é mais embaixo.
Deixando de lado bizarrices como Epic Destinies, mesmo em mundos nos moldes do Dungeons & Dragons, em que ressurreições parecem ser tão comuns quanto um peido, opções de imortalidade são muito limitadas. Uma magia de ressurreição não funciona em casos de morte natural; “poções de longevidade” devem fazer do usuário, transcorrido tempo suficiente, ou viciado, ou paranóico (ou ambos) já que, possivelmente, se deixar de tomar a dose, todos aqueles anos trapaceados podem cair sobre ele como um tsunami. Com magias de reencarnação, você corre o risco de voltar como um orc ou, pior!, um anão.  Ao que parece, não há opção se não sofrer as conseqüências do defeito genético generalizado da espécie humana, que diz que, passada uma certa idade, seu corpo vai perecer lentamente, se tornando feio, senil, culminando na morte inevitável… (A etapa de “feio e senil” pode ser pulada com habilidades como o “corpo atemporal” de monge, mas quando chega a hora de morrer, morre igual.)
Mas não se você dar um basta nos processos biológicos que vieram com defeito da fábrica da natureza. Alguém com fundos e determinação suficientes pode escolher entrar no clube dos desmortos sem sequer precisar estar morto em primeiro lugar. Imagine que beleza de cena:
Um rico comerciante, tendo economizado ouro o bastante, resolve se aposentar em grande estilo. Ele procura o necromante, atraído pela promessa de escapar da tragédia da não-existência. O arcano o deita em uma mesa e aproxima de seus lábios um cálice de um coquetel alquímico de sabor adstringente. O gosto é horrível, mas, à medida que o líquido desce gelado pela garganta, o laboratório à sua volta começa a ficar difuso, distante, e o mercador desliza gentilmente para a inconsciência.
A gentileza é quebrada por um ritmo frenético — uma broca agilmente invade o crânio, abrindo caminho para um tubo de couro, conectado a um funil que guia uma substância escura e oleosa para o cérebro; outros conduítes rapidamente entram em cena, drenando os fluidos do corpo, enquanto outros preenchem o espaço recém vago com estranhas misturas. O magista fecha os olhos, gotículas de suor lhe pontuam a testa e, com algumas sílabas alienígenas e movimentos manuais, as partes por demais sólidas para as cânulas — vísceras, gordura — se dissolvem e afloram pelos poros da pele, acompanhadas de um odor horrível. Trapos tirados de um balde com água quente limpam o muco visceral.
A água do balde está agora turva, toda a tubulação removida. De uma caixa de interior alcochoado, o necromante retira um pequeno frasco, contendo a Doença. A introduz no paciente com uma temível agulha. Põe as mãos sobre o peito do morto e, delas emanando um pulso faiscante, faz o coração executar sua última tarefa — distribuir o agente até a menor fração do corpo conservado. São necessários outros dois dias para uma etapa relativamente simples — o tratamento da pele. Pelo preço que o cliente pagou, sua pele não deve se parecer com uma ameixa seca ou ser dura como madeira.
No terceiro dia, o comerciante levantou. Sua pele estava mais escura e parecendo couro curtido, era inevitável, mas era um pequeno preço a se pagar pelo prazo de vida dilatado além de seus desejos mais selvagens.
Por que eu lhes empurrei goela abaixo parágrafos de prosa? Para ilustrar um ponto importante — se não houver outra tecnologia de imortalidade mais “limpa” disponível, aqueles que tiverem interesse em prolongamento indefinido verão na desmorte uma opção atraente. Qualquer pessoa, e não apenas necromantes “malvados” e “profanos”.
Ou quem sabe um grupo funerário de “socorristas”, chegando o mais rápido que puderem quando acionados, na ocasião da morte de alguém que comprou, em vida, o “pacote de eternidade”, a fim de conservar o recém falecido. Necromantes se tornam algo semelhante a advogados — você pode achá-los desagradáveis, mas, em algum momento, pode precisar deles.
Pela complexidade das operações envolvidas, talvez não seja uma tecnologia tão difundida quanto se gostaria. Ou o preço pode nem ser problema — talvez um obstáculo mais difícil, conhecer as pessoas certas. Ou mesmo o Estado pode limitar o acesso: está aí uma recompensa realmente única para ser oferecida a nossos valorosos aventureiros, melhor que qualquer montante em peças de ouro — a imortalidade.

Finalizando (por enquanto)

Se eu fiz um bom trabalho em enredá-los no meu raciocínio, queridos leitores, devem ter se dado conta que começamos a tocar na superfície de algo interessante: as implicações sociais da presença de mortos-vivos em uma dada sociedade fantástica. Serão nossos desmortos isolados em guetos? Irão seus compatriotas que respiram aceitar tudo isso com naturalidade?
E a religião, como vai complicar as coisas além do necessário? Aceitarão bem essa exótica tecnologia, talvez até mesmo a elevando ao status de “paraíso final na terra”? Ou empreenderão uma caçada inquisitorial ignorante, alegando “pecado” e “profanidade”?
Aspectos técnicos de que o leitor astuto sentiu falta também serão elucidados; que fazer dos mortos-vivos que surgem espontaneamente? E, deixando de lado a bufonaria da “negativa”, como nossos desmortos obtêm energia para funcionar? E se eu quiser jogar com um morto-vivo, não vai ferrar com o equilíbrio mecânico? E os liches, caramba?!
As respostas para estas e outras questões que por ventura me ocorram nesse meio-tempo serão respondidas na segunda parte deste artigo.
(E parabéns se você sacou a referência do título.)

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