“Por Morgenstern, pela Moral e pela Pátria” — assim murmurou cada um dos guerreiros ao ser ungido com o óleo sagrado. A fragrância pungente que se dispersava dos incensários pontuou a cerimônia, e agora, imbuídos com a bênção do Pai, os combatentes estavam prontos para empreender sua missão sagrada. Entrava em execução a operação tão esperada.
Cúpula da Onisciência, dias atrás. Um dos profetas acordava alarmado de seu transe beatífico, com a revelação da atividade subversiva em progresso no subterrâneo (não registrado nas plantas do arquivo ministerial, mas isto seria corrigido) de uma construção no distrito metalúrgico da área norte de Warsteiner. Informação obtida a muito custo – covil oculto por taumaturgia negra, uma aberração das forças divinas. Mas a tão-chamada “ciência”, feita por mãos seculares, era falha; uma pequena seção dos fios etercondutores que gradeavam o local estava danificada pela ferrugem. Com a brecha, o escudo de enganação que escondia o grupo de infiéis não mais era impérvio aos olhos de Morgenstern, que tudo vê.
Os revoltosos eram como ratos. Sujos, amorais, esquivos. Só obtinham sucesso transitando na escuridão, atacando de surpresa e, covardes como eram, recuando quando confrontados com força legítima. Explosivos, estilhaços, veneno, mentira, ciladas – destes meios se valiam para perturbar a paz e os bons valores que a Igreja de Mogenstern assegurava com o Socialismo Teocrático. Cada pessoa desempenhava sua tarefa pelo bem do todo, todos eram iguais e recompensados igualmente. Não os rebeldes da chamada Guerrilha Imperial – egoístas e excêntricos, queriam o retorno de um regime sob o qual o indivíduo tinha precedência sobre o coletivo, regime de decadência moral e vazio espiritual que envenenava a sociedade com perversão.
Mas o ninho dos ratos fora localizado. Sem seu cobertor de covardia, expostos, agora seriam esmagados pelo Punho de Deus. Tudo seria limpo. Por Morgenstern, pela Moral e pela Pátria.
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Em um gradiente de círculos concêntricos, a alvura marmórea da praça central de Warsteiner, coroada pela Basílica do Ministério da Onipotência, degenerava para um cinza fuliginoso — era como se a distância do prédio sagrado fosse inversamente proporcional à pureza ambiente. Armaduras reluzentes, camufladas por capas e um manto de nuvens que escondia a lua, cruzaram as estreitas e fedorentas ruelas da periferia industrial. Seus honestos habitantes, no sono profundo que precede um novo dia de trabalho árduo, estavam completamente alheios à operação militar que se desenrolava. Era esse o estilo da Polícia da Moral – discrição e disciplina.
Em meio à dissonância de tijolos expostos, sujeira e mosaicos de infiltração, os milicianos localizaram seu alvo, uma construção modesta, de três andares. O estuque da fachada que imitava colunas em estilo dominiano, gasto e irregular, lançava formas sombrias que dançavam à música das chamas da iluminação artificial. Sussurros curtos davam forma aos procedimentos por vir. Em prontidão, os homens já tinham empunhados seus Fogos Divinos, artefatos sagrados que canalizavam a força invisível de Morgenstern. Apesar de a maça de batalha ser sua arma mais característica, sempre exibida orgulhosamente pendendo do cinto, a ingenuidade não tinha lugar entre estes soldados – é mais eficaz, afinal, neutralizar o inimigo à distância. Não deveriam, também, derramar sangue (os dogmas de pureza) ou tirar vidas desnecessariamente (não por compaixão, mas porque cadáveres seriam frustrantemente lacônicos no interrogatório que seguiria). Esta última diretriz por vezes tornava-se difícil de cumprir quando golpes de maça encontravam cabeças no calor da batalha.
Com um sinal do capitão do regimento, o clérigo aplicou sob as narinas um óleo aromático e, com olhos fechados e uma rápida e silenciosa oração, tornou-se veículo da onisciência de Morgenstern. Um espasmo percorreu seu corpo com o choque do poder divino; precisou ser sustentado pelo acólito assistente para não encontrar o chão. Arregalou os olhos, completamente brancos, balbuciou algumas palavras no idioma arcaico. “Perímetro seguro, sem armadilhas”, disse o acólito, treinado para traduzir as revelações em informação de uso imediato. Acenos percorreram o pelotão como uma onda. Uma bota encontrou a porta, e esta não resistiu.
O interlúdio entre a entrada e a chacina que seguiu foi rápido. Portas supérfluas não foram derrubadas – guiando os passos do clérigo cambaleante, o acólito fazia inteligível a voz da sabedoria total. Foram direto ao destino. Desceram lances de escada. Evitaram com facilidade a armadilha no segundo subsolo – o sacerdote vislumbrara tudo, o sistema de molas e roldanas que unia cabos ao esqueleto de uma cama hospitalar feita leito mortal com pontas de metal retorcidas e enferrujadas, bem como a seção em falso do piso, que ativaria a cilada. Terceiro subsolo, diante de uma porta camuflada na parede de madeira. Comunicou o acólito: “Atrás desta porta; não mais que meia dúzia deles; desarmados ou com armamento pífio.” Estava ali, afinal, o foco de origem daquele jornaleco subversivo que perturbava a ordem fazia seis meses. O som da máquina tipográfica era abafado sem muito sucesso com a gravação de uma sonata de cordas. Invadiram. Morreram.
Houve pouco tempo para surpresa. Surpresa por não haver ninguém no aposento. Horror estampado no rosto do acólito, que conseguiu apenas murmurar “ciência negra” ao ver, próximo à imprensa desprovida de papel, o fonógrafo no qual girava o cilindro de cera, um emaranhado de fios ligando o aparato a uma bateria de schwarzstein e a uma caixa da qual vertia a música, todas as faces de madeira, à exceção da que os encarava – uma grade metálica que deixava ver as vísceras férreas em seu interior. Não apenas o ar vibrava com as ondas sonoras, mas também o éter com a melodia eletromagnética que emanava do engenho taumatúrgico. O acorde final fez átomos ressoarem selvagemente; as moléculas que compunham os valorosos soldados ruíram. As forças que lhes davam coesão cederam à tensão, e, como milhões de eslásticos se rompendo, açoitaram o ambiente com energia e calor. Os corpos se desfizeram, tudo foi destruído sem deixar rastros.
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Perto dali, uma cidade sob a cidade. Túneis e galerias se interligavam em uma rede que remetia à anatomia de algum monstro titânico saído de um pesadelo. No coração, Adel von Archibald, der Klein Kaiser, esparramado languidamente em um grande sofá. O luxuoso brocado era danificado por manchas e purulências de estopa que escapavam por rasgos no tecido. Sua vistosa casaca de veludo negro com gola e acabamentos de pele de arminho estava puída e remendada em diversos pontos. As calças (apesar da ascendência aristocrática, vestia-se no estilo prático) tinham o couro surrado, desgastado, e as botas com ponteiras de metal deixavam entrever as meias em aberturas nas quais a integridade da costura perdeu a batalha contra os rigores do uso. Tosa, e não corte, parecia ter trabalhado nos cabelos que, de tão loiros, eram quase brancos, desgrenhados em cacofonia de zonas curtas ou longas demais. Linhas marcavam o rosto jovem demais para tê-las, e uma tênue névoa etílica nublava a visão dos olhos azuis emoldurados por olheiras profundas. Tinha os lábios cripados em um leve sorriso.
No vasto recinto, homens – a maioria trajado em saias no estilo ocioso, proibidas para eles pelo dogma morgensterniano que assolava a superfície – e mulheres – ostentando decotes, também proibidos –conversavam acaloradamente, riam, bebiam, jogavam. Abaixo da superfície, era permitido revelar o que havia sob a máscara de conformismo que o Socialismo Teocrático ditava. Entre o grupo que sentava nas poltronas ao redor do sofá de Adel, contudo, o tom era mais sério. Vigiavam com apreensão o grande relógio de pêndulo. Badalou, duas horas da madrugada. A mulher pálida de cabelos cor de ébano, cortados em uma franja reta que encimava os olhos, tirou de um dos bolsos do vestido de couro negro uma caixinha revestida de madrepérola. Aspirou uma pitada de pó alquímico, concentrou-se. Pareceu fitar o vazio, e gotículas de suor pontuaram-lhe o rosto magro. O transe se quebrou, e a postura, antes rígida, desabou no encosto da poltrona. Ofegava como quem subira uma sucessão de lances de escada num fôlego só, mas os lábios pintados de púrpura movimentaram-se com leveza. “A armadilha foi um sucesso”, declarou Nicole, com satisfação.
Abriram mais uma garrafa de vinho espumante. Brindaram.
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Três meses antes. Os rebeldes lastimavam ter de abrir mão daquele ponto estratégico, mas sabiam ser necessário: fora utilizado por tempo demais, não seria seguro por muito mais tempo. Despedir-se-iam com estilo, então. Nicole Tesla elaborara a aritomancia de polarização do pequeno emanador; não se podia esperar artista melhor, já que fora fruto de seu gênio a concepção do Modelo Físico do Éter. Os mais hábeis taumaturgos da guerrilha, por noites a fio, materializaram os cálculos. Trabalharam na espira de éter condensado com faiscantes agulhas metálicas, implementaram o código, talhando arabescos geométricos, caminhos e desvios tortuosos, no receptáculo semi-material. Executaram exaustivos testes e correções. O complexo aparato era a peça-chave do embuste.
Os demais componentes, em comparação, eram simples. O mais rude de todos, o esqueleto do velho leito hospitalar feito armadilha mortal, era mecânica básica, sem requintes. O mecanismo de ativação era apenas suficientemente complexo para parecer uma ameaça, visto que sua função era camuflar, entre a multitude de molas e roldanas, outra parte ligeiramente mais sofisticada do sistema que nada tinha a ver com elas – metade de um finíssimo fio de cobre. Se desarmada (e desarmada precisava ser) a cilada óbvia, o fio cumpriria sua função de gatilho – distante dali, sua outra metade, simetrizada por entrelaçamento etérico, sofreria idêntica perturbação. Isto, por sua vez, iniciaria o movimento de ainda outra fração: o fonógrafo conectado a um amplificador magnético de sons, que funcionaria de forma idêntica a um instrumento musical eletromagnético (ou um arcaico cristalocórdio elisiano) – conversão de vibrações sonoras em etéricas. A reprodução de uma peça de composição rapsodomântica, gravada num cilindro de cera, iniciaria. A sucessão harmônica haveria de construir a ressonância necessária para o grand finale: um feitiço de desintegração.
O emanador, chamariz da arapuca. Polarizaria a corrente de um gerador de schwarzstein em freqüências precisas de vibração no éter. Ondas que transmitiriam uma informação muito clara, que, embora falsa, deveria ter toda a aparência de verdade. Algoritmos de pensamento subversivo, estruturas de diálogo, padrões bioelétricos – a combinação destes estímulos produziria a mesma assinatura etérica de uma reunião de indivíduos, pensamentos fervilhantes com perfídia e ódio ao Estado. Para adicionar verossimilhança, uma taumaturgia ligeiramente modificada de estática etérica – a fim de simular um sistema danificado de não-detecção. Um grupo de rebeldes desprotegido pareceria estranho; um cuja proteção fosse apenas defeituosa, não. A perturbação resultante, ainda, deveria ser suavizada, ter aplainadas as arestas do fractal no éter, de modo a esconder o aspecto de procedimento taumatúrgico.
A instalação desta sofisticada armadilha foi laboriosa. Sempre na calada da noite. Sempre sob encantos de ofuscação e nulificação mental – cuja conjuração, de assinatura silenciada, era especialmente trabalhosa. Uma parte por vez. Cada time de guerrilheiros – que não podia se repetir, para não levantar suspeitas – sempre ignorante em relação às partes do projeto que não lhes fosse imediatamente pertinente. Era necessário que assim fosse – a Igreja de Morgenstern possuía métodos excessivamente eficazes para extrair conhecimento. Se os fragmentos de informação fossem suficientemente pequenos de modo a evitar a intuição do todo, o plano estaria seguro.
Sistemas com tamanha profusão de partes são, usualmente, impraticáveis. Dependem de variáveis demais. Em se tratando da Igreja de Morgenstern, contudo, as variáveis se tornam belas constantes. A diferença essencial entre os grupos assegurava que assim fosse. Os teurgistas do Estado não compreendiam sequer metade dos nuances da Ciência Etérica, ao passo que os praticantes desta conheciam os pontos em que Teurgia era falha. O clero era calcificado por dogmas; de sua torre de superioridade moral, subestimavam, estereotipavam os rebeldes. Estes, em contrapartida, possuíam a inventividade que floresce na escassez de recursos, o instinto de sobrevivência e, sobretudo, a personalidade forte que recusa a dissolução do indivíduo em detrimento do ideal do Socialismo Teocrático: a mente de colméia, o homem reduzido a abelha operária.
Como toque final, luvas de seda gasta conectaram o emanador à bateria arcana, completando o longo processo. Em pouco tempo os paranóicos do Ministério da Onisciência morderiam a isca. A guerrilheira ajustou a gola do casaco de peles cinzentas e sorriu para o colega: “A ratoeira está armada.”