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"Alta armoraria" e a moda na fantasia medieval – parte 2

Na primeira parte deste artigo cobrimos diversos pontos — ilustrações de fantasia, o fenômeno de moda (ou sua ausência) nos medievalismos real e fantástico, e razões que levam um aventureiro a envergar trajes esteticamente elaborados — tanto relacionadas a elementos sociais dentro do mundo de jogo quanto considerações de composição de personagem. Sim — pois, além das classes, talentos e bônus, existe a verdadeira “carne” do personagem, e os trajes falam tanto quanto psicologia e comportamento. Ou melhor: falam em conjunto com personalidade e maneirismos, estão relacionados com a história do personagem, etc.
Mas de nada tudo isso vai adiantar se não for possível produzir as tais peças. E não só produzir, mas deixar acessível para aqueles que não sejam realeza ou aventureiros de enormes fortunas. É esta questão que abordaremos a seguir.
Um pequeno mal entendido
Antes de entrarmos na selva da produção, me vejo obrigado a fazer um adendo. Nem toda a arte no AD&D era sem sal conforme eu afirmei no artigo anterior. De acordo com  o Garrell, que me alertou em uma lista de discussão (não lembro se na area-rpg ou na blogsderpg), o que eu escrevi é válido — em se tratando do basicão do AD&D, coisas como o Player’s Hanbdook e os Greyhawks da vida. Como espaço não é problema em um blogue, reproduzo a mensagem dele:
Existem cenários que fogem completamente do padrão medieval, como Planescape, Dark Sun e mesmo Ravenloft. Os espinhos, lâminas, piercings. tatuagens tão incensados/odiados na 3E já estavam presentes uma década antes em DS e bons 5-6 anos em PS.
Vou até um pouco além e ressalto que a identidade visual “globalizada” da 3E, sem essa filhadaputagem eurocêntrica de predominância caucasiana já estava presente no Dark Sun no começo dos anos 90 com muita força.
Assim, esse padrão realista-minimalista é coisa dos livros básicos, de Greyhawk e Forgotten Realms. O Dragonlace fica um pouco fora disso, com os gnomos, os minotauros e mesmo as tribos humanas selvagens, embora não seja propositalmente revolucionário como o Planescape ou só diferente como o Dark Sun.
Até acho que não é culpa sua.
Essa visão é decorrente do acesso restrito no Brasil dos demais produtos de AD&D, e destaco, dos melhores livros já escritos para a 2E .
Mas na altura do campeonato é muito fácil ter acesso ao ouro do AD&D, então não tem desculpa para não ter lido jóias como Planescape e Dark Sun! 🙂
Encurralado pelas frases finais, não vi opção se não exercer tal facilidade de acesso — começando pelo Planescape. Por Asimov, é fantástico. Sim, porque aquilo tem cara de fantasia, e não de um livro de História medieval com elfos e anões jogados em cima (com um eventual cara de saias expelindo brilhozinhos das mãos). Se você, como eu, perdeu essas pérolas da fantasia em décadas passadas, invista um pouco de tempo e esforço para ter acesso a elas — vale a pena.
Roupas hoje e roupas ontem
Roupas são baratas hoje em dia — salvo os casos em que você paga somas exorbitantes pela marca, que não é sinônimo de valor de design agregado (e este ponto é outra história). E tem razão de ser — a industrialização do processo poupa um bocado te tempo e de gastos com empregados. Processos que consumiriam quantidades absurdas de tempo, como fazer das fibras têxteis fios e deles um tecido, ficam enormemente mais rápidos — e baratos — quando se põe as máquinas para executá-los. Hoje em dia eu posso comprar um metro de brocado por um valor próximo a R$20,00 (sem fios de ouro, claro, mas os fios dourados sintéticos têm o mesmo efeito visual), e é barato para um tecido dessa complexidade — mas só posso porque a máquina que devora os fios e regurgita o brocado pode fazer metros e metros  e metros desse tecido por dia, sem se cansar ou fazer pausas para almoço. Se a coisa fosse feita integralmente na mão…
Mesmo as partes do processo que requerem intervenção pensante são facilitadas pela tecnologia. A costura, por exemplo, conta com máquinas, capazes de pontos firmes e rápidos — o que resulta em costura de ótima qualidade que, se fosse feita artesanalmente, consumiria muitas vezes o tempo necessário para a execução da mesma tarefa. Mesmo as etapas do processo que dependem totalmente do humano, criação e modelagem (definir a peça em partes de duas dimensões, como a planificação de um cubo ou outro sólido, de modo que possam ser cortadas no tecido e posteriormente costuradas juntas), podem ser aceleradas com brinquedos high-tech. O Audaces, por exemplo, programa brasileiro para modelagem, permite traçar os moldes digitalmente (bem mais cômodo do que com esquadros e réguas sobre uma enorme folha de papel) e, com uma rápida série de comandos, gerar todos os tamanhos para aquela peça, do 36 ao 48, sem ter de repetir todo o processo; alguns softwares já possibilitam criar a roupa direto em 3D, com simulação de caimento do tipo de tecido usado e tudo o mais, dispensando bastante do tortuoso processo de primeiro idealizar o croqui em 2D e depois resolver o fator tridimensional na etapa de modelagem.
Eu não mencionei o óbvio — tech tranqueiras para ajudar ou não, uma mesma pessoa não precisa executar todas as etapas do processo. As empresas têm os profissionais que trabalham na criação, e os modelistas, e estações de costura — onde cada costureira, geralmente, não costura a peça inteira, apenas uma parte, a próxima da linha continuando, etc.
No lamaçal da Idade Média da Terra, isso não rolava. Nas corporações de ofício, era usual que um mesmo trabalhador levasse a cabo o processo do início ao fim. Claro, era um item artesanal, de ótima qualidade provavelmente, mas era algo lento e, como conseqüência, o artigo acabava saindo caro para o consumidor final. Esse modo de produção ainda perdura hoje em dia, no nicho dos artigos de luxo — na alta costura, o processo é artesanal e as peças são únicas e bem caras (inclusive, para usar a designação “alta costura” você precisa ser aprovado por uma associação, algo que tem um leve sabor das guildas medievais); o mesmo pode ser dito sobre uma certa marca de carros italianos que são o sonho de consumo de muita gente, custam milhões e também são construídos quase que artesanalmente.
Qual a importância disso? Saber, de modo geral, como as roupas são feitas em uma situação de recursos tecnológicos moderados — conhecendo por alto as etapas do processo, podemos extrapolar possibilidades mais high-tech. Porque estamos falando de fantasia; apesar da skin anacrônica e romântica de um passado remoto, fantasia conta com alta tecnologia — na forma de magia, um fator que, ao entrar na equação e calculado corretamente, nos dará resultados mais parecidos com ficção científica do que com Idade Média na Terra.
Roupa amanhã
Para mim, ao menos, funciona: quando quero viabilizar algo, mais ou menos realisticamente, em um cenário de fantasia, sempre olho para a alta tecnologia (e não raro ficção científica). O motivo é simples — como expus anteriormente, e reforço, cenários de fantasia contam com high tech, a magia. Nem só para fritar gente ela serve e, mesmo que seja originalmente desenvolvida para esse fim, é no mínimo esperado que, com dado tempo, tal tecnologia encontre aplicações civis. Como o teflon, por exemplo, criado para diminuir o atrito de projéteis balísticos com o ar, que hoje impede que seu omelete grude na frigideira.
Além de análogos de fantasia para máquinas de costura, o high-tech fantástico pode predar avanços mais recentes da indústria têxtil. Há todo um mundo de fibras sintéticas capazes de maravilhas. O poliéster é baratíssimo e, embora desconfortável (experimente um lençol em que a porcentagem de poliéster é maior que a de algodão, vai…), ele produz um efeito visual, se o fio for suficientemente fino, similar ao da seda (e sem a fragilidade). Já o modal não tem nada de plástico — uma pasta de celulose é configurada em fios, e dá origem a esse tecido que, até o presente momento, é o mais confortável que se pode ter (é um tecido caro, mas, para peças íntimas, pequenas e que precisam ser confortáveis, é uma maravilha). E temos os tecidos com propriedades bactericidas — não ficam com cheiro ruim; viriam a calhar sob uma armadura –, e os sintéticos com capilaridade, que facilitam a evaporação do suor. Sem falar nas maravilhas da transgenia — uma cabra com genes de aranha pode fabricar leite com as proteínas ultra-resistentes da teia, tal leite “envenenado” pode ser usado na elaboração de fibras de alta resistência.
Sabemos os passos da produção, os meios para otimizá-los, e que tecidos podem ser mais do que aparentam. Com isto em mente, vamos cruzar tais informações com os elementos mais comuns existentes na fantasia.
A fantástica fábrica de roupas
Primeiramente, uma delimitação — tentar manter o aspecto de medievalismo. Bem sabemos que “fantasia” não é sinônimo de  “medieval” (ainda bem!), mas muita gente insiste em assim pensar e tem uma necessidade de que sua fantasia seja medieval (apesar de, em geral, as economias de tais mundos mais parecerem capitalistas do que propriamente feudais). Assim sendo, manteremos o modelo pouco eficiente das corporações de ofício — artesãos altamente capazes produzindo dentro de uma panelinha em detrimento de operários super-especializados em uma linha de montagem.
Esse modelo arcaico encarece o processo e ferra com tudo, de modo que precisaremos combater em outras frentes se quisermos melhorar a produção e reduzir custos. As abordagens que vêm à mente são baratear matéria-prima e arrumar para os artesãos ferramentas melhores, de modo que eles possam produzir mais rapidamente.
É magia, é magia!
Quando falamos em magia, a primeira coisa que imaginamos são os feitiços. E, de modo geral, é uma idéia que vai tão fácil quanto veio — magia é cara. Claro, pode-se usar uma magia de compor (5o. círculo) e ter uma veste complexíssima em um estalar de dedos — mas por um custo ainda mais probitivo do que se ela tivesse sido feita através dos meios mais artesanais e pouco eficientes que se possa imaginar. Magia para substituir integralmente o processo de produção, portanto, não é prática.
Mas e se usarmos menos magia, magias de menor magnitude apenas para dar um “empurrãozinho” em uma ou mais etapas do processo produtivo? Mais plausível. Um arcano de primeiro nível, por exemplo, pode pôr um servo invisível para cortar moldes/costurar/pregar aviamentos/bordar/etc. ininterruptamente por uma hora inteira, em um ritmo constante, por se tratar de um autômato (ainda que invisível e intangível). Uma mais singela, de nível 0, consertar, pode aposentar a agulha e a linha — pegue as partes cortadas da roupa, alfinete-as juntas nos locais desejados e faça o consertar (que essencialmente reconecta partes rompidas na matéria) unir as extremidades dos fios cortados em uma costura sem linha, muito semelhante à costura a laser que se usa hoje em dia para peças íntimas. (Além de mais prático, a peça resultante, pela ausência de costuras, é mais confortável.)
Este tipo de auxílio arcano pode ser aplicado (e até mais eficientemente) na etapa anterior à elaboração da peça, a tecelagem. Se o seu cenário é progressista o suficiente para contar com um tear de Jacquard (e fique com medo, porque, com um desses, computadores não estão muito longe), qualquer instância mágica relativamente simples (servo invisível, elemental aprisionado…) já pode transformá-lo em um dínamo de produtividade de tecidos complexos — o brocado a R$20,00/metro que citei no início do artigo faz-se magicamente possível. Mesmo teares mais rudimentares se tornam mais práticos com o uso de magismos simples — operar um tear é um processo repetitivo, mais cansativo do que propriamente complexo.
Como vêem, não é questão de magia pura — o “estala dedos, é magia, está pronto”. Além de caro (dentro do mundo de jogo), seria deselegante. E, chafurdando um pouco mais dentro do paradigma de magia D&Dêico, as soluções podem se tornar mais simples. Todo feitiço é uma receita, e o efeito é bem específico. Um mago suficientemente astuto pode fazer adulterações no código-fonte do servo invisível, criando versões (provavelmente de nível 0) para tarefas super-específicas — em vez de “realiza tarefas mundanas”, “costura” ou “prega botões”. Esse mago poderia fazer uma boa grana vendendo pergaminhos ou ensinando essas magias para os artesãos. Ou, em uma cidade suficientemente grande, diversos magos poderiam competir por essa clientela de artesãos — podendo advir daí  um mercado interessante.
Mas em D&D (e em grande parte dos cenários de fantasia) artesãos não sabem mágica, logo, não têm acesso a feitiços assim! Isso sempre me pareceu uma estranheza — é como se soubéssemos da existência da eletricidade e de formas para controlá-la e aplicá-la, mas, por causa de algum tabu obscuro, só a usássemos para fins bélicos, mesmo em períodos prolongados de paz e prosperidade. Uma das abordagens mais bacanas que já vi em relação ao assunto é no cenário Eberron, em que o high magic permeia toda a sociedade — feitiços poderosíssimos ainda são coisa de heróis, mas artesãos, comerciantes e outros profissionais têm acesso a instâncias mais simples desta tecnologia. Existe, inclusive, a classe de PdM magewright, semelhante ao adepto, mas com um foco mais prático (e faz mais sentido ter magia presente nos indivíduos que produzem do que, digamos, em algo supérfluo como o religioso da vila) . Eles não são arcanos propriamente ditos, apenas profissionais especializados que conhecem um truque ou dois para auxiliá-los em seu ofício — parecido com o que ocorre nos romances ambientados em Bas-Lag do China Miéville (em The Scar, a lingüista Bellis Coldwine faz uso de um “language trance”, que facilita a compreensão e aprendizado de idiomas).
Em um cenário de fantasia cuja magia não atua sob padrões D&Dêicos, esta possui outras formas de permear a sociedade que não feitiços de nível 0-1. Nos casos em que ela é mais customizável, a aplicação pode ser ainda mais fluida — especialmente em modelos de magia semelhante a psiquismo, em que a fronteira entre habilidades mundanas/naturais e mágicas/sobrenaturais é difusa, quando não inexistente. Um ferreiro que usa psicocinese sutil para regular com precisão a temperatura de sua forja, ou a costureira que aplica precisão e velocidade adicionais nos pontos de sua agulha via auto-sugestão — pode tanto ser magia quanto a extensão natural de suas habilidades mundanas.
Máquinas maravilhosas
Magia simples, aplicada de modo a otimizar processos mundanos, é perfeitamente factível (e não entra na coisa de substituir estradas por portais de teleporte, que seriam caros demais). E se os artesãos não são versados em conjuração, que façam como nós: usem máquinas. Não estou falando em aparatos a vapor e toda aquela coisa de “oposição entre magia e tecnologia” — magia é tecnologia, e essa “superciência” pode perfeitamente ser a base das máquinas de nossos artesãos.
Itens mágicos — nesse caso mais práticos se forem permanentes ou recarregáveis — são a aplicação mais óbvia. Nos atendo aos feitiços simples que discutimos anteriormente, é apenas questão de fundi-los aos tais artefatos. E como estamos falando de fantasia, é legal que essas máquinas sejam bem exóticas. Um item de servo invisível permanente poderia se parecer com uma aranha conectada a diversos carretéis, que dispensa cortar moldes no tecido — de forma semelhante ao tricô, ela pode confeccionar peças inteiras (e, o melhor, sem cortes, costuras e desperdício de retalhos). Máquinas não vão “destruir” o “feel” “tr00” da sua fantasia — se uma máquina de costura não se parece com uma máquina de costura, mas com um inseto rebuscado cheio de gemas e runas em sua superfície, a estética de fantasia é mantida e tudo fica bem.
E já que falamos em constructos, alguém mais notou que mesmo o mais greyhawkesco D&D conta com inteligência artificial? São os tais dos golens e variações. Eles são caros, mas também pudera — eles necessitam de sensores (que permitem enxergar até mesmo no escuro!), grande força física, e são programados com complexas rotinas de combate e de reação (sem falar em imunidades e sopros de gás venenoso). Aplicações menos complexas — para funções altamente específicas e repetitivas, sem programas de reação ou sensores de imagem — são, portanto, possíveis. E ainda que sejam caros, apesar de sua simplicidade em comparação com golens combativos, são um investimento que muito provavelmente se pagará sem muitos problemas quando a aceleração da produção der seu retorno. Familiares e mortos-vivos com algum treinamento especial também fazem as vezes de  máquinas.
Não nos esqueçamos da fauna fantástica. Há cenários por aí que sofrem da “síndrome de Pokémon” — o mundo conta com uma infinidade de espécies exóticas, mas elas só são vistas como participantes de brigas. Alguns aceitam animais de carga exóticos, mas a coisa pára por aí. O que é um desperdício, visto que há tantos animais (por mais monstruosos que sejam na aparência) cujas capacidades incomuns os fazem bons candidatos para a domesticação e treinamento para desempenhar funções. De forma semelhante a um herbívoro puxador de arado, pode-se utilizar a energia de animais pouco usuais para executar trabalho — mesmo aqueles que não consideramos tão “animais” assim, como um elemental do fogo (que são animais ao menos na inteligência).
O Eberron já usa os “bichos” como força motriz para seus navios voadores, mas não precisamos ser tão extravagantes — um elemental pode fornecer o calor para a forja de um armeiro. E um pouco mais — bem domado/treinado/dominado, o animal pode auxiliar o ferreiro na incessante bateção e martelação típica do ofício, visto que ele conta com um ataque de pancada (é só direcioná-lo direitinho onde bater). Com isto, o armeiro poderia delegar tarefas mais simples para o elemental — como modelar partes maiores sob padrões pré-determinados — e dispor de mais tempo para as etapas que exijam mais habilidade fina, como acabamento, ornamentação e elaboração de novos designs (partes simples dos quais são convertidos em instruções para o tal elemental).
Matéria-prima
Nem só de adamantino, mithral e coisas assim se vive. Como nos parágrafos anteriores, há toda uma fauna e flora fantásticas de onde se servir. Deixando um pouco de lado as óbvias peles/couros de monstro, há uma potencial fonte de fibras têxteis de potencial qualidade em uma características bastante comum: insetos grandes demais para os padrões da Física da Terra. Já que existem, vamos ordenhá-los. O bicho-da-seda é uma coisinha pequena, cujo casulo produz uma boa quantidade de fio dessa valiosa fibra têxtil — e sua alimentação é simples, folhas. Agora imaginem um casulo de bicho-da-seda do tamanho de um cachorro, por exemplo. E as aranhas grandonas? Aqueles fios de teia são um material muito resistente, e, sendo o aracnídeo suficientemente grande, teremos um fio mais espesso (já que, na natureza, a teia teria de suportar seu peso) — para aventureiros, que vivem se ralando por aí, uma calça de 70% algodão 30% fio de teia apresentaria uma resistência muitíssimo maior que se fosse 100% algodão, e seria um item bastante desejável.
Eis uma atividade que poderia remover um pouco nossos arcanos de suas duas obsessões mais comuns (estudar e arquitetar planos malignos de dominação) — criação de bestas sobrenaturais. E, já que há habilidade para isso, engenharia genética. É realmente impressionante ficar fundindo quimeras para estribuchar gente, não duvido, mas “engenheirar” uma aranha grandona de temperamento dócil como o de uma vaca que produza fios de seda obscenamente resistentes e vendê-las (ou alugá-las) para fabricantes de têxteis pode trazer compensações muito mais palpáveis.
O mesmo vale para fibras vegetais. Manipular uma certa espécie de planta de modo a se adaptar bem às condições climáticas locais pode reduzir drasticamente os custos se os fios dela provenientes eram antes importados de locais distantes. Magismos bem aplicados sobre algumas amostras de sementes podem originar plantas mais fortes, resistentes a pragas e que produzam mais — e o processo só precisaria, em teoria, ser feito uma vez, já que é apenas questão de reservar sementes provindas das novos vegetais para replantio. (Sambúrdia provavelmente tem — ou ao menos deveria ter — uma guilda de “magos agrícolas” que se ocupam disso.) E geomantes também podem arregaçar as mangas, produzindo metais e ligas de propriedades exóticas — mais resistente, mais leve, maior maleabilidade a partir de uma certa temperatura…; alquimistas (os de verdade, não aqueles que fazem desenhinhos no chão…) podem sintetizar metais e gemas com a aparência de seus correlatos preciosos, e ganhar um bom ouro com isso (bem mais fácil que tentar obtê-lo através da transmutação do chumbo).
E não precisamos ficar apenas com fibras de maior resistência. É só folhear seu bestiário/livro de cenário favorito para achar fontes possíveis para fibras que produzam fios com propriedades elásticas, que facilitem a transpiração (ou que retenham líquido, para elfos-d0-mar e outros consumidores semelhantes), que impeçam a proliferação de bactérias (nada mais de ficar todo fedorento sob a garbosa armadura brilhante), ou até efeitos estéticos menos usuais, como fosforescência, mudança de cor (seja por causa da luz, temperatura, ou até gatilhos mais incomuns, como presença de magia ou estado de humor), brilho metálico (dispensa aqueles caríssimos fios de ouro)…
Salve-se quem puder!
Tudo isso, ainda que focado na produção de têxteis/costura/alfaiataria, também pode ser aplicado a quaisquer outros nichos produtivos do cenário.
Não preciso dizer que há o potencial de ferrar com a economia do cenário, não é mesmo? Os agentes de produção tenderão a crescer — se ficamos estritamente no modelo das corporações de ofício, estas vão empregar mais aprendizes (que parecem ser o conceito medieval de estagiário — trabalham nas piores partes e ganham pouco, ou nada). No momento que ficar claro que a cidade conta com comodidades materiais de boa qualidade a preços módicos, e com as guildas cada vez contratando mais, o servo de um feudo chulé (praticamente um escravo, vivendo em condições ruins, preso à terra e ainda tendo que ceder sua esposa na noite de núpcias) provavelmente vai querer fazer parte da festa — êxodo rural à vista. Os magos e as guildas, que enriqueceram prodigiosamente, contarão, em certo momento, com mais recursos que o rei — e podem não querer mais pagar tributos abusivos à coroa e fomentar uma revolução para ver cabeças rolando, instaurando, a seguir, um modelo de governo que atenda melhor às suas necessidades. As guildas hipertrofiam, nasce a indústria, e o capitalismo, com tudo de ruim e de bom nele, está batendo na porta. (E estoura o culto a um novo deus maior, o Mercado.)
Isto se não ocorrer que apenas um reino no cenário seja esperto o bastante para aplicar “magia tecnológica” em sua produção. Nesse caso, ele provavelmente dominaria seus vizinhos e empreenderia uma expansão colonialista para ampliar seu mercado (ou a igreja do Mercado) — aventureiros colonizadores, alguém?
Ou você pode simplesmente ignorar tudo isso e assumir que, mesmo com produção otimizada, todo mundo vai continuar feliz em seu lugar. (Se bem que não precisa — muitos apoiam ferrenhamente a familiaridade em cenários, logo, nada impede um cenário com economia e política mais parecidas com as que experimentamos em nossas vidas, devidamente revestidas com uma estética de antiguidade e um anacronismo ou dois; para ser eleito membro do Parlamento de Magos, deve-se, obviamente, ser mago — em vez de proprietário de terras ou coisa assim –, mas a eleição é democrática — mas que pode ser indireta.)
Concluindo
Se você foi suficientemente perseverante e me acompanhou até aqui, você já deve ter intuindo o que escreverei a seguir. No momento em que aplicamos tecnologia (ou magia, se você prefere o termo) às diversas etapas da produção, produz-se mais e melhor. Barateando recursos e otimizando a mão-de-obra, o produto final passa a custar menos. Com o encolhimento da escassez material, outros tipos de valores são interessantes de se agregar ao produto — entra o design, e as roupas ficam mais bonitas — sem deixarem de ser acessíveis. Como vimos na primeira parte do artigo, aventureiros possuem mais de um motivo para querer se vestir bem. Agora com esta segunda, eles podem comprar tais trajes estilosos — sem ir à falência por conta disso isso.

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