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Magia, psiquismo e verossimilhança.


Um dos pontos mais pedregosos em se tratando de coerência em cenários é a magia. Magia, afinal (ao menos sob o ponto de vista do cético), inexiste na realidade, logo, é impossível partir de uma base real para compor seu funcionamento no mundo de jogo. Não falo de regras, mas de como a dita cuja funciona no universo ficcional, sejam tais mecanismos conhecidos ou não por seus habitantes. Logo, o simples “é magia” é perfeitamente aplicável — em romances, é plot device, um recurso que fará a trama avançar, sem necessidade de explicações pormenorizadas; nos RPGs, faz as vezes de artilharia e outras capacidades que o autor julga que serão legais para os personagens ou antagonistas.
Eu escrevo, contudo, para aqueles para quem a magia é mais que poder de fogo, deus ex machina ou recurso para decorar os céus do cenário com castelos voadores. Mesmo que certos detalhes jamais apareçam em jogo, são importantes na criação, de modo a definir, de forma coesa, como o elemento exótico há de se comportar dentro do universo ficcional. O colega Leonel já deu uma pincelada na magia aplicada ao urbanismo, bem como possíveis efeitos sociais de uma magia em especial – aqui e aqui. Neste artigo eu proponho discutir um pouco acerca da magia em si.

Um pouco de bibliografia. Authentic Thaumaturgy é um livro da Steve Jackson Games, escrito por Isaac Bonewits — ocultista profissional e a única pessoa já graduada em Magia pela Universidade da Califórnia (!!!) — cuja intenção é fornecer informação para compor sistemas de magia “realistas”, com bases nas teorias e práticas que ocultistas e clérigos do mundo real usam há milhares de anos. Eu sei, isso tudo soa muito estranho, mas a taxa de câmbio do dólar estava favorável na época, e então dei uma chance ao azar. Tive sorte. Além de familiarizado com teorias da magia – não cabe discutir aqui se magia existe na realidade ou não; o fato é que existem tradições místicas e textos reais sobre o assunto –, Bonewits também teve contato com diversos sistemas de magia em RPGs, logo, é orientado para esse fim.
Se tiver a chance de adquiri-lo, eu recomendo. Além de propor um sistema de regras de magia adaptável para praticamente qualquer sistema (bacana, mas com vício de RPG dos anos 80, com tabelas e mais tabelas aleatórias – as fórmulas pra feitiços são legais, porém), ele discute, em minúcias, a magia no mundo de jogo. Tradições mágicas, sua origem no mundo, entre outras coisas. O segmento, contudo, que mais me agradou foi aquele no qual traçou um paralelo entre magia e psiquismo.
De acordo com o Bonewits, magia e psiquismo são equivalentes, intercambiáveis e, muito francamente, a mesmíssima coisa. Muita gente faz caretas quando se fala em psiquismo ou psiônicos, mas é pura questão de nomenclatura. O termo “psiônico” ficou associado com ficção científica (campo ao qual o pessoal da fantasia costuma ter horror atroz) graças ao John Campbell, famoso editor da revista Analog SF Magazine, que cunhou o termo. Ainda assim, não há nada de realmente científico em psionicismo, nada mesmo — tanto que sua inclusão em uma história perfeitamente hard science fiction (termo que se usa para designar ficção científica que não desrespeita as regras da ciência como conhecemos — nada de viagens acima da velocidade da luz sem viagem no tempo, por exemplo) é o bastante para “diminuí-la” para medium ou até mesmo soft science fiction.
Geralmente, afirma Bonewits, os sistemas de magia focam apenas em aspectos externos da mesma, como os gestos, a enunciação de sílabas incoerentes e as quinquilharias, como pernas de rã, gemas e cocô de morcego; o aspecto interno acaba sendo negligenciado. É um contra-senso — se assim fosse, todos os jogos por aí que têm magos estão equivocados. Atrelam a magia a atributos/habilidades mentais, frisam que a carreira de magista requer iniciação, muito esforço e talento. Se qualquer pessoa que faça as coreografias, balbucie o latim capenga e reúna os brinquedinhos certos pode fazer magia, todo o papo de iniciação e talento vai pelo ralo. Quem dá as cartas mesmo é o aspecto interno, o psiquismo, que vem do grego psyché, que significa alma, e que também usamos para designar mente (como em psicologia ou psiquiatria).
O que é a magia se não “fazer coisas com a mente”? Ou ela usa os atributos mentais sem razão alguma? Mesmo que inconclusivas (e, na minha opinião, recheadas de farsas), as pesquisas parapsicológicas russas põem as habilidades psíquicas no mapa do nosso imaginário. Creio ser elegante por ser o desenvolvimento de uma habilidade natural (suportamente) pré-existente nos indivíduos. Todos têm o potencial para lutar com uma espada – mas só aqueles com treino conseguem fazê-lo (satisfatoriamente); a hipótese do psiquismo parte do mesmo princípio. Não surpreendentemente, é a que uso no Romância – o psiquismo seria uma capacidade ainda rudimentar do córtex pré-frontal; é tosca, e só poderá ser usava espontaneamente, como vemos na maioria dos psiônicos, dentro de alguns milhões de anos (se a espécie humana sobreviver até lá). Mas encontrou-se uma forma de trapacear – com os estímulos certos (as danças, mantras, odor de incensos específicos…), é possível estabelecer um padrão neural que possibilita usos limitados dessa capacidade latente. É magia? É psiquismo? Ambos e nenhum; a fronteira é nublada.
Pois bem, se magia = psiquismo, então ele pode ser usado como uma boa base, um “esqueleto” para sustentar a “carne” da magia. O druida difere do hermético que, por sua vez, difere do invocador de magia divina apenas pelos acessórios — todos fazem a mesma coisa, mas aplicam diferentes métodos (e podem muito bem ter diferentes teorias de como a coisa funciona). Voltando para o Bonewits, ele categoriza as habilidades psíquicas em quatro grandes grupos: PES ou Percepção Extra-Sensorial, Hipercognição, Psicocinese e Anti-Psi.
Por que essas escolhas? São convenientes. Como, alegadamente, tais habilidades “existem na realidade”, já se estabeleceram algumas racionalizações que se propõem a explicar fisicamente tais fenômenos. Por que isso é bom? Pela verossimilhança. São habilidades mágicas que trabalham em conjunto com as leis da Física, e não ignorando ou quebrando-as. A vantagem disso é poder usar a física como conhecemos em conjunto com o elemento exótico da magia. Sem necessidade de troubleshooting nas diversas ocasiões em que, de outra forma, a magia entraria em conflito com os elementos naturais do mundo – o que pode complicar o trabalho de criação e criar estranhezas indesejáveis, que vão requerer outros conjuntos de regras-e-exceções para manter o monstrinho sob controle.
Percepção Extra-Sensorial lida com a recepção de dados por outro meio que não os sentidos (ainda que a percepção possa parecer sensorial). Se ocupa da telepatia (receber e enviar informações de/para outra mente), bem como a sub-categoria de empatia (em que os dados consistem de impressões emocionais) e com “encantamentos” (os dados enviados consistem de uma sugestão hipnótica). Estão também inclusos nessa categoria os “clari-sentidos” (clarividência, clariaudição…), que são bem semelhantes — recepção de informação que não se poderia perceber mundanamente (geralmente por se tratar se algo distante); a parte da “visão” é mera interface, por assim dizer (da mesma forma que, agora mesmo, você está lidando com 1s e 0s, mas tem uma interface visual que os traduz para você). Projeção astral e similares são “câmeras”, assim como outras magias desse estilo que supõem “receptores”, por assim dizer.
Psicocinese é bem direta: movimento de matéria e/ou energia — através do espaço-tempo normal ou não. Esse envolve os óbvios vôos e levitações. As “criações” de energias, pelo outro lado, envolvem transporte — o fogo, gelo, água ou qualquer outra coisa, se não estiverem presentes, devem ser trazidos de outro lugar e então propelidos.
Na minha opinião, teletransportes são um “não-não” — desmaterializar algo, transformar em informação, transportar, e depois “remontar” o babado pode ser bem aplicável a substâncias simples, mas, em se tratando de um organismo vivo, complexo, a coisa é difícil. E por certo requererá quantidades obscenas de energia — falaremos disso em breve. (Talvez a melhor maneira de tratar teletransportes seja por princípios quânticos, mas não me arrisco e pisar nesse terreno.)
Falando de organismos vivos, magias de cura e similares, embora muitos possam vir a achar estranho, são também psicocinese. Um corpo, afinal, é tão matéria quanto um copo d’água ou uma barra de grafite. A diferença está na complexidade. Uma complexidade que, se formos ser mais ou menos ortodoxos com as leis da Física, podem também transformar uma porção de efeitos em “não-não”.
É na lida com organismos que a Física impõe suas limitações de forma mais óbvia. Um corpo é complexíssimo, com uma quantidade absurda de células, sem falar no funcionamento dos órgãos. Se quiser afetar corpos, é interessante um conhecimento de medicina/anatomia para saber onde e no que mexer. Transformar em pedra é problemático — você calcifica partes do corpo (o que não petrifica, mas paralisa)? Ou quem sabe remove água ao mesmo tempo que a substitui por algum minério? Transformar carbono em silício não é realmente indicado — mexer com núcleos de átomos pode possivelmente criar emissão radioativa. Claro que, como no teleporte, não consegui imaginar uma forma coerente melhor e postulei “muito improvável” – nada impede de você achar uma forma funcional.
E tem a conservação de massa — como raios o personagem se transforma de um cara de 80 quilos para um dragão de 20 toneladas? Pode até rolar, mas será demorado, e vai requerer muita energia — afinal, deve-se montar todo um complexo orgânico e ainda trazer a matéria-prima de outro lugar. Mudanças de forma são mais fáceis de se resolver com “disfarce ilusório” via PES – com ferimentos igualmente ilusórios; boa forma de escapar daquela milícia da cidade de forma impressionante e sem precisar matar ninguém (e correr o risco de ser julgado por assassinato). Aumentar ou diminuir tamanho é também perigoso — mexerá com a densidade e o arranjo interno, provavelmente matando o cidadão. Já o controle de coordenação é mais simples — é só manipular o fluxo entre os neurônios para aumentar ou diminuir atributos físicos (o que também pode ser feito com PES, na forma de sugestão hipnótica).
Os outros usos mais ortodoxos envolvem matéria. Gerar calor e frio são feitos agitando-se moléculas ou reduzindo seu movimento. Eletricidade, magnetismo, luz e radiação, quando existem, podem ser guiados, “dobrados”, na nomenclatura de um desenho animado popular. Psicocinese pode também ser usado para trabalhar nas ligações entre moléculas e átomos (mas não com os núcleos, a menos que se queira fissões nucleares na campanha…), aumentando a tenacidade de um objeto ou, um pouco mais endiabradamente, destruindo as ligações, efetivamente desintegrando o objeto ou pobre infeliz.
Hipercognição é um dos meus preferidos — basicamente, ele otimiza o funcionamento cerebral, transformando-o em um “super-computador”. Esse efeito governa tudo o que for relativo a intuição, certas adivinhações e revelações. Pode ser ilustrado por pensamento muito rápido, em que o cérebro, a partir de um apenas um fragmento, consegue supor o conjunto como um todo (daí magias de previsão do futuro não serem 100% precisas). Os usos mais comuns estão em descobrir a história de algo (completando, por intuição, as peças que faltam no quebra-cabeças), ou ver o passado (pós-cognição) ou o futuro (precognição) — descobrindo padrões de acontecimento e, a seguir, fazendo uma progressão lógica. Se você leu a Fundação do Issac Asimov, pode fazer uma analogia com a Psicohistória, com a diferença de que o personagem faz os cálculos quase instantaneamente e inconscientemente. Claro que existe a limitação de conseguir o fragmento de informação a ser processado. Às vezes é óbvio e disponível, mas, em outras, PES pode vir a ser útil – especialmente na psicometria, aquela coisa de “ler as impressões” de um objeto.
Anti-Psi poderia ser melhor chamado de “Meta-Psi”. Lida diretamente com o uso de habilidades psíquicas. Pode-se enfraquecer, ampliar, refletir, defletir ou até mesmo negar o uso de psiquismo. Esse é óbvio – os talentos metamágicos do sistema d20 cairiam nessa categoria, bem como dissipar magia ou o countersong do bardo.
Qual a vantagem disso? Maleabilidade de efeitos – conhecendo os princípios básicos de cada uma das “famílias” de efeitos, o jogador pode decidir exatamente como fazer. No sistema d20, invisibilidade é considerado uma ilusão, ponto. Se valendo dos talentos psíquicos, posso fazer isso de outras formas – ortodoxamente, usando uma sugestão hipnótica via PES, como a disciplina Ofuscação do Vampiro ou simplesmente “dobrando” a luz (com esse último, pode-se finalmente não ser visto por aqueles mortos-vivos chatos imunes a efeitos mentais! — mas nada é perfeito, já que, se evita que a luz chegue até você, ela também não pode chegar a seus olhos, logo, é bom saber se virar às cegas); o mesmo para ilusões – mentais mesmo ou hologramas (aos quais posso adicionar som usando psicocinese para criar vibrações no ar). É o que vemos no sistema do True20 – embora as magias, para fins de equilíbrio, devam ser adquiridas individualmente, elas são derivadas do sistema do Psichic’s Handbook, logo, posso ficar invisível tanto usando Illusion quanto Light Shaping. Rituais complexos de vários conjuradores podem ficar interessantes – criar uma tempestade requereria um time de psicocinéticos, para manipular correntes de vento, criar os choques de temperatura que precedem a precipitação e conduzir eletricidade para os raios.
Além disso, é também útil para, se você tem essa inclinação, definir o funcionamento da tecnologia baseada em magia que o cenário por ventura possa vir a ter. Afinal, se a magia trabalha com a física, é mais simples e intuitivo projetar máquinas que possam fazer o mesmo.
Eis que ficamos por aqui no que se refere à primeira parte desta cornucópia de prazeres profanos. Na parte seguinte, abordaremos a questão de energia (afinal, as coisas não acontecem espontaneamente), e bem como aspectos mais mágicos, como tradições arcanas e as leis da magia.

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