Vale uma rápida re-exposição: designo como “picareta” o politeísmo de fachada, que conta com uma porção de divindades que, em vez de expressarem a variedade politeísta (como vemos no panteão greco-romano, por exemplo), parecem apenas decorativas, subscrevendo a um maniqueísmo típico do monoteísmo. (Vale lembrar que, apesar da terminologia “picareta”, não se trata de nenhum tipo de acusação de má fé por parte dos autores; trata-se apenas do paradigma gygaxiano que, longe de ser “soberano e único”, é apenas mais uma opção.)
Aasimar e tieflings — eles têm ancestalidades divinas, os tais “tocados pelos planos”. Tormenta também os tem, sob o nome de aggelus e sulfure, que são ditos como tendo, em algum lugar de suas árvores genealógicas, ancestrais provindos dos Planos da divindades existentes no cenário. São 20 divindades, todas sob os temas e motivações mais diversos. Mas é só olhar para os aggelus e sulfure para se decepcionar um pouco — novamente, vemos apenas os conceitos de bem e mal, de “anjo” e “diabo” — que sabemos muito bem de qual mitologia provêm.
Proponho aqui expor dois exemplos de tocados pelos planos mais relacionados com o tema das divindades em si, e menos com bem/mal. Outra diretriz é fazê-los sem Ajuste de Nível, ao contrário de como costumam ser os aasimar/tiefling.
Ao todo são 20 divindades, o que faria o trabalho meio contra-producente — seriam 20 raças diferentes. De certo é por isso que se subscreve tão prontamente à polarização anjo-demônio: economia. Podemos, contudo, facilitar um pouco — criar uma “base” de tocado pelos planos (ou filho dos deuses, umas das nomenclaturas sugeridas no Tormenta e que será a utilizada a partir de agora), o que deixaria apenas em aberto os traços específicos de cada variação. Algo que notarão nos exemplos é a manutenção da nomenclatura aggelus ou sulfure — isso se dá por razões de compatibilidade com o material existente, que conta com talentos específicos para um ou outra variedade. O ajuste de nível: removi porque, sinceramente, não gosto. Limita o uso em grupos iniciantes, e dá a impressão de que qualquer conceito fora do comum requer um nível aumentado de poder — da qual discordo, principalmente nesse caso, em que a herança divina é tênue, logo, não seriam mais exóticos (e poderosos) que um anão ou elfo. Vejamos, finalmente, os traços raciais dos Filhos dos Deuses e duas linhagens específicas — os Hanyo (relacionados a Lin-Wu, o deus-dragão de Tamu-ra) e os Colubra (relacionados ao deus-serpente da traição Sszzaas).
Filhos dos Deuses
Por uma miríade de motivos, extraplanares por vezes deixam suas moradas divinas para caminhar no plano Material. Não raro, as relações que travam com os seus habitantes podem levar a romances — ou simplesmente a relações carnais –, e tais encontros têm como resultado filhos mestiços — que, por sua vez, também podem produzir descendentes. Como qualquer característica hereditária, o “sangue divino” é passado adiante, através das gerações. Muitas vezes, tal herança permanece latente, sem manifestar-se jamais, e seu possuidor sequer suspeita da existência de um ancestral divino em sua genealogia. Em outros casos, contudo, o fenótipo divino vem à tona: tais indivíduos, abençoados ou amaldiçoados com traços extraplanares, são conhecidos como filhos dos deuses — ou, com menos freqüência, tocados pelos planos.
Personalidade: os filhos dos deuses são qualquer coisa exceto ordinários — sua natureza incomum, perceptível desde o nascimento, os faz diferentes não só dos membros da família em que nasceram, mas também dos integrantes da comunidade e até da espécie de seus progenitores diretos. Enquanto traços inerentes podem moldar o temperamento, gerando indivíduos mais agressivos, introspectivos, tímidos ou de qualquer outra qualidade, a cultura natal é o fator determinante na formação de suas personalidades. Um descendente de um extraplanar de Magika, o Reino de Wynna, por exemplo, será tratado com respeito e admiração se nascido em Wynnla. Por certo crescerá como um sujeito confiante, que havendo tido acesso aos privilégios que aquela sociedade tem a oferecer e, portanto, a ela integrado, estará inclinado a desejar o bem daqueles que o cercam. Já um sulfure que possa traçar sua ancestralidade até o Reino de Deathok, governado por Ragnar, se não for imediatamente morto se nascido em uma comunidade élfica, será abandonado e desprezado; viverá uma vida difícil, terá uma visão de mundo distorcida pelo rancor e pelo ódio. Não crescerá orgulhoso: será arrogante e prepotente, desejoso de usar as capacidades para prejudicar os “inferiores” que lhe causaram mal e o condenaram à marginalidade.
Descrição Física: a herança extraplanar, embora pronunciada, é vestigial — concede características físicas inusuais, é verdade, mas, essencialmente, a morfologia de um filho dos deuses será muito semelhante à de seus pais mundanos. Um aggelus filho de humanos terá o porte físico quase idêntico ao de um humano, sendo atraente ou não-atraente aos membros daquela raça como se fosse um deles. As diferenças estão nos detalhes. Olhos e cabelos de cores exóticas são os mais recorrentes. Conforme a ascendência particular, podem haver diferenças mais pronunciadas, como chifres, presas, asas ou garras vestigiais, bem como modificações metabólicas, fisiológicas ou de equilíbrio de energia (negativa, positiva ou mágica) no organismo. Assim como os músculos tornam-se mais fortes e volumosos quando exercitados, o mesmo vale para tais características físicas, que por vezes, podem apenas estar latentes, de modo que aqueles não familiarizados com a fisiologia de tais seres podem pensar que certas alterações surgem “do nada”. Como Arton é um mundo de rica diversidade racial, tais traços — salvo exceções — não fazem dos filhos dos deuses aberrações: acostumado com raças não-humanas, o artoniano médio os achará apenas marcantes.
Relações: o peso da criação na formação da personalidade define como um filho dos deuses há de se relacionar com aqueles à sua volta. Aqueles que forem bem tratados e favorecidos terão fé nas qualidades positivas dos indivíduos e no bom funcionamento das estruturas sociais, desenvolvendo características como gentileza, honestidade e civilidade. O oposto também é verdadeiro — a desilusão com a sociedade e seus membros fomentará uma postura de cinismo, desconfiança, brutalidade e subversão.
Tendência: novamente, o ambiente em que o filho dos deuses cresce pesa fortemente em suas inclinações morais e éticas. O temperamento, contudo, pode tender para o determinismo da herança extraplanar, a despeito de forças externas. Um ordinal — aggelus com herança de Khalmyr — provavelmente terá uma estrutura mental com afinidade para a disciplina, a despeito de ser aceito ou desprezado em sua sociedade: há grandes chances de que seja, respectivamente, Leal e Bom ou Leal e Mau, por exemplo.
Terras dos Filhos dos Deuses: apesar da herança extraplanar ser parte decisiva na essência de um filho dos deuses, eles nascem nas comunidades de seus progenitores. Se aceitos, integram-se e adotam os costumes do local onde foram criados. Se execrados, podem adotar o nomadismo, sendo eternos párias ou, em situações otimistas, fixam-se em comunidades em que têm melhores chances de aceitação (ou, ao menos, de não-hostilidade).
Religião: normalmente, filhos dos deuses interessam-se por descobrir mais sobre sua ancestralidade, o que geralmente acaba levando à religião da divindade de seu Reino de herança. Ocorre também que adotem a religião de sua criação, se integrados à comunidade, ou até mesmo a não-religião, se forem párias (“Não preciso de deuses que permitam crueldades como aquelas a que fui submetido!”).
Nomes: a convenção social costuma ter mais peso sobre filhos dos deuses aceitos, uma vez que costumam abraçar a cultura que lhes foi tão gentil. O mais comum, contudo, é que adotem nomes (ou pelo menos títulos) relativos a seu Reino de herança (ou que pensem ser seu reino de herança), geralmente em idioma Celestial, Infernal ou Abissal.
Aventuras: é muito comum que os filhos dos deuses sigam a carreira de aventureiro. Aqueles que sentem-se ligados à sua terra natal fazem-no para tornar o mundo um lugar melhor, movidos por um forte senso de dever, como forma de retribuição. Seguem carreiras respeitáveis e tornam-se heróis. Já os párias fazem-no mais por circunstância do que por opção — devem ser fortes e astutos para sobreviver –, embora muitos também aventurem-se para retribuir a “gentileza” recebida, ou façam-no simplesmente para ganho pessoal. Estes costumam seguir carreiras mais ligadas ao crime ou a práticas condenáveis, como necromancia ou assassinato.
Traços Raciais dos Filhos dos Deuses
Tipo: Extraplanar (Nativo)
Tamanho Médio: filhos dos deuses nascidos em famílias de humanóides Médios conservam este tamanho, sem receber qualquer bônus ou penalidade relativa.
Tamanho Pequeno: filhos dos deuses nascidos em famílias de humanóides Pequenos conservam este tamanho, sendo submetidos aos bônus e penalidades associados.
Deslocamento: um filho dos deuses de tamanho Médio tem deslocamento básico de 9 metros; um de tamanho Pequeno, deslocamento básico de 6 metros
Traços Raciais Específicos: um filho dos deuses tem traços raciais específicos (incluindo classes favorecidas) determinados pela sua Ancestralidade.
Idiomas Automáticos: Os mesmos da raça dos pais. Idiomas adicionais: os mesmos da raça dos pais, mais Celestial para aggelus e Abissal ou Infernal para sulfure.
Ancestralidades
A ancestralidade refere-se ao Reino Divino do ancestral extraplanar do filho dos deuses. Cada uma das ancestralidades específicas possui traços raciais distintos, sejam eles fixos ou selecionáveis de uma lista. Cada ancestralidade específica lista, entre parênteses, o tipo de filho dos deuses a que pertence — aggelus ou sulfure –, que influencia a aquisição de talentos específicos, seguido do plano divino de origem. Cada uma das sub-raças tem duas classes favorecidas listadas: o jogador deve escolher apenas uma delas durante a criação do personagem, que permanecerá fixa e inalterável. Certos traços raciais específicos possuem a entrada “Aprimoramento”, que é explicada na classe Filho dos Deuses Exemplar.
Agora, conforme prometido, os dois exemplos de ancestralidades, os Hanyo e Colubra (ilustrados aqui).
Colubra (Sulfure, Venomia)
Os colubras, tocados por Venomia, Plano de Sszzas, apresentam semelhanças gritantes com o Corruptor: têm feições tais como língua bipartida, pupilas verticais, voz sibilante e escamas reptilianas em porções do corpo. Como se sua astúcia não os fizessem perigosos o suficiente, alguns colubras ainda contam com armas traiçoeiras mais diretas, ainda que não menos sutis, como presas venenosas retráteis ou um olhar hipnótico, como o possuído por algumas variedades de serpente. Geralmente abandonados pelos pais, não tardam a ser assimilados por “famílias” menos ortodoxas: cultos a Sszzas procuram avidamente por estes tocados pelos planos, que vêm como enviados sagrados do Corruptor para auxiliá-los na tarefa de reeguer sua igreja; guildas de criminosos também adotam tais crianças ofídicas, cujas habilidades são muito valiosas na formação de ladinos e assassinos implacáveis.
Traços Raciais Específicos
-2 Constituição, +2 Inteligência. Colubras são pouco vigorosos, mas bastante astutos.
Escolha dois dos traços a seguir:
Presas Inoculadoras: O colubra possui presas inoculadoras de veneno, que pode utilizar quando realiza ataques desarmados. As presas causam um dano por perfuração de 1d4 + metade do modificador de Força + veneno (Fortitude CD 10 + 1/2 nível de personagem do colubra + modificador de Constituição do colubra, Dano: 1 Constituição, Dano Secundário: 1 Constituição).
Aprimoramento: O dano do veneno (inicial e secundário) aumenta para 1d4.
Língua Bífida: O colubra possui uma língua bifurcada, que concede benefícios idênticos à característica faro (pode perceber a presença de inimigos a até 9m — ou 18m a favor do vento ou 4,5m contra o vento–, e recebe um bônus racial de +4 em testes de Sobrevivência para rastrear usando o olfato).
Aprimoramento: Cada vez que esta característica é aprimorada, o bônus aumenta em +2.
Escamas: O colubra possui escamas resistentes em partes estratégicas do corpo, que lhe concebem um bônus de +2 de armadura natural.
Aprimoramento: Cada vez que esta característica é aprimorada, o bônus de armadura natural aumenta em +1.
Olhar Hipnótico: Funciona como a habilidade de música de bardo fascinar, à exceção de que o colubra usa a perícia Blefar no lugar de Atuação.
Aprimoramento: O colubra recebe um bônus racial de +3 (cumulativo com Foco em Perícia) em testes de Blefar (sejam eles usados para fascinar ou não).
Classe Favorecida: Ladino ou Mago. Habilidades sorrateiras do ofício da ladinagem e o poder arcano, geralmente nos caminhos da ilusão ou de encantamento, são valiosos para os colubras.
Hanyo (Aggelus, Sora)
Oriundos de famílias dos remanescentes de Tamu-ra, estes tocados pelos planos, outrora comuns — havia ao menos um deles em cada clã e família honrada, antes da destruição da ilha pela Tormenta — agora são raros. Também conhecidos pelos tamuranianos como meio-youkai, seu nascimento é visto como sinal de bom presságio em suas famílias. A aparência destes aggelus é majestosa: seus olhos são luminosos, com cor de topázio, rubi ou esmeralda, os cabelos são negros ou prateados, e a pele é de cor de pérola. São, contudo, seus traços dracônicos que denunciam sua relação com os serpenteantes habitantes de Sora: possuem escamas como as de uma carpa em algumas partes do corpo (ombros, costas, peito, braços e pernas) e chifres vestigiais que lembram os de cervos — alguns ainda apresentam uma crina, da mesma cor dos cabelos, que desce, pela coluna, da nuca até cóccix. Uma característica fisiológica marcante é a forte fluidez da energia chi em seus corpos — ao ponto que alguns hanyo são capazes de expelir, como dragões, rajadas desta energia pela boca. Estes filhos dos deuses sempre possuem traços tamuranianos, mesmo se nascidos em famílias de não-descendentes.
Traços Raciais Específicos
Escolha dois dentre os seguintes:
Chi Corporal: A energia chi permeia o corpo do hanyo; seus ataques desarmados são considerados armas mágicas para o propósito de sobrepujar a Redução de Dano de criaturas.
Aprimoramento: O benefício também é aplicado a armas brancas empunhadas pelo hanyo, desde que ele as saiba usar por meio de características de classe ou talentos — são necessários treinamento e disciplina para canalizar o chi.
Especial: Um hanyo que adquira a característica Ataque Chi como monge ou Espadas Ancestrais como samurai recebe um bônus de +1 em suas jogadas de ataque com seus ataques desarmados ou com as espadas de seu daisho, respectivamente. Este bônus é cumulativo com quaisquer outros, como o de Foco em Arma.
Aspecto do Dragão: Um hanyo possui traços dos dragões orientais. O personagem possui escamas em alguns pontos de seu corpo, que concedem um bônus de +2 de armadura natural.
Aprimoramento: Na primeira vez em que esta característica é aprimorada, o bônus de armadura natural aumenta em +1. No segunda vez, o hanyo passa a ser capaz de expelir uma rajada de chi pela boca. A rajada é um ataque de toque à distância que requer uma ação de rodada completa para executar. Se bem sucedido, o ataque causa 1d6 + modificador de Constituição pontos de dano por energia (força).
Mente Disciplinada: O hanyo recebe um bônus de +2 em testes de Concentração e testes de resistência contra efeitos de Ação Mental.
Classe Favorecida: Monge ou Samurai. Os hanyo têm afinidade com estes caminhos, que requerem disciplina e canalização da energia espiritual.
Finalmente, a classe Filho dos Deuses Exemplar:
Filho dos Deuses Exemplar
Os filhos dos deuses exemplares são aqueles que abraçaram sua herança extraplanar e, através de treino e dedicação, refinaram suas habilidades inerentes a níveis ótimos — representando um espécime perfeito da raça. Esta classe só pode ser adquirida por filhos dos deuses, e sempre será uma classe favorecida para eles.
Dado de Vida: d8
Perícias de Classe: as perícias de classe do filho dos deuses exemplar (e a habilidade-chave para cada perícia) são: Conhecimento (os planos) (Int), Conhecimento (Religião) (Int), Decifrar Escrita (Int), Falar Idioma (n/a), Intimidar (Car), Observar (Sab), Obter Informação (Car), Ouvir (Sab), Procurar (Int), Sobrevivência (Sab). Adicione à lista Diplomacia (Car) (Aggelus) ou Blefar (Car) (Sulfure).
Pontos de perícia a cada nível: 4 + modificador de Inteligência.
Nível BBA Fort Ref Vont Especial
1 +0 +2 +2 +2 Aprimoramento
2 +1 +3 +3 +3 Latência
3 +2 +3 +3 +3 Aprimoramento
Características da Classe
Usar Armas e Armaduras: um filho dos deuses exemplar sabe usar todas as armas simples e armaduras leves.
Aprimoramento: cada vez que o filho dos deuses exemplar adquire esta habilidade, ele aprimora um dos traços raciais que possua. O funcionamento de cada aprimoramento está relacionado após a descrição de cada característica passível ser aprimorada. Alternativamente, um Talento [Aggelus/Sulfure] pode ser selecionado no lugar do aprimoramento.
Latência: o filho dos deuses manifesta uma característica que, embora possuísse, encontrava-se latente, oculta. O personagem seleciona um novo traço racial específico dentre os disponíveis à sua ascendência. Caso a ascendência não possua traços adicionais ou o jogador não os deseje, um Aprimoramento ou um Talento [Aggelus/Sulfure] pode ser selecionado no lugar.