Ícone do site RPGista

Inteligência divina, deuses desumanos e outras excentricidades

Ou “O que podemos esperar do comportamento de um deus (e outras excentricidades divinas)”
O que podemos esperar dos deuses? Perguntinha difícil — não é como se tivéssemos deuses morando na casa ao lado para observar ou entrevistar. Como uma enormidade de elementos em fantasia, a coisa acaba se baseando em mitologias, com adendos e customizações por parte da criatividade do autor. Deuses mitológicos costumam ser um bocado humanos — o panteão greco-romano é recheado de intriga, politicagem e doses enormes de ciúme patológico; mesmo o Jeová do judeo-cristianismo, em todo seu conceito de divindade platônica, é, no Antigo Testamento, passional até dizer chega — é ciumento, raivoso, violento…
Nenhum problema até termos acesso às eventuais fichas dos deuses — se, no sistema d20, pode-se dizer que alguém com Inteligência 20 é algo na divisão do Stephen W. Hawking, cujo alcance intelectual é confuso para a maioria de nós (ao menos o é para mim), o que esperar de um ente com Inteligência 40? Ou cento-e-lá-vai-pedrada? Minha primeira aposta — algo essencialmente não-humano, alienígena demais para compreender. Ou será que não?
Recentemente, me deparei, na ficção, com as divindades mais bem desenvolvidas que já tive o prazer de ver em blocos de texto. Impressionantemente, não foi em nenhum livro de fantasia, mas, sim, na ficção científica, no Accelerando do Charles Stross. A origem de tais divindades é diferente do que se vê nos mitos de “e então deus decidiu criar as coisas” — esses deuses foram criados pelos humanos. Sim, fã ardoroso da fantasia, tenha calafrios — os tais deuses são inteligências artificiais.
Na parte final do Accelerando, somos informados, através de um diálogo entre personagens, da forma como pensa uma dessas inteligências descomunais. Reproduzo o trecho devidamente traduzido.

“Agora, a consciência. É uma coisa engraçada, não é? Produto de uma corrida armamentista entre predador e presa. Se você vê um gato espreitando um rato, pode atribuir que as intenções do gato são mais facilmente explicáveis pelo fato de que ele possui uma teoria mental em relação ao rato — uma simulação interna do provável comportamento do rato quando este percebe um predador. Para qual lado correr, por exemplo. E o gato usará sua teoria mental para otimizar sua estratégia de ataque. Por outro lado, espécies de presa suficientemente complexas para ter uma teoria mental têm vantagem defensiva se puderem antecipar as ações do predador. Eventualmente, esta corrida armamentista bem mamífera nos deu uma espécie de macaco social que usava sua teoria mental para facilitar a comunicação por sinais — para que a tribo pudesse trabalhar coletivamente — e então, reflexivamente, para simular os estados internos do próprio indivíduo. Some ambos, comunicação por sinais e simulação introspectiva, e o resultado será consciência de nível humano, incluindo linguagem como um bônus — sinais que transmitem informações sobre estados internos, não apenas sinais simples como “predador aqui” ou “comida ali”.”
(…)

“Então,” (…) “nós chegamos ao pós-humano. Não apenas nossos implantes neurais, mapeados até o nível sub-celular e executados em um ambiente emulado em um enorme computador como esse: Isto não é pós-humano, é uma enganação. Estou falando de seres que são melhores máquinas de consciência que nós, tipos meramente humanos, melhorados ou não. Eles não são apenas melhores na cooperação — veja a Economia 2.0 para uma demonstração clássica disso –, mas melhores na simulação. Um pós-humano pode construir um modelo interno de uma inteligência humana que é, bem, tão cognitivamente forte quanto o original. Você ou eu podemos pensar que sabemos o que move outras pessoas, mas geralmente erramos, ao passo que verdadeiros pós-humanos podem realmente nos simular, estados internos e tudo o mais, e acertar. (…)”

Não é o tipo de mente que se esperaria ver participando de picuinhas de humanos, certamente — eles estão por demais acima disso. E, se lidamos diretamente com um ser de tal consciência, ele sempre vai levar a melhor — nesse caso, nós podemos, de fato, atribuir a esses entes o atributo da onisciência.  Ele pode não saber de tudo, mas, em relação a nós, ele sabe.
Juízo final!
Em relação a consciências assim, somos como uma rã em comparação com um humano. Eles poderiam simplesmente se livrar de nós. Se o cenário possui deuses e seres humanos (atarracados ou não, com ou sem orelhas estranhas), quer dizer que aqueles decidiram não fazê-lo. Por quê? Vai saber. Algum tipo de excentricidade, filantropia greenpeaceana, ou só o prazer de possuir uma fazenda de formigas. Talvez curta animais de estimação — ou seja um sádico que “esmaga formigas” explodindo cidades. Tudo isso apoiado em motivos que não podemos sequer imaginar.
O Charless Stross chega a desenvolver uma situação em que há uma dessas A.I.s “divinas” que escolhe ter humanos zanzando por aí.  O tema aparece nos romances Singularity Sky e Iron Sunrise, na forma do Escathon, um plot device poderosíssimo — essa A.I. descomunal resolveu, em certo momento (lá pelo fim do séc. XXI ou um pouco depois, não recordo) reduzir a população da Terra (então uns 10 bilhões) para algo em torno de 2 bi. Como? Transportou populações inteiras, via wormhole, para outros planetas habitáveis (ou não-habitáveis com suficiente terraforming feita de antemão), resultando em um universo bem aasimoviano de “humanos em tudo o que é planeta”. O Escathon já deixa claro “Não sou seu deus, eu descendi de vocês”, e, escrito em monolitos enormes em cada planeta, faz sua única exigência — “Não violarás a causalidade dentro do meu cone de luz. Caso contrário…” O motivo é fácil de se entender — com a possibilidade de viajar mais rápido que a luz, tem-se, efetivamente, viagem no tempo. Então é perfeitamente possível “voltar no tempo” e editar o Escathon fora da história. E ele, claro, não gosta da idéia — e tem por hábito explodir sistemas solares que contenham planetas com gente que tente fazê-lo. Ou, em casos mais brandos, emprega agentes (humanos que não querem sistemas solares explodindo) para frustrar, de forma discreta, tais tentativas.
Em um cenário de fantasia medieval politeísta (mesmo quando este não passa de um monoteísmo com roupas engraçadas), a coisa pode ser parecida. Por que os deuses mantém os humanos/óides por aí ainda é uma incógnita, mas eles possuem algumas vontades que conseguimos compreender (“não ferre com a História no meu cone de luz!”) e empregam agentes para frustrar intenções adversas às suas (que, nesse caso, podem ser a intenções de outras divindades).
Esta última frase me deixa com uma pulga atrás da orelha — divindades seriam, em teoria, ótimas na cooperação e fariam a alocação de recursos da forma perfeitamente eficaz*.  Mas… e se os recursos de que elas dependem forem escassos? Escassos a ponto de, mesmo com uma divisão otimizada, não serem suficientes para garantir a sobrevivência de todos, fazendo necessário algo barbárico como a competição, uma relação de soma zero?  Entra em cena o mercado de fiéis.
*(Também é possível que sejam A.I.s tão diferentes entre si a ponto de a incompatibilidade impossibilitar a cooperação — mas vamos assumir que não. Deuses em RPGs podem possuir personalidades distintas, mas, de modo geral, o chassis é o mesmo, e poderiam ser, portanto, suficientemente inteligentes para praticar uma distribuição ótima de recursos a despeito de divergências menores, dado que tais recursos sejam suficientemente abundantes.)
Mercado da fé

Se você já leu sobre os deuses de um dado cenário, você certamente esbarrou com esta informação: os deuses dependem da crença dos fiéis para existir. Se a divindade perde popularidade demais, ela fica subnutrida e caquética; se o seu culto bomba, ela fica bombadona. No Tormenta isso fica bem evidente — a Glórienn, a deusa dos elfos, perdeu enorme quantidade de poder quando a fé nela foi severamente abalada, por pouco não perdendo seu status de divindade. A razão disso nunca é explicada, mas é incontestável o fato de que, em cenários que seguem esse modelo, deuses terão interesse em interferir nos assuntos humanos/óides visto que, por alguma razão, eles dependem da crença das “formiguinhas”. E somos levados a crer que a fé das criaturas do plano material é um recurso escasso.
Deuses-memes
Este paradigma, deuses dependem de fé para existir, optei por usar no Romância, com uma tentativa de explicação pseudo-científica-mirabolante. Funciona mais ou menos assim: é postulada a existência do éter — semelhante ao éter luminífero dos vitorianos, é o meio em que se propagam ondas eletromagnéticas (luz, eletricidade, magnetismo…), que são, com algumas forçações de barra, a base da magia no cenário. Para ferrar ainda mais, esse éter é semelhante  aos componentes subatômicos descritos no livro charlatão Occult Chemistry — “partículas de éter” podem se agregar, formando prótons e seus coleguinhas (e estes formam os átomos, que formam moléculas que compõem as coisas que existem por aí). Estas “moléculas de éter” podem formar estruturas que não são compostas por suficientes partículas a ponto de formar um próton (ou nêutron, etc.). Estas estruturas “semi-materiais”, em suas formas mais simples, são usadas como “alavancas” telecinéticas, “martelos” de força invisível, “canaletas” para guiar descargas energéticas… — mas, da mesma forma que a evolução, em milhões de anos, fez surgir nós e outros organismos vivos a partir de átomos e moléculas simples, essas “moléculas de éter” semi-materiais deram origem a uma “fauna etérica”. A maioria não passa de “bactérias” (que podem ou não causar “doenças mágicas”), “animais” como elementais que “pegam carona” em fogo, eletricidade, terra, etc. — mas se formaram também uns poucos organismos realmente complexos — deuses.
Eles não criaram o mundo nem nada assim — mas eles querem que você acredite nisso porque lhes é conveniente. Os deuses descobriram que podiam aumentar de tamanho anexando certas estruturas a si — os memes. Como a atividade cerebral consiste de impulsos elétricos (que, como eletromagnetismo, se propagam dentro do éter, segundo o modelo do cenário), idéias e pensamentos na mente das pessoas possuem estrutura etérica, e os deuses, “programas de computador”, “inteligências artificiais” etéricas, são feitos de estrutura parecida, logo, podem se anexar a memes ou memeplexos (conjuntos de memes) — que passam a se comportar como prolongamentos da divindade, facilitando a onipresença pois, se alguém contaminado pelos memes do deus está em algum lugar, parte do deus também está lá.
Aí a escolha de memeplexos (pense nos “portfólios” das divindadades) vai pelo gosto de cada deus — deuses mais palatáveis, como Vitória ou Sophia, se anexaram a memes de esclarecimento, auto-perfeição e liberdade de pensamento, de modo que seus “hospedeiros” sejam mais flexíveis e vivam vidas melhores — não por afeição ou coisa assim, mas sim porque apostam que agentes mais satisfeitos são melhores trabalhadores. Outros mais expansionistas, como Morgenstern, se anexaram a memes atraentes, mas que não correspondem a fatos da realidade, como uma vida após a morte (com recompensa ou punições de acordo com ações em vida), repúdio ao conhecimento (de modo que os fiéis não “esbarrem” em informação que contradiga os memes eficazes-mas-falsos), divisão rígida de gêneros (homens são “guerreiros defensores” e “chefes”; mulheres são “parideiras” — para gerar mais fiéis e soldados), entre outros, eficazes para aumentar e controlar a massa de fiéis, mas não necessariamente bons para os hospedeiros.
Nesta situação, faz sentido que os deuses queiram se meter nos assuntos mortais. Claro que isto dá margem para que os deuses se tornem titereiros invisíveis dentro do cenário, moldando as idéias das pessoas e até culturas inteiras para que se conformem a seus propósitos. Embora isto possa parecer indesejável para muitos (ninguém quer que sua liberdade seja apenas ilusória), a conjuntura do “titereiro invisível” pode gerar boas idéias de histórias:
a. Se os deuses não forem totalmente super-poderosos (a ponto de sempre esmagar a oposição com relâmpagos e nukes), descrentes insatisfeitos com o rumo da sociedade podem empreender uma “guerra de informação”, de modo a virar a mesa da opinião pública, enfraquecendo o memeplexo da divindade a ponto de conseguir extingui-la.
b. Suponhamos que as divindades não se utilizem dos memeplexos, mas sejam, na verdade, memeplexos que “ganham vida” porque [insira motivo aqui; pode ser “campo geral de magia que envolve o plano material”], sendo, portanto, reflexos dos desejos e medos das pessoas. Algum grupo de agentes pode querer se utilizar disso, conquistando e convertendo com eficiência militar, de modo a “criar” um novo deus de acordo com seus desígnios. (Matar um deus pode ser motivo de uma aventura épica emocionante, mas criar um deus pode ser uma aventura épica mais interessante ainda.)
c. Conserto de deuses: similar aos dois primeiros, mas sem criar ou extinguir ninguém. Um governo pode estar preocupado com o rumo que uma dada religião está tomando, e os personagens são incluídos em uma enorme operação cujo objetivo é fazer cair em descrença um ou mais memes considerados perigosos no memeplexo de uma divindade, retirando as presas venenosas da serpente.
Se assumimos este modelo como verdadeiro, então deuses = religiões. Costumo assumir que religiões são bastante diferentes dos deuses — divindades são distantes, e, quando os pais estão fora, as crianças fazem bagunça; as religiões se tornam algo que aos poucos desvia da personalidade da divindade, a estrutura eclesiástica cada vez mais colorida por politicagem e mesquinharia tipicamente humanas. Mas se os deuses são os memeplexos que formam as religiões, então as religiões são indistinguíveis das próprias divindades.
Se os meme(plexo)s são parte do “corpo” do deus, todo fiel suficientemente fervoroso possui parte do poder da divindade dentro de si. Nesse caso, todo fiel é um paladino, por assim dizer — além da configuração “guerreiro + conjurador divino fraco” que é o paladino original, podemos ter outras, como “ladrão + conjurador divino”, “bardos divinos” e “feiticeiros divinos” (esse último já existe, o Favored Soul).
Como divindades são um reflexo da crença das pessoas, elas podem ser absolutamente boas ou más — elas o são, afinal, dentro dos parâmetros daquilo que as pessoas consideram bom ou mau. (Claro que, se um ou mais segmentos da sociedade não concordarem, pode haver edição ou extinção de deuses.)
Deuses alienígenas
Não, eles não chegam em disco voador (em Varginha ou qualquer outro lugar), nem são cinzentos, cabeçudos e com olhões. É o padrão que se vê por aí — deuses são criaturas “de fora”, os “extraplanares poderosos”. É possível que ainda se “alimentem de fé”, mas pode não ser o caso. Isto é espinhoso de desenvolver, já que deuses seriam, de fato, inteligências realmente alienígenas e incompreensíveis. Religiões podem não corresponder com exatidão à personalidade do deus — que só vai “sugerir” modificações caso o rumo das coisas não seja útil para seus objetivos. Objetivos, aliás, que os personagens podem pensar entender, sem nem sequer imaginar que toda sua teologia e conhecimento sobre as relações dos deuses são apenas reflexo da camada mais superficial de uma rede infinitamente complexa de manipulação. Clérigos podem receber poder desses seres — ou pensar que recebem, sendo as magias divinas meramente magia arcana cujo domínio é alcançado via auto-sugestão alimentada pela crença na entidade superior. E esses clérigos podem ser bem atuantes, já que a divindade, inteligência alienígena demais, não se mete nas picuinhas humanas, raramente (ou nunca) interferindo de forma direta.
Nesta situação, não tente lubidriar ou lutar contra esses deuses — eles são inumanos demais para serem seguros, e suficientemente inteligentes para sempre levar a melhor.
Memes vs. aliens

Pode ser no mínimo curioso usar ambos modelos simultaneamente. A escala de poder divino seria uma só, mas as origens dos deuses são distintas. Como exercício meramente especulativo (e não-oficial, que fique bem claro), apliquemos isto a Tormenta. Nimb, o deus do caos, pode ser uma divindade alienígena — e faria sentido, já que ele é suficientemente incompreensível. Khalmyr, por outro lado, seria um deus-meme, que foi sendo criado pelas pessoas à medida que a civilização nascia, como uma reação à violência e à desordem do mundo não-civilizado, e que hoje está tão arraigado na mente das pessoas que rivaliza com o deus-caos alienígena. Como Khalmyr tem base nas crenças de ordem e civilização das pessoas, é, até certo ponto, humanamente compreensível, ao passo que Nimb, alienígena, não. Já os lefeu são os deuses alienígenas por excelência, e do tipo “ruim” — expansionista sem muito apreço por humanos. São tão estranhos e mutáveis que um deles — Aharadak, lorde de Zakharov — está considerando usar um memeplexo religioso como arma.
Fechando
Lembre-se: deuses são inteligentes demais para serem usados levianamente ou como NPCs “comuns” que tomaram algumas doses de esteróides de onipotência, só aparecendo para resolver alguma coisa. Eles são algo realmente diferente e, mesmo sendo fodidamente poderosos, não precisam necessariamente roubar os holofotes (que devem ser direcionados aos personagens dos jogadores). Eles não aparecem e resolver ou ferram algo por nada — ações de deuses são mais críveis se fizerem parte de um programa realmente complexo, um plano que pode apenas se aproximar de algo que pareça conclusão após uma campanha inteira. Use a abuse dessas inteligências massivas e incompreensíveis — aventuras interessantes (e com reviravoltas surpreendentes) podem sair daí.
(E tentemos resistir um pouco à “segregação geek“. Em vez de nos concentramos apenas em nossas diferenças — esta ou aquela edição de um jogo, fantasia vs. ficção científica –, vamos focar no ponto comum: é tudo coisa de nerd. Em vez de dividir rigidamente fantasia e sci-fi, usemos o que for bom dentro de ambos os gêneros. É tudo geek e, portanto, geek-friendly.)

Sair da versão mobile