Se você não mora em uma caverna, já deve ter visto as ilustrações do Tio Reinoldo (também conhecido não-oficialmente como Wayne Reynolds) em diversos títulos de RPG de fantasia — mais notavelmente Eberron e Pathfinder. São marcantes certas características nas quais ele não está sozinho — são visuais elaborados, armaduras cheias de detalhes, armas ricas em ornamentos.
Mas não seria tudo detalhado e ornamentado demais? Afinal, se uma armadura como a dos cavaleiros da Ordem Teutônica — na ilustração cima, à esquerda — já é uma peça artesanal, trabalhosa e custosa de se executar, o que dizer da armadura da paladina icônica do Pathfinder (lado direito)? E as armaduras cheias de spikes, então, capazes de matar o usuário se este fizer algum movimento muito brusco? Espadas retorcidas (impossíveis de forjar, desbalanceadas para empunhar), múltiplas sobreposições de roupas — estas com estampado ou padronagem do tecido complexíssima). Estariam nossos valorosos aventureiros pondo em xeque a praticidade em nome de uma estética ostentatória e sem sentido? Uma degeneração dos bons e velhos mundos de fantasia em direção a uma ditadura fútil da alta costura e da “alta armoraria”? Não são poucos os que pensam assim.
Em certa discussão sobre o assunto, atentei que o guarda-roupas dos aventureiros deveria, em termos de realismo, ser a menor das preocupações — afinal, se temos répteis enormes cuspindo raios, e bolas de fogo voando em todas as direções, o fato de a ombreira da armadura parecer pesada, espinhosa ou ornamentada demais é irrelevante. O Marlon do Inominattus escreveu um ótimo artigo com explicações sobre por que os répteis fogosos fazem sentido; se você se aventurar a continuar lendo este, verá como a “alta armoraria” do Tio Reinoldo, longe de ser uma “ostentação sem sentido” também faz todo o sentido — não só como ilustração, mas também dentro do mundo de jogo.
Uma questão de estilo
Não há relação com a realidade dentro do mundo de jogo aqui, mas, sim, com a estética do material. As ilustrações são assim pela mesma razão que temos répteis com seios, gente com orelha de gato e o cacete a quatro — são legais (ainda que continue detestando répteis com seios, vale ressaltar). Dê uma olhada na ilustração que abre a matéria novamente — qual deles parece mais o tipo aventureiro entrépido, audaz e heróico? Qual deles, no momento em que você bate o olho, desperta aquela vontade de “quero jogar com esse personagem”?
Essa é uma das características que separam as ilustrações de um D&D 3a. edição das de um AD&D. Enquanto as do título mais antigo, ultra-realistas (Elmore & cia.), com aventureiros que parecem saídos de um livro de História, a princípio “convencem” mais (afinal, são fáceis de relacionar com um período histórico real e com pessoas reais), as mais atuais são muito melhores no quesito “quero jogar com isso” pois, por seus exageros, são mais dramáticas, evocativas. E isto é um ponto a favor desta estética mais recente que alguns chamam de dungeonpunk — o cenário pode ser medieval, mas lembremo-nos de que se trata de fantasia, e não de um cenário histórico.
Sem falar no tempo. O Elmore e seus colegas ilustravam lá em meados da década de 1980. Muita coisa mudou de lá para cá. Compare um filme de ação daquela época com algum em cartaz no cinema essa semana. O mesmo vale para os quadrinhos. A ação se tornou muito mais frenética — ao passo que uma cena de ação de um livro de RPG mais antigo parece uma calmaria se comparada com uma dos livros de hoje.
Questões estilísticas à parte, sigamos para os trajes em si, assumindo que o que é retratado nas ilustrações é exatamente o que se vê no mundo de jogo. Antes, um pouquinho de história.
A moda medieval
Moda na Idade Média não existe, ponto. Havia — assim como em períodos anteriores na história — indumentária, que não é a mesma coisa. Moda pressupõe algo individual, e a valorização do indivíduo, necessária para tal, só foi ocorrer no Renascimento. E antes? Os trajes eram próprios da classe social, e não do indivíduo. Se você era um rei, usava trajes de rei, ao passo que o religioso usava roupas próprias de religioso e, caso fosse camponês, havia os trapos apropriados. Tudo bem estratificado, rígido, cada um no seu quadrado. Claro que haviam variações individuais, mas estas estavam fechadas dentro do universo de uma dada classe; o purê jamais tocava as ervilhas.
Já no Renascimento a coisa começa a mudar. Você não se veste de modo a mostrar sua classe social — você tenta maximizar-se visualmente enquanto indivíduo. O que você veste não vai apenas traduzir o degrau em que se está na pirâmide social — passa-se uma mensagem visual. A Rainha Elizabete, a tal da “rainha virgem”, se utilizava do elemento visual para se afirmar como, bem, rainha virgem — a maquiagem, o tipo de roupa, tudo servia para reforçar a mensagem. Outra que se utilizou da moda para se afirmar foi a Maria Antonieta — e acabou conseguindo gozar de popularidade dentro de uma corte que, quando lá chegou, estava disposta a devorá-la viva. Ambas não usavam seus trajes apenas como rainhas — buscavam destaque se si próprias enquanto rainhas.
Além do caráter individual, outro que define a moda propriamente dita é o de novidade. Antes do advento da moda, um mesmo tipo de traje era capaz de permanecer praticamente inalterado por séculos. Quando me ponho a pesquisar moldes no meu The Evolution of Fashion: Pattern and Cut from 1066 to 1930, até o final do século XVIII a tarefa é meio sacal — volta e meia me deparo com as palavras “similar ao estilo anterior” — e essa referência vai se repetindo, e só encontro o molde de que necessitava uns duzentos anos atrás. Depois, o ritmo vai acelerando — apenas 100 anos, depois 50, apenas 10. Nos dias de hoje, temos uma nova coleção a cada 6 meses — e com o positivo “agravante” de que, após a década de 1970, com os hippies e punks, uma grande centralização estilística que existia deixou de ser, e podemos ver a enorme variedade dos dias de hoje.
A “moda” na fantasia medieval
Aí a coisa é um pouco mais embaixo, pois não se trata da Idade Média na Terra, mas em uma época que se parece com a Idade Média (em termos de tecnologia e militaria, majoritariamente) em mundos que certamente não são a Terra. Até o presente momento, não li cenário algum que especificasse isso, então não se pode saber ao certo se há ou não moda nos cenários por aí. Eu arriscaria dizer que em alguns há, sim — até porque, ultimamente, alguns cenários têm “avançado” um pouco na linha do tempo, sendo, em realidade, mais renascentistas que medievais, ainda que mantenham o “medieval” em sua nomenclatura — eu colocaria Eberron e Tormenta nesta categoria.
Um ingrediente que pode ser posto nesta conjuntura, contudo, é o mesmo usado para justificar as répteis com seios e similares — o da familiaridade. Mesmo aqueles que execram o fenômeno da moda estão acostumados com um mundo em que ela existe, e um mundo em que ela é rápida. E um mundo pós década de 1970, em que há grande variedade e liberdade de estilo. Isto acaba “vazando” para dentro dos cenários — de modo que dois guerreiros de mesma classe social em um cenário de fantasia podem apresentar vestuário radicalmente diferente.
Aventureiros e suas roupas
Digamos que o cenário seja, de fato, estritamente feudal (ainda que a maioria não seja, também por questões de familiaridade). Os aventureiros, ainda assim, não se encontram tão presos à estrutura social quanto a massa de NPCs que povoam o mundo de jogo. Para a maioria destes, não há mobilidade social — ou mesmo espacial, já que um camponês pode passar a vida inteira sem arredar o pé de sua fazendinha. Com os aventureiros, é diferente. Eles viajam o mundo, acumulam fortuna — e não raro terminam seus dias em algum castelo com um título de nobreza comprado/adquirido. E eles são muito mais indivíduos que a massa de NPCs — seja por seu lugar (ou falta dele) no mundo, seja pelo fato de eles serem os protagonistas da estória.
Mesmo sem um fenômeno de moda no mundo do cenário, pode-se dizer que há um entre os aventureiros — nem tanto pelo caráter de novidade, mas pelo de individualidade. Não atrelado a uma classe social, as roupas do aventureiro vão expressar o indivíduo. A roupa é um cartão de visita — sem sequer trocar uma palavra com alguém, pode-se intuir diversas coisas sobre uma pessoa apenas pelo que ela veste. Desleixado, asseado, tímido, extrovertido… — roupas falam, às vezes mais do que gostariámos.
Segundo Flügel (“A Psicologia das Roupas”), a roupa possui três propósitos — pudor, proteção contra o frio e enfeite. Ao contrário do que muitos podem pensar, foi esta última característica a primeira a originar o uso de trajes. Entre os povos selvagens, proteção contra o frio é irrelevante (na maioria dos casos, em ambientes tropicais), e o pudor com que estamos acostumados não vigora — pelo contrário, adornos corporais surgiram na linha da cintura, para atrair a atenção para os genitais. E como as roupas “falam”, o enfeite pode ser orquestrado para passar a exata mensagem que o usuário deseja transmitir. Vejamos alguns propósitos do enfeite.
Elemento sexual. Este já abordamos no parágrafo anterior, é a atração do olhar para certas partes do corpo com objetivo sensual. Conforme a cultura se torna mais civilizada (nos moldes daquilo que entendemos por civilização), entramos no campo do fetichismo — o espartilho é um ótimo exemplo. Este elemento sexual é bem conhecido, já que, ao representar garotas, os ilustradores usam e abusam dele.
Troféus. Sabe aquele caçador que abate o tigre-dentes-de-sabre e passa a usar a pele sobre os ombros? Isto é o troféu. Fast forward no tempo, pode-se dizer, de forma mais sutil, que o terno feminino possui função semelhante — associado a riqueza e alta posição social, o terno é um símbolo de poder masculino na sociedade ocidental capialista machista, que as mulheres, ao ganhar voz e direitos, tomaram para si, como se fosse escalpo. Seu aventureiro que usa uma armadura de escamas de dragão provavelmente o faz por causa dos bônus, mas, dentro do mundo de jogo, a tal armadura passa uma mensagem para os observadores — “Matei um dragão, cuidado comigo.”
Terrorismo. Possui relação com o troféu, pois se origina de partes de inimigos abatidos feitas enfeite, que inspiram medo no observador. Outro exemplo são pinturas de guerra corporais. Quando a civilização avança, tais símbolos permanecem, ainda que modificados — o símbolo de caveira com ossos cruzados da SS nazista, ou o uniforme dos hussardos, cujos adornos horizontais podem ser tentativas de imitar costelas.
Sinal de posição, ocupação, etc. A púrpura e a coroa real são um ótimo exemplo. Certas cores são associadas a regimentos militares, ordens religiosas… É possível um significado mais amplo — a cor vermelha como indicativo de “revolução”. Certos casacos possuem corte que remete a uniformes militares, e passam a mensagem de acordo.
Sinal de localidade ou nacionalidade. Certos trajes são associados a culturas específicas. Quando vamos encher a cara em uma Oktoberfest, sempre nos depararemos com bandas de sujeitos vestindo bermudas e suspensórios bem característicos — e não podemos deixar de pensar “alemães”. Para um aventureiro, isso pode ser usado tanto para indicar uma nacionalidade em especial quanto a falta dela — um errante pode ostentar uma composição de peças e acessórios de diversos lugares, indicando viagens por todas as porções do mapa conhecido.
Ostentação de riqueza. Tecidos finos, ouro, jóias, acabamento esmerado — se você os enverga, é porque pode comprar (ou roubar, vai saber, mas o que importa é que você possui acesso à riqueza).
Uso de artigos essenciais. Há coisas que você precisa carregar consigo. Há quem se irrite com as ilustrações do Pathfinder, em que os personagens parecem árvores de Natal, tanta é a tranqueira pendurada. Agora pegue a ficha de um personagem com que você costuma jogar bastante e dê uma olhada na seção pertences/equipamento. Toda a tranqueira está lá — as tochas, as adagas de arremesso, a corda de cânhamo, a lamparina, 20 flechas, as armas “suplementares”, que você usa menos (aquela maça que seu guerreiro-de-espada se vê obrigado a brandir quando surgem esqueletos). Você carrega isso pra cima e pra baixo. Uma mochila de carga ou buraco portátil ajudam, mas são caros, e certos itens precisam estar à mão, visto que uma masmorra não é exatamente uma calmaria. Se é obrigado a carregar tudo isso no corpo, que mal tem dispor os objetos de modo a resultar em composição visual interessante?
Extensão do próprio físico. Saias ou mantos emprestam um movimento único em consonância com o corpo do usuário. Imagine uma dançarina do ventre/sete véus, e os movimentos característicos dos tecidos e bijouterias; agora imagine sem — pode continuar sensual, mas o efeito da dança não é o mesmo. Certos trajes podem aumentar ou diminuir nosso tamanho, criando uma ilusão desejável ou indesejável de dimensão. Quando se enverga roupas, ou certos implementos — patins, esquis, luvas de boxe… — eles são percebidos (até mesmo pelo usuário) como parte integrante de seu corpo*. Estas extensões podem ser exploradas por seu efeito. Tal função extensiva é mais eficaz, todavia, se estiver mais em harmonia com o comportamento do que com o controle direto, visto que tal efeito ilusório pode ser dito como uma extensão da personalidade.
*Acontece até mesmo com carros — é só notar como as pessoas de tranformam em bichos quanto têm o carro batido.
Se você se interessou pela idéia e costuma desenhar seus personagens — ou instrui alguém que o faça –, vejamos alguns aspectos da forma dos enfeites. Além dos corporais — cicatrização, tatuagem, pintura, mutilação e deformação plástica –, temos os externos, que dizem respeito a roupas e acessórios em si.
Vertical. Tende a aumentar a altura aparente. Você conhece o procedimento — linhas verticais alongam e afinal o corpo, cabelos lisos, compridos, tenderão a afinar o rosto e alongar o pescoço;
Dimensional. É semelhante ao vertical (que pode ser dito como uma categoria do dimensional). Lida com largura, comprimento e, importante, volume aparente. Folgas, ajustes e enchimentos têm o poder de emprestar ao corpo um aspecto que não possui, ou acentuar aspectos desejáveis;
Circular. Em forma de anel. Ao passo que o vertical alonga, o circular chama atenção para os contornos curvos do corpo, acentuando-os;
Local. Realça uma determinada parte do corpo, atraindo o olhar para ela;
Sartória. Embeleza trajes já existentes. Utiliza-se dos princípios anteriores, na forma de detalhes (local), certas estampas…
Cobrimos os motivos pelos quais é desejável para um aventureiro ostentar um visual elaborado. Mas você há de me dizer “e de que isso tudo adianta se não há como produzir as tais roupas e armaduras cheias de detalhes complexos?” E você estará corretíssimo. Se uma armadura como a da paladina na abertura da matéria for demasiado cara ou demorada para produzir, praticamente ninguém vai poder usar. E, se tomarmos como verdade o que nos dizem as ilustrações recentes, praticamente todo aventureiro tem acesso a vestimentas dessa qualidade. Licença poética? Não necessariamente.
É na segunda parte deste artigo que abordarei como isso é perfeitamente possível. Será que é realmente possível uma facilitação na produção e conseqüente democratização do design em uma sociedade medieval fantástica, baixando custo e tempo de produção, possibilitando o acesso? Se sim, como?