Devo conceder que minha primeira abordagem sobre o tema foi um tanto quanto permeada por indelicadezas e um caráter não-construtivo no mínimo predominante, coisas pelas quais devo desculpas às partes ofendidas. Considerações contrárias foram expostas — como este artigo do Armageddon, bem como outros comentários que contribuíram na defesa de um ponto de vista divergente, e também esclarecimentos no que tange outros aspectos de relevância.
Seria muito bronco da minha parte não levar toda essa informação em consideração. Reavaliar posições e, munido das reais motivações por trás das escolhas previamente discutidas (em vez das suposições simplitas e ofensivas que assumi anteriormente), concordar onde concordância cabe, cordialmente declinar quando confrontado com pontos que não pareçam obrigatoriamente necessários e, nesses casos, me valer de uma posição construtiva.
Familiaridade é a primeira justificativa proposta. É mais fácil um jogador se identificar com um personagem dotado de tronco, dois braços, duas pernas e uma cabeça do que, por exemplo, um louva-a-deus-gigante. Vamos ainda mais fundo no terreno familiar — como nós, são espécies cujo sentido principal é a visão, se comunicam através de ondas sonoras, possuem mãos capazes de manipulação precisa.
Até aí, nada posso fazer se não concordar — mesmo havendo fatores ambientais que possibilitem, por exemplo, gastrópodes inteligentes, não é como se eles fossem uma opção muito atraente para se jogar. A coisa também possui um caráter prático, já que tais espécies utilizam o mesmo equipamento que humanos, não requerem mobília específica no quarto da estalagem, facilitam o trabalho do mestre em descrever cenas — afinal, é mais simples descrever como seqüência de instantâneos visuais na linha de tempo do que, por exemplo, uma sinfonia de fragrâncias (pro caso de uma raça de percepção predominantemente olfativa, o que provavelmente requereria redescrever a cena em separado para apenas um jogador; then again, isso pode ser interessante, mas fica pra um artigo futuro).
Aí entram os seios e a primeira justificativa para eles: seriam vitais pra diferenciação entre masculino e feminino, já que ilustrar bípedes reptilianos com genitálias à mostra bagunçaria a classificação etária dos livros. Mas daí eu pergunto: saber se um réptil bípede é macho ou fêmea é tão necessário assim? Somos condicionados na divisão entre menino e menina desde criança — azul e rosa, carrinho e boneca –, mas é tão crucial assim a manutenção desse constructo? Ambiguidade sexual é tão ofensiva? Assexualidade é tão perturbadora a ponto de pedir algo tão alienígena quanto seios em répteis?
Mangá Death Note: em certo ponto, somos informados que o shinigami Rem é fêmea. A informação veio verbalmente, já que Rem, sendo um demônio que, apesar da forma humanóide, era essencialmente inumano, não possuía seios (ou sequer “identificadores sexuais terciários”, como o lacinho na cabeça da Mrs. Pac-Man). Macho ou fêmea, o sexo da Rem teve alguma influência de relevância indispensável pra história? Não me parece. Os shinigami perdem pontos em seu cool factor por não terem um gênero prontamente identificável? Na minha opinião, não. Se eu me deparar com um cenário em que haja uma raça de visual tão bacana quanto os shimigami do Death Note, o fato de não poder saber, inequivocamente, se tratar de menino ou menina certamente não jogaria água fria na minha vontade de jogar com um(a).
Uma sexualidade de fronteira nublada interfere no quesito familiaridade? Pra maioria das pessoas (rapazes, principalmente), sim. Ao meu ver, aí entra um fator de temperança — nem tudo precisa ser 100% familiar. Se estamos falando de uma ambientação ficcional fantástica, um pouco de exotismo se faz desejável, afinal de contas. 80% de familiaridade já não está bom? Se uma dada espécie não possui a zona de conforto de “ufa, isso não agride as noções preto-e-branco de sexualidade vigentes em nossa sociedade”, pra algumas pessoas, ela pode perder pontos no fator “quero jogar com isso” — mas quem disse que isso não pode ser compensado com atributos atraentes em outras áreas que não a da sexualidade? Só sabemos que um guerraforjado (tradução em novilíngua para warforged, caso você tenha estranhado) tem personalidade masculina ou feminina graças ao texto descritivo, visto que, corporalmente, salvo por escolhas de vestuário por parte do jogador, não há dimorfismo sexual. Um warforged é menos atraente para se jogar em virtude disso?
Digamos que precisamos, ou tudo se tornará dor e horror, diferenciar entre macho e fêmea — ou, se a raça for realmente não-humana (mesmo com nossas considerações realmente práticas, cabeça-tronco-braços-pernas-olhos-comunicação-sonora), sexo A e sexo B. Invoco aqui uma citação do Aiken Frost: “Os metalianos por exemplo, não poderiam ser distinguidos unicamente pelas fêmeas serem mais esbeltas? Ou, sei lá, terem uma antena diferente? Ou qualquer outro traço, são alienígenas afinal de contas!” O Armageddon respondeu que “uma antena ou um seio é basicamente a mesma coisa nesse caso. Um acessório pra diferenciar macho e fêmea, com a diferença de que um seio para nossos padrões é mais fácil de identificar.” O Aiken sacou melhor a parte do não-humano — sexo 1 e sexo 2 fazem o trabalho. Macho e fêmea são mais familiares, e, junto com isso, os seios, sim, mas, uma vez que a parte prática do físico humanóide já está assegurada, não podemos usar justamente o fator da sexualidade, que não costuma ser assim tão relevante na maioria das aventuras heróicas de fantasia, para dar aquele tempero de exotismo? Se algo é alienígena demais ou comum em excesso, tem poucas chances de atiçar o interesse — no primeiro caso, é muito estranho para assimilar; no segundo, batido demais pra prender a atenção por mais que dois segundos. Agora, se algo nos é familiar, mas tem mesclada alguma coisa que, a princípio, nos causa algum nível de choque, aí temos um candidato pra algo notável. (Na minha opinião, cat girls não satisfazem o requisito, já que, dada a presença excessiva, em animes principalmente, já conta como “clichê batido”.)
Continuando com nossos “golens vivos” eberronianos. Pode-se dizer que “ah, mas eles são assim porque são constructos projetados para a guerra (como o nome implica), logo, é natural que sexualidade não fosse uma preocupação dos projetistas”. De acordo com o Armageddon, a “maioria dos mundos são criacionistas, com divindades desenvolvendo espécies à sua semelhança ou de acordo com determinadas funções específicas dentro dos nichos sociais em cada mundo“. Rapidamente, dá pra pôr isso em dúvida, e, novamente, uso como exemplo o Tormenta. Se você possui o Guia do Mestre 3.5 do cenário, este tem uma linha do tempo, e, se atentarmos às porções pré-históricas desta linha, veremos algo de certa forma agradável — não é criacionismo per se, mas, sim, uma roupagem criacionista para algo francamente evolutivo. Por milhões de anos, a vida só existe no oceano; aí, guiados (não criados) por mãos divinas, formas de vida conquistam a terra firme; por outros milhões de anos, grandes répteis dominam a paisagem; os humanos são uma novidade de poucas dezenas de milhares de anos. Soa familiar? Como disse o colega Aiken Frost, não é por ser fantasia “que você automaticamente tem que desligar o cérebro na hora de explicar, ou descrever, o mundo” — usar uns imperativos biológicos não faz mal, e tampouco “estraga” a fantasia. Um “fermento biológico” pode fazer suas raças crescerem de forma bastante interessante, afinal.
Mesmo que estejamos falando de criacionismo de fato — a menos que suas divindades fiquem zanzando pelo cenário e interferindo diretamente (coisa que muitos jogadores detestam, já que NPCs ultra-poderosos roubam o spotlight), se esperaria, ao longo da “evolução assistida” das raças, pequenos “empurrões” evolutivos — não é totalmente “oba-oba-vale-tudo”, nem hard sci-fi, mas um “meio do caminho” entre esses extremos. Como disse o Armageddon, “livros de RPG não são compêndios científicos”, e nem gostaríamos que fossem (afinal, se assim fosse, adeus magia) — mas um tempero de verossimilhança dá um gosto bom, faz a ambientação fantástica mais firme, fica mais fácil “comprar a mentira” quando ela tem porções de verdade entrelaçadas.
Armageddon de novo: “As ilustrações devem inspirar idéias de aventura, perigo e beleza de seu mundo, além de possibilitar seu uso como ilustração para essa ou aquela cena, ou esse e aquele personagem. A idéia não é e nunca foi trazer o humanóide médio para sua mesa, e é por isso que ao invés de uma senhora de ancas largas e barriga protuberante após o primeiro parto, a guerreira que ilustra seu Módulo Básico tem a barriga tanquinho e tatuagens sedutoras. Idem para o homem com barriga de cerveja devidamente substituido por um Conan-Musculoso-de-Tanguinha.” Não tenho por que discordar — queremos personagens, afinal, heróicos, logo, eles devem parecer impressionantes, e, certamente, acima da média (são aventureiros habilidosos e de grande potencial, ora pois). A guerreira vai ser atlética; a maga, apesar da pouca atividade física, provavelmente não vai ser gordinha — principalmente em sistemas de magia baseados em fadiga; cada feitiço deve queimar umas quantas calorias, e lançar uma bola de fogo se torna o equivalente a uma aula de aeróbica!
Mas há um abismo entre “personagens boa-pinta” e “depósitos de leite da Parmalat enfiadas em chainmail bikini“, se me perdoam a franqueza. D&D 4a. edição — pela minha lembrança de ver o livro, não há chainmail bikinis francamente apelativos (ao menos não em grande quantidade); há um esforço em deixar os trajes heróicos mais funcionais, que passam a impressão “essa é uma indumentária pra ‘tempo ruim o tempo todo’, você pode debulhar monstros sem se esfolar todo”. O mesmo se pode dizer das ilustrações do Pathfinder pela mão do Tio Reinoldo: cada desenho dá vontade de jogar com aquele personagem, sem necessidade de “apelo hormonal” (à exceção da feiticeira, talvez). Guia de Personagens dos Reinos de Ferro: fora a moça da capa e (também) a feiticeira — que nem é tanta coisa, só mostram uma faixa de alguns centímetros de abdômen –, as demais raparigas trajam roupas que realmente oferecem proteção, e que nem por isso estragam a atratividade das personagens que as usam. Como disse a Paris Hilton, “Se você tem um rosto bonito, não precisa de peitos exageradamente grandes”. E, by the way, o equivalente masculino às moças de chainmail bikini em poses insinuantes (ou arquimagas élficas meio sado-masô) é menos “Conan de tanguinha” e mais algo assim (levando o fator insinuação escancarada em conta).
Da mesma forma, como escreveu o Leonel, também colunista aqui do .20, que há certo recuo no design em termos de antropomorfização em excesso — uma tendência bem difundida, e não “alternativa”, como eu pensava –, acredito que uma retração em termos de fanzervice nas ilustrações, ao menos tomando como base os exemplos acima citados, também pode ser notada.
Como disse o Rogério Saladino, creio que vale salientar, a coisa não nem sempre vem dos autores. “Muitas vezes o ilustrador simplesmente ignora o que foi dito e faz um desenho bacana. E fica um desenho bacana que é usado.” Certa vez me disse o Trevisan, na época em que eu morava em São Paulo, que a Shivara Sharpblade, do Tormenta, foi descrita, no conto em que apareceu, como trajando uma armadura completa; o ilustrador achou mais interessante dar uma ênfase nas nádegas — e o desenho, de fato, ficou muito bom (como é de praxe, em se tratando do Vazzios). Com o desenho pronto, era mais fácil alterar o texto, questão de pressionar algumas teclas, do que reformular uma ilustração já pronta. Nem mesmo eu posso ser totalmente isentado — a fanart que eu fiz da Marah, deusa da paz é totalmente “fanservicioso”. Mas invoco meu direito de defesa, já que fui, por aí, acusado de “moral de cuecas” por causa dessa ilustração. Quando eu iniciei a série, tinha intenções de não pisar no terreno do fanservice — é só ver minha primeira Tenebra. Foi um fiasco, fui quase apedrejado pelos colegas fãs do cenário — e acabei cedendo com a segunda versão. Por que isso? É fanart do cenário, e essa é a linha com que o pessoal, aparentemente, está acostumado — e eu sei ser suficientemente pragmático quando isso pode ser benéfico; faço esses desenhos por que gosto, mas são não-oficiais e não ganho um centavo com eles, e então que também sirvam pra divulgar meu trabalho. Não é o tipo de coisa que vocês verão nos desenhos do Romância, por exemplo, visto que é outro cenário, outro tema, outra ênfase. “Moral de cuecas” seria chainmail bikini no Romância, certo?
Jogo rápido sobre os minotauros: tanto o Leonel quanto o Saladino me alertaram sobre minha ignorância acerca do minotauro de nossa mitologia, que existia apenas como exemplar masculino. Assumo meu equívoco. Mas, teimoso, ainda digo que, apesar de seguir o mito mais ou menos ortodoxamente, a coisa não precisa ser assim (pode, mas não é obrigatório). As mulheres com cabeça de besouro do China Miéville, da raça khepri, são inspiradas na deusa egípcia de mesmo nome. E como ele próprio afirmou, sendo “um filisteu nesses assuntos”, usou apenas o aparência da divindade e criou todo o resto da raça sob um viés original. É uma abordagem interessante para se considerar quando criar uma raça baseada em algum personagem mitológico — a aparência já é suficiente para evocar a familiaridade necessária; quanto ao resto, pode ser uma boa idéia utilizar-se daquele “tempero de exotismo” que citei anteriormente. O mito grego não conta com uma minotaura no labirinto, apenas um minotauro; mas, em seu cenário, minotauras podem ser interessantes.
Para fechar, outro equívoco da minha parte: biologicamente falando, não é qualquer mamífera que se presta para seios. Na verdade, somente as humanas os têm. Seios em uma mulher-leoa, portanto, são tão inverossímeis (reforço, biologicamente falando) quanto em uma reptiliana. Sobre os seios nas humanas, o colega Virtual Adept foi bacana e forneceu uma explicação ágil sobre a questão:
“É uma história simples, porém engraçada.
O atrativo sexual feminino na pré-história eram os glúteos redondos e formosos (afinal, o sexo era realizado apenas na posição de “cachorrinho”, posição natural da maioria das espécies de mamíferos).
Mas, com o tempo, devido à seleção sexual, os glúteos foram ficando maiores e maiores, o que acabou atrapalhando a posição normal, então o homem teve que aprender a fazer sexo em outras posições.
Aí que os seios começaram a se desenvolver, porque as mulheres precisara de um atrativo “de frente”. Por isso os seios foram se desenvolvendo, para imitar os glúteos.
Os seios nada mais são do que uma emulação dos glúteos no busto da mulher.”
Usei minhas (parcas) habilidades de google-fu e encontrei um artigo que fala sobre o assunto; é bem simples e resumido (foi extraído da Super Interessante) mas, se tiverem tempo e interesse, vale a pena dar uma olhada. Isso abre algumas questões interessantes. Poderia, com base nisso, qualquer raça bípede desenvolver seios? Como seriam as nádegas desenvolvidas (pelo andar ereto) de uma crocodila bípede, supondo, bem desvairadamente, que elas as possuísse? Idêntidas a de uma macaca bípede? Ou de formato diferente, desenvolvendo, assim, seios de um formato realmente exótico, a despeito da ausência de glândulas mamárias?
Novamente, ficam aqui as desculpas pela descortesia anterior, e a tentativa de uma discussão mais civilizada e construtiva sobre o assunto. Se o padrão costumeiro funciona para você, não há razão para abandoná-lo: cada um sabe de si, afinal. Se essas considerações de verossimilhança e exotismo fazem sua cabeça, porém, espero que as questões abordadas sejam de alguma utilidade — da mesma forma que me foi útil e agradável ponderar e pesquisar sobre elas.