Quando os Deuses Sofrem
Os sentimentos sempre permearam as vidas dos mortais desde o seu surgimento pelas mãos divinas, e da mesma forma, os criadores também são afetados pelas emoções, e de forma ainda mais avassaladora do que em suas criaturas. Esses momentos são de extrema importância pois costumam sempre envolverem ocasiões capazes de mudar os rumos do mundo.
Momentos de fúria de Othen, vingança de Naron, ou pura destruição de Gorak são conhecidos e até comuns, mas as mais tristes e recontadas histórias envolvendos os deuses são as dos Três Lamentos de Falena. Estes eventos são lendários pois mesmo quando uma deusa tão viva e alegre quanto a da Natureza sofre, ela cria.
Estes são os contos dos Espíritos das Neves, os Filhos, e os Irmãos da Natureza.
O Primeiro Lamento, os Espíritos das Neves
Nas primeiras eras de Meliny, os elfos se dividiram em duas nações distintas em seus comportamentos e ideais. No norte, o Bosque Verde havia sido envolvido por uma benção que o deixava em eterna primavera, sempre viçosa e em flor. Mas no sul, os elfos da Floresta do Inverno preferiram ver o tempo passar como ele era de verdade, aproveitando a melancolia da passagem das estações para entender qual era o lugar deles no mundo, e como as coisas se relacionavam entre si e com os deuses e com tudo mais que existia. Eles eram os Sillhan’Quessir, os elfos brancos.
Com o dado tempo, seus pensadores poderiam levar Meliny a uma era de iluminação e esclarecimento sobre a própria existência dos mortais, mas o seu destino foi mais amargo, pois o flagelo dos orcs se abateu sobre esse povo como as tempestades de verão que tudo destroem em seu caminho.
As cidades foram reduzidas a escombros em poucos meses, as bibliotecas foram queimadas e crepitaram até às cinzas, as pessoas foram sadicamente chacinadas e massacradas, seu sangue manchando a neve do sul. Sem escrúpulos, nem receios, os orcs festejaram sobre a morte de seus inimigos, o estrago que eles haviam começado, o inverno eterno de Rhostara terminaria. E em poucas décadas ninguém mais se lembraria de Floresta da Inverno.
Falena assistiu horrizada, de seus domínios divinos, ao fim de muitos de seus filhos, e desceu para Meliny para velar os mortos daqueles que ela considerava sua maior criação. Cercada por tantos corpos de seus belos elfos brancos, a deusa chorou, e suas lágrimas tocaram as almas que ainda estavam presas ao mundo material pela injustiça que haviam sofrido, e tocadas pela essência divina, elas atingiram a elevação que sempre buscaram na vida, e assim mudaram.
Os espíritos se uniram à neve e ao gelo, os únicos vestígios do reino caído, e renasceram como seres de silênico, não contemplador, mas ressentido. Não eram mais visionários que buscavam por respostas, eram guerreiros que lutavam para defender aquilo que haviam lutado tanto para descobrirem. Não eram mais os Sillhan’Quessir, eram os Sillhanavith, os espíritos brancos, que até hoje habitam as áreas mais remotas de Rhostara e Deanor, protegendo as poucas relíquias que conseguiram salvar de sua antiga nação.
Eles hojem vivem em profundas cavernas do sul, vivendo em conflitos ocasionais com os anões do gelo, ou shahon, e os gnolls das neves, disputando alimento, abrigo e fés. Eles contam com a vantagem de viverem nas mesmas terras a mais tempo, mas mantém o mesmo costume de reprodução lenta de quando eram elfos.
Recentemente um destes se uniu à patrulha de rangers de elite de Deanor, os Tigres Brancos. Ela seria ainda uma criança entre os seus, mas é mais velha que a maioria dos outros membros, e muito já adicionou ao conhecimento do grupo. Entretanto, alguns dos outros sillhanavith viram isso como uma traição e planejam retalhar atacando os arredores de Cronn.
O Segundo Lamento, os Filhos
Os milênios se passaram desde a queda da Floresta da Neve, e savanas e estepes rasgavam o coração de Meliny, mostrando que até mesmo a mais dura das naturezas podia fervilhar em vida. Apesar de severa e por vezes cruel, essas terras sempre foram aptas para a sobrevivência daqueles fortes o suficiente, e também daqueles que a respeitassem.
Mas a Era da Magia teve sua vez na roda do tempo e não foi uma era de respeito, pois muitos dos magos quedaram-se para a ambição e procuraram por novos meios de aumentar seus poderes. Um grupo desses se refugiou nas terras centrais do continente, derrubando e queimando árvores para construir seus laboratórios, e desviando e secando rios para alimentar seus experimentos.
Mas a maior das ofensas ocorreu quando os animais nativos começaram a ser usados como cobaias dos arcanos, sofrendo crueldades indizíveis nas mãos deles. Acuados e assustados, uma manada composta por membros de todas as raças debandou em fuga para as terras ermas que no futuro seriam o sul de Palmazbi, e lá encontraram um oásis aonde antes não havia nada, e no meio dele havia Falena.
A deusa trazia o rosto marcado pelo choro, e suas crianças também choraram ao ver sua mãe assim, e ela os acolheu e acalentou em um abraço, cuidando de seus feridos e alimentando os fracos. Mas a deusa não podia permanecer mais entre sua criação, precisando reassumir seus deveres na Eternidade, mas ela não partiria deixando-os desprotegidos e escolheu três dos animais da manada para serem os guardiões dos outros.
Aos robustos e determinados hipopótamos foi dado o conhecimento do segredo da natureza, da vida, e de tudo que era ligado a elas, sendo seu dever guiar os espíritos de seus irmãos. Os rinocerontes foram escolhidos, por serem os mais vigorosos e impulsivos, para erguer armas contra aqueles que ameaçavam aqueles que não podiam se defender. E o papel de liderança foi dado ao animal mais nobre, feroz e imponente das savanas, os leões guiariam os outros, e suas jubas reluzentes seriam o farol nos períodos de escuridão.
E a Manada retornou, agora liderada pelos Umntwana, os Filhos, eles enfrentaram aqueles que os haviam desrespeitado. Seus soldados deformados e monstruosos foram derrubados pelos Umlindi, as magias e encantamentos nocivos que eram conjurados eram rapidamente dissipados pelo poder dos Umluleki, e os próprios magos foram derrotados e expulsos pelas garras dos Umholi. E a Trindade das Feras tornou as savanas e estepes outra vez seguras para todas as criações de Falena.
Mas quano os refugiados e desgarrados da Guerra da Magia se viram perdidos e sem lar, para o coração do mundo eles foram guiados por Nivee. E no espírito da paz que ela e Falena viviam, foram recebidos de braços abertos pelos Umntwana. Mas o tempo veio e foi, e uma visão da Dama Branca foi mal-interpretada por um dos líderes dos humanos palmazbianos, e ele expulsou ao fio de espadas e ponta de lanças, quase todos os Filhos, que se refugiaram em Wizarlah.
Mas a alguns séculos eles voltaram munidos de fatos que provam que o atual regente é nada mais do que mais um em uma linha de ditadores que forjou um deus próprio para assegurar seu poder. E até hoje há o conflito dos “bárbaros com feições animais” e de seus aliados humanos selvagens contra a nobre dinastia dos senhores de Palmazbi.
Um fato curioso na história é que alguns umholi desbravaram as terras ocidentais e enventualmente encontraram o Vale das Brumas em seus primórdios. Quando alguns dos hushen-khan migraram junto com os humanos que fundariam Lyon, estes umntwana se aproximaram dos líderes da caravana e os laços de amizade se estreitaram quando os dois povos se uniram pela primeira vez. Desde então, a família real lyoninan sempre traz fortes traços leoninos.
O Terceiro Lamento, os Irmãos da Natureza e o Vale das Brumas
Séculos depois de sua passagem por Palmazbi, durante a Guerra da Magia na qual próprios deuses se viram presos em Meliny por obra de Donaire, Falena viu mais próxima com uma mortal do que jamais estivera. Entre as duas havia se formado o laço de uma verdadeira amizade que não via a diferença celestial entre as duas, principalmente, porque ao lado da deusa estava a maior druidisa do mundo, Fhaléstria.
Nesses tempos em que nada era certo, e as Guildas Arcanas agiam de forma cruel e desumana, Falena pensou até mesmo em usar Fhaléstria como receptáculo de todo o seu poder caso acabasse perecendo pelas mãos do inimigos. A deusa acreditava ser ela mesma capaz de suportar a morte dos outros, mas não tinha a mesma certeza se o mundo agüentaria a perda da sua divinade da natureza.
Mas foi cruel o destino que previu que quem cairia pelas mãos adversárias seria não a deusa, mas a mortal. Levado ao limite pelo toque profano da rainha-bruxa Ymora, a druidisa sacrificou grande parte de sua alma para levar e prender sua algoz no Esquecimento.
Abalada pela sua terceira grande perda, Falena chorou mais uma vez. Dessa vez suas lágrimas não continham apenas sua essência, como com os elfos brancos, nem mesmo a tristeza e desejo de proteção, como ocorrera em Palmazbi. Dessa vez, junto com o sofrimento veio a vontade de realmente impedir que outra tragédia se abatesse sobre ela mesma.
Primeiro, o choro alcançou mais animais dos que apenas três, e muitos dos antigos habitantes do vale onde o derradeiro momento de Fhaléstria acontecera se viram sobre duas pernas, embora não fossem tão poderosos quanto aqueles os Umntwana, era muito mais numerosos. Eles seriam aqueles que viveriam de igual para igual com a flora e a fauna, seriam os Hushen-khan, os Irmãos da Natureza.
Depois, restauraram toda a vegetação da região, que havia quase toda sido destruída pelo confronto, mas além de apenas de se reerguer, ela se tornou mais fechada e cerrada contra invasores. Por fim, as próprias gotas de suas lágrimas tomaram a forma de uma fina neblina que cobriu toda a área, e assim nasceu o reino isolado do Vale das Brumas, um grande estandarte de Falena para impedir nova tristeza.
De todas as espécies, cinco se mostraram as mais importantes, fundando as únicas cinco cidades de todo o Vale. Os Macacos, Hou-Khans, fundaram a Cidade do Norte encravada nas montanhas, onde repousam cavernas de cristais preciosos e as maiores bibliotecas do reino. A Cidade do Sul está sob a liderança dos Coelhos, Tu-Khans, e de lá partem suas embarcações que comercializam com os reinos ocidentais.
As Terras Bárbaras sempre atacaram o Vale, e por isso os Javalis guerreiros, ou Zhu-Khans, foram escolhidos para defender a Cidade do Oeste. A Cidade do Leste é o único ponto de contato com Lyon, ainda que as relações entre os dois reinos sejam tensas, mas a “administração” dos Ratos Shu-Khan mantém o clima suportável.
Por fim, os “Dragões“, na verdade descendentes de uma espécie de lagarto gigante do Vale, Long-Khan coordenam o resto do reino da Cidade do Centro. A cidadela guarda o Palácio Sagrado que mistura tanto as funções de sede do poder real e religioso, abrigando o maior templo de Falena em Meliny.
Além destas cinco, outra estirpe de hushen-khan que é conhecida em Meliny são os Tigres Hu-Khan, que na verdade englobam quase todos os tipos de felinos humanóides. Eles migraram do Vale a muito tempo junto com os humanos que foram expulsos de lá, e futuramente fundariam o reino de Lyon a leste.