Há um tempo vi um comentário do Shido sobre o “uso indiscriminado do sobrenatural, talvez como indício de pouco conhecimento do natural”. Eu concordo com a afirmação e posso garantir que, no meu caso, o inverso também é verdadeiro: Eu evito usar elementos de magia em jogos que eu mestre quando não domino a lógica de magia do cenário (Mas admito que é raro eu narrar um jogo num cenário ao qual não seja muito afeito). Normalmente o que acontece mesmo é que eu uso a magia com muita parcimônia, por diversos motivos dos quais alguns já comentei aqui neste blog.
Porém, retornando à primeira premissa, me deparo com um assunto que é bem interessante, um tanto mal utilizado no sistema básico do D&D, e também foco de pouco conhecimento geral e conseqüentes enganos ou medo de utilizá-lo, por parte dos jogadores: O poder de fogo, as armas de fogo em geral.
O que vejo bastante é que ela é muito comum, embora muitas vezes mal utilizada, em jogos modernos, muito rara em jogos de fantasia medieval (mas anda “na moda”, desde que os Reinos de Ferro chegaram ao Brasil) e como caso geral é tratada com certas confusões.
Calha que é um dos assuntos que me apaixonam. Então, resolvi dedicar alguns artigos para falar exatamente sobre armas de fogo. Acredito que, compreendendo melhor sua lógica, um grupo de jogadores pode inseri-la em seu cenário de maneira mais diversificada, e com resultados interessantes.
Antes de tudo, uma constatação: Armas de fogo são eficientes, e por diversos motivos. A maior prova desta eficácia é sua total soberania no campo das armas leves. Claro, para chegar a este ponto ela passou por (cerca de) quinhentos anos de evolução tecnológica, e pretendo fazer uma sinopse desta evolução em artigos próximos, porém mesmo em sua forma mais primitiva, uma arma de fogo é indiscutivelmente mortal. Ela pode ser imprecisa, perigosa para o usuário, passível de falhas na detonação (não explodir), enfim… vários problemas. Mas mortal, sempre foi, basta acertar o tiro.
Falaremos melhor disto em breve.
Hoje eu quero falar sobre uma arma específica, relativamente moderna (e nisto estou saltando quase 500 anos, eu sei). Recentemente pude ler o romance “O Crânio e o Corvo”, do Caldela. Neste romance há um anão, Ingram, que possui um rifle que ele mesmo desenvolveu.
Mas o que é um rifle? No RPG nacional, em se tratando de fantasia medieval, o termo apareceu recentemente nas páginas de Reinos de Ferro, com a tradução do próprio Caldela (o que não quer dizer que não tenha aparecido antes). Extraido do texto original, que também utiliza a palavra rifle. Como os rifles de Reinos de Ferro são fictícios e não há um diagrama, fica um pouco difícil dizer qual seria a tradução mais adequada para a palavra, o que justifica ao tradutor ter mantido o termo no original.
Porque em português a palavra rifle não é o termo técnico correto (o que por si não é grande problema), mas designa duas armas diferentes (o que pode constituir um problema). Em português um rifle pode ser um fuzil ou uma carabina. Alguns atiradores e mesmo associações de tiro até utilizam o termo rifle, mas não é uma tradução nem oficial, nem exata.
Rifle deriva do inglês rifling (estriamento) e, nos países de língua inglesa, define toda arma de cano longo (acima de 20″) com alma raiada (alma é a parte interna do cano). No dia-a-dia acaba que eles às vezes se confundem um pouco, chamando as armas de cano longo com menos de 20 polegadas de rifle também, mas técnicamente estas seriam carbines. Assim, um “winchester 1866 yellowboy rifle” na verdade é uma “winchester 1866 yellowboy carbine“. Como curiosidade, podemos dizer que o receptor de latão que deu a ela o apelido de “yellowboy” foi também a causa do modelo 1873 ganhar, no Brasil, o apelido “papo-amarelo”… a famosa “carabina papo-amarelo” de Lampião.
No Brasil chamamos de fuzil toda arma longa de cano estriado (ou raiado) que receba balas (vou chamá-las assim para diferenciar dos cartuchos para municiamento de espingardas) de fogo circular ou de fogo central, mas cujos projéteis são de alta potência, maiores e perfurantes. O calibre para fuzis recebe, segundo o sistema central europeu, dois números, o primeiro representando seu diâmetro e o segundo o comprimento do invólucro.
Já a carabina é toda arma longa de cano estriado que receba balas de fogo circular ou de fogo central de baixa potência, a mesma munição que podemos encontrar em revólveres ou pistolas. Seus invólucros são significativamente mais curtos que uma bala de fuzil.
Em tempo: Quando falamos de fuzis, é importante dizer que, antes de inventarem as armas de alma estriada, houveram os fuzis de alma lisa, que ganhavam este nome por conta da pederneira (fuzil) que acionava o disparo. Eram descendentes diretos dos mosquetes e por vezes apelidados de mosquetões, pelo comprimento do cano. Carregavam-se pela boca com projéteis esféricos (chamados zagalotes).
E neste momento o leitor pode estar se perguntando: “E eu com isso?”. Bem, pelas definições que citei acima, já podemos imaginar que uma carabina é mais fácil de ser encontrada nas mãos de um civil e sua munição é bem comum, fácil de ser obtida. Já um fuzil é armamento militar mas, para compensar, o estrago causado é muito maior, e só isto já é pano para manga em muitas aventuras.
Numa campanha medieval não haveriam fuzis ou carabinas, pelas suas definições técnicas. O cano raiado só surgiu a partir do séc. XVI, e somente no séc. XVIII foi efetivamente produzido, por conta de problemas com a culatra (as estrias obrigam o carregamento pela culatra, e não pela boca).
Já numa campanha de fantasia medieval, havendo alguma destas armas (de cano estriado), eu gostaria de atentar para alguns pontos interessantes:
1 – Uma arma de cano estriado representa diversas evoluções tecnológicas que se refletem em todo o cenário, do armamento leve e pesado à defesa, além de diversas outras aplicações para as tecnologias desenvolvidas. Além disto, significa que existem diversas outras armas de fogo, de tecnologia inferior, mais antigas, o que garante um certo conhecimento do equipamento por um número maior de pessoas.
2 – O municiamento para um fuzil, carabina ou revólver requer projéteis feitos sob medidas muito específicas, caso que não era tão necessário nas armas de alma lisa. Então, aquela cena d’O Patriota, em que o Gibson molda um zagalote enquanto descansa próximo a uma fogueira, não seria tão simples se ele portasse uma arma estriada. (Ele usava um fuzil-mosquetão, como o que citei acima, de alma lisa).
3 – A alta precisão que a rotação do projétil proporciona (devido às estrias) aumenta tanto a eficácia da arma que praticamente aposenta todas as outras armas leves. Armas brancas são relegadas a segundo plano rapidamente.
4 – O baixo custo da munição de armas de fogo, em relação à munição para arcos e bestas, também acaba por aposentar o uso destes últimos em larga escala.
5 – Contra uma arma-de-fogo de alta potência e precisão, bons reflexos constituem melhor defesa que uma armadura pesada (por diversos motivos!).
Concluindo (por hora!)
As armas de fogo são interessantes, sim. Mas defendo sua introdução no cenário pensando em seu avanço tecnológico em relação ao resto da civilização e quais os efeitos da arma para justificarem seu uso, em detrimento de outras armas mais primitivas (e nisto entra um sistema de regras que trate melhor o caso).