Recentemente, no fórum da Jambô, alguém propôs uma raça de esfinges. Normal até o ponto em que “as esfinges fêmeas se parecem com humanas atraentes de traços leoninos, ao passo que os machos são bestiais e possuem corpos de felinos quadrúpedes”. Isso é coerente? Não. Há alguma relevância específica em termos de trama que requeira (e, portanto, desculpe) tal incoerência? Também não. Por que raios, então, toda fêmea de uma espécie não-humana precisa se prestar como material de banheiro pra marmanjos babões?
Se você possui estômago forte, aventure-se comigo na latrina das répteis com seios, insetos-boazudas e garotas com orelhas de bichos. Maravilhe-se com tais clichês batidos, e casos em que, estranhamente, a coisa funciona. Mais adiante, especulemos por que essas coisas acontecem dessa forma trágica e, finalmente, como a visão naturalista pode nos salvar do horror!
Vamos adentrar a a fétida latrina com um dois exemplos clássicos do clichê seios em não-mamíferos: os dragonborn (ou draconatos) da 4a. edição do D&D e as metalianas, raça alienígena de gente-inseto-metálica do romance de ficção científica Espada da Galáxia. No primeiro caso, falamos de (supostos) répteis, que, por via de regra, não amamentam — já achou leite de crocodila no mercado alguma vez? –, no segundo, trata-se de alienígenas, pela Galáxia!, que sequer contam com uma fisiologia de criaturas baseadas em carbono! Por que os seios, então? Puro fanservice.
Répteis e insetos metálicos à parte, a turma do Onã, por vezes, se vale de uma tática de ridículo menos óbvio, mas igualmente ruim, o dimorfismo sexual forçado. Nós, humanos, sabemos distinguir um macho de uma fêmea na nossa espécie pelas diferenças morfológicas — as mulheres têm quadris mais largos e grândulas mamárias penduradas no tórax. A turma do cinco contra um, porém, resolve levar a coisa a extremos, alcançando outro clichê, a garota-monstro gostosinha.
Como funciona? Que nem as esfinges malucas do nosso primeiro parágrafo — as fêmeas da espécie, não importa o quão monstruosos os machos, são sempre atraentes (para machos da espécie humana, a dos leitores, claro), corpinho de ninfeta com talvez olhos exóticos, ou orelhas de algum bicho, em casos mais extremos uma cor de pele diferente ou uma cauda, mas nada que impeça a audiência (humana e masculina) de melar a calça.
Pra não acharem que é implicância com o D&D 4a. edição, agora uns exemplos de um cenário de que gosto, o Tormenta. Há uma raça bacana que não aparece nos livros, os fintroll — que contam com histórico legal e uma cultura de decadência sofisticada que achei muito bacana. Os machos têm narigões, feições grosseiras, braços longos demais — o que você esperaria de um troll D&Dêico. As fêmeas? Estranhamente, têm curvas humanamente atraentes, narizes bem proporcionados, e, fora a pele esverdeada, não têm nada daquilo que faz os machos monstruosos (mesmo se tratando da mesma espécie!). Nos Reinos de Moreânia, a coisa fica pior. Olhe as ilustrações — os machos seguidamente são tão bestiais que chegam a ter cabeças de bicho. Nas fêmeas, orelhinhas e cauda sobre uma base humanóide e humanamente atraente (claro!). Sempre há quem venha ao salvamento dessas coisas recitando o dimorfismo sexual forçado, mas, convenhamos, é um dimorfismo conveniente demais — e conveniente para fanservice tão-somente.
A coisa toda, em geral, beira o (ou mergulha de cabeça no) furry, caso no qual eu sou obrigado a concordar com a definição da Desciclopédia — nada mais é que “uma desculpa esfarrapada para justificar atos de zoofilia, pedofilia e bestialidade”. Já que entramos no assunto, outro elemento de Tormenta pro qual eu torço o nariz: os minotauros. Aqui entra outro clichê, a raça de um gênero só. Estamos falando de fantasia e, assim como minotauros não existem, minotauras também não — mas, como é fantasia, é tão fácil postular minotauras quanto minotauros. Aparentemente não — só há minotauros machos. E como eles se reproduzem? Em fantasias pervertidonas de submissão, S&M e bestialidade — com humanas ou meio-elfas (claro). É revoltante, mas justificam: eles precisam escravizar as humanóides de corpo lisinho e pele macia (que devem fazer caras de horror quando, agrilhoadas, têm forçados dentro de seus corpinhos os membros taurinos) pois a sobrevivência da espécie depende disso! (Sorte se tratar de um cenário criacionista, queria ver explicarem como uma espécie assim não foi extinta em seus primeiros séculos de existência…)
Claro que o dimorfismo sexual forçado nem sempre é apenas desculpa sem-vergonha pros descabeladores de palhaço — tem vezes em que o efeito é interessante. Exemplo? A raça khepri do romance Perdido Street Station, do China Miéville. As fêmeas possuem um corpo de fêmea humana com pele vermelha, ao passo que a cabeça é um enorme besouro de dimensões semelhantes às de uma cabeça humana. Os machos, por sua vez, são apenas besouros enormes, desprovidos corpo humanóide anexo e mente (racional, pelo menos). A diferença aqui é que, graças à habilidade do autor, o intuito é causar estranheza, e não priapismo. Um humano que tenha relações sexuais com uma khepri é visto como um pervertido (o bom senso ataca, afinal!) — ao passo que o protagonista esconde da sociedade seu romance com uma khepri. As cenas são temperadas com descrições de como ele acaricia a carapaça ou as asas insetóides da cabeça da moça, e, em outros momentos em que aparecem raças meio-humanas-meio-outra-coisa (como os remade ou cactae), há um esforço em descrever as zonas transicionais entre as porções humanas e as queratinosas/vegetais/metálicas — para mostrar que não é uma coisa bonitinha (como as meninas-furry que sempre têm as orelhinhas saindo do meio dos cabelos…).
Aqui vale analisar uma “justificativa” comum pro dimorfismo forçado/garota-monstro boazuda — “assim como os homens são feios e toscos, e as mulheres são lisinhas e bonitas, é natural que se façam assim as raças fantásticas!”. Natural? Permita-me discordar — é puro constructo social, isso sim, e bem humano, aliás, derivado de nossa sociedade machista/patriarcal atual que postula que o homem não pode ter boa aparência e que a mulher, como tem a “função” de “troféu” do homem, deve ser visualmente atraente. (E mulheres só são lisinhas porque se depilam, vale lembrar.)
Até o horror da Revolução Francesa (que só serviu pra piorar as roupas e matarem o Lavoisier, logo, que saldo de porcaria…), qualquer estudante de indumentária sabe que a vestimenta do homem era tão ou mais elaborada que a da mulher. Na natureza, já que queremos deixar de lado esse determinismo social patriarcal e etcnocêntrico, são, por via de regras, os exemplares masculinos os mais vistosos/atraentes. Você pode ver isso em praticamente qualquer ave. Ou na juba do Leão. Ou no fato de, nos filmes da Lassie, sempre ser usado um collie com testículos, já que o macho cores mais vivas. Mesmo na espécie humana nós temos, nos homens, a barba, cuja função, especula-se, seja análoga à da juba do leão (proteção contra o frio é menos provável, ou as mulheres também teriam). É coisa social o fato de a barba não mais gozar de prestígio em termos de atratividade.
Quer fazer a raça do cinco contra um? Então assuma, e não tente explicar as coisas na base (furada) de “verifica-se isso na disposição ‘natural’ do macho e da fêmea humanos”. E nem tente, como já vi por aí, o uso de exemplo pessoal — “eu me vejo no espelho e sei que o macho humano é feio é tosco”: não é só porque você se estragou e embarangou todo que isso é uma regra.
Como resolver? Se for usar o dimorfismo forçado, faça-o por uma razão mais interessante do que armar a barraca do leitor — como fez o Miéville, que usou esses elementos para adicionar à estranheza geral do mundo e frisar que “esse é um mundo fantástico mesmo“. Se você precisa de seios, use mamíferos como base (é o óbvio, mas vale frisar). Se você precisa que a fêmea de uma raça seja atraente para humanos, use uma base primata — já houve uma época em que havia outros hominídeos na Terra além do Homo sapiens, logo, podem haver variações mais ou menos humanas. Se o humano possui semelhanças com o chimpanzé (ele não evoluiu do chimpanzé, mas possivelmente de um ancestral comum, tá?), observe outros símios e tente imaginar como eles seriam se evoluíssem até um padrão próximo do humano.
Mãozinhas com cinco dedos, um deles polegar opositor, podem também ser vistas nos lêmures, cuja estrutura corporal também se presta para fins “humanoidísticos”. Se você quer, sei lá, uma raça de gente-lobo, evite fazer humanos com orelhinhas, ou fazer lobas bípedes com seios humanos (coisa furry) — encha o ventre dela com várias glândulas mamárias, como uma loba de fato as teria! Diminui o “punhetencial” da raça? Com certeza. E fica bem mais interessante e possível de se levar a sério.
Pra finalizar, uma “precaução de defesa”. “Você é boiola?” não cola. Essa coisa de “defesa da sexualidade machista” é o fim, coisa de gente insegura. Portanto, longe de ser argumento, essa coisa de “eu prefiro olhar pra fêmeas atraentes, do que machos ou fêmeas não-atraentes” é conversa pra boi dormir; uma obra de fantasia não é uma Playboy. “Mas sexo vende!” é uma verdade, mas tem outras coisas que vendem além de sexo. Uma boa história, um universo bem construído ou espécies não humanas coerentes chamam a atenção, e de forma mais positiva. Eu falei várias vezes do Tormenta (por ser um dos cenários que, por eu gostar, conheço em mais detalhe), e devo reforçar — ele tem essas características positivas (é só ler os romances, ou o Reinado, ou o Área de Tormenta), e, ao meu ver, não precisa apelar com festivais de seios. Mas o faz (ou fez), e é uma pena, pois só dá mais munição pra quem não gosta falar mal, e diverge a atenção que poderia ser focada nos elementos mais consistentes.