Apesar de ter escrito desde o primeiro dia, eu deixei para postar este relato quando conseguisse um lugar seguro e alguma forma de acessar a internet. Se eu conseguir postar isso significa que ainda há alguma esperança de usar os sistemas de comunicação e avisar os pobres coitados como eu que não tiveram a sorte de morrer antes de perceber o que está acontecendo.
É estranho como sempre parei para conversar com amigos sobre o que fazer no caso de uma infestação de zumbis e um dia acordar e ver-se no meio de um apocalipse de mortos-vivos. Fazem três semanas e ainda assim minha mente não conseguiu lidar com tudo isso. Então posto aqui os relatos que tenho escrito nestes tempos. Quem sabe você, leitor, consegue tirar algum sentido.
5 de Janeiro – 1º dia
Caralho! Caralho! CARALHO! O mundo acabou! É isso! O mundo acabou enquanto eu dormia!
Acordei hoje com um estrondo enorme e um cheiro grande de queimado. Minha primeira reação foi correr para a janela para saber se o prédio estava em chamas. Mas não tinha nada. Fora as pessoas nas janelas querendo saber o que aconteceu, nada fora do normal.
Então tomei um banho, me vesti e desci para ver o que diabos foi aquilo. Quando cheguei no térreo eu ouvi a gritaria de longe. Aí que notei: a quadra ao lado, do lado oposto ao que consigo ver pela minha janela, era só ruína e fogo.
Pensei em ir mais perto para olhar direito, mas quando vi alguém saindo cambaleando daquele inferno e arrancando na base da dentada a mão de um pobre infeliz que teve a idéia de chegar mais perto antes de mim, eu simplesmente paralisei. Na minha mente, só uma mensagem: “Eita porra!”.
Muita gente começou a correr em direção contrária. Aquele mundo de gente me empurrou de volta à minha portaria, quase quebrando a porta no processo. Só posso agradecer a Deus por não ter sido pisoteado! É, quem diria que bastaria de um holocausto de zumbis para eu me converter direto?
Aproveitei a deixa e subi para casa. Tentei ligar para a minha mãe, que levou minha avó para uma consulta no final da Asa Sul, mas não consegui. Maldita mania de não escutar a bosta do celular! Estou escrevendo isso para me acalmar e raciocinar um plano. A esta altura já deve ter uma porção de zumbis embaixo do meu bloco. Se alguém conseguir ler isso e tiver condições de me salvar, estarei no topo do bloco “D” da 304 norte. As portas do meu apartamento estão com todas as trancas e barricadas pela geladeira e pela estante da sala. Acho que deve ser mais fácil atravessar a parede do que estas portas.
Só tenho que dar um jeito de subir para o topo do prédio pelo parapeito da janela. Eu fiz isso algumas vezes quando tinha uns 11 anos. Mas naquela época eu era bem mais leve e não tinha noção do perigo. Espero conseguir subir para lá com alguns suprimentos.
9 de Janeiro – 4º dia
Nem acredito que ainda estou vivo, cara. Lembra do plano para subir no telhado do prédio? Furada! Consegui subir por um milagre, só para ver uns cinco helicópteros da FAB passando sem dar a mínima para mim e as ruas abaixo pouco a pouco serem tomadas pelos zumbis. Toda aquela carnificina que testemunhei começou a me deixar realmente pertubado, então voltei para o apartamento, para o meu quarto, para a minha cama, para esperar a morte chegar. Achei que teria coragem de pular e cometer suicídio, mas acho que sou cagão demais para isso.
O Bardo, meu cachorro, não fez um só barulho nesse tempo todo. Ficou só se tremendo e urinando pelos cantos. A empregada não apareceu para trabalhar, provavelmente já foi pro saco. Assim como minha mãe e minha avó. Sem notícias do resto da família. Meu celular acusa não ter redes disponíveis. E os malditos passaram o dia todo batendo e gemendo contra a porta do meu apartamento. Cheguei a pensar em mover a barricada e apressar o fim, mas não tive coragem de chegar perto dela.
Eu não lembro de ter dormido aquela noite, mas lembro de acordar no dia seguinte.
Quieto. Tudo quieto. Sem som de bater na porta, sem gemidos. Por um instante achei ter sido só um pesadelo. Mas quando pensei em ir até a cozinha para tomar um copo de leite, me deparei com a barricada. Minha reação foi querer chorar, mas o medo disso alertar a minha presença foi maior e eu apenas paralisei. É. Sou cagão, pode falar.
Demorei para ir até a janela, ver como estavam as coisas, por medo de algum desses bichos me ver. Agachei-me e fui engatinhando até a varanda. Idéia imbecil. Quando vi a rua, com os corpos e o sangue espalhado, fui tomado pelo desespero e berrei. Como se isso de alguma forma pudesse fazer Deus ou quem quer que estivesse controlando esses eventos se compadecer e parar tudo. Quase imediatamente os gemidos e batidas contra a porta voltaram. E continuaram por todo o dia.
Estou aqui em casa recluso e com medo de sair já fazem quatro dias. As portas agüentaram bem, apesar de não ouvir mais os malditos já fazem três dias. Estou sem celular, sem telefone, sem internet e acho que só conseguiria me comunicar com o mundo exterior através de gritos. Mas aí os bastardos do outro lado da porta me ouviriam. Estou salvando este relato e o do primeiro dia num pendrive, para garantir que terei uma cópia disso caso me encontrem.
Edit: me ocorreu um plano bizarro. Vou andar pelos pára-peitos do prédio e tentar desviar dos andares e apartamentos que possam ter zumbis. Se eu conseguir chegar na garagem, posso pegar o Santana 2000 (minha mãe provavelmente pegou o Palio para levar a minha avó). Ele é um carro bem pesado e resistente na lataria, o que pode me ajudar caso precise atropelar alguns malditos no processo. E o motor dele é forte o bastante para o caso de eu precisar atravessar o portão da garagem do prédio ou para eu não perder tanta tração num possível atropelamento em massa.
Pode ser o desespero, mas na minha cabeça este plano parece ser bom. Pelo menos melhor do que me emparedar em casa e esperar um milagre. Vou preparar uma mochila e parto esta noite. Espero que de noite seja mais difícil para os zumbis do térreo me virem, assim não atraio mais deles enquanto desço pela fachada do prédio.
11 de Janeiro – 6º dia
Segui com o meu plano de pegar o Santana. Tive de deixar meu cachorro para trás. Ensaiei matar ele com uma faca, para garantir que ele não sofresse mais com o stress, nem que fosse morto brutalmente com dentadas. Mas não tive coragem. Espero que ao menos ele morra rápido.
Eu consegui chegar até o carro. Só tive de passar por um desses malditos! O prédio estava em sua maior parte abandonado. Provavelmente saíram para lugares com mais alimentos. Ainda tenho arrepios de lembrar o meu encontro com aquela filha da puta! Era uma vizinha minha, passou da janela para o para-peito para me devorar, mas aproveitei enquanto ela estava com a guarda aberta, peguei no pára-peito de cima e chutei ela nos peitos. Ela caiu de cabeça do 3º andar. O crânio espatifou como fruta podre. Engraçado. Eu não ficaria nem um pouco incomodado dela tentar me agarrar quando estava viva.
Humor está virando a minha defesa contra isso tudo. Só tenho de ter cuidado para não ficar louco.
Não sei se é igual aos filmes, em que basta destruir o cérebro. Quase nada poderia continuar se movendo depois da cabeça explodir. Então a queda da vizinha não me comprova nada.
Quando cheguei no carro, entrei e fui pela contra-mão da garagem. Saí pela entrada, que é mais próxima da entrada da quadra. Assim teria pelo menos alguns metros a mais de caminho livre. Mas quando saí percebi que não teria de atropelar ninguém. As ruas estavam limpas. O barulho do motor é que chamou a atenção de muitos deles, mas sempre tarde demais para conseguirem se colocar na minha frente.
Rumei até o final da Asa Norte. Tentei chegar no Extra, mas diferente da minha quadra, a W3 estava cheia deles. A maioria deitado pela rua ou sentado apoiado no meio-fio. Tentei desviar de tantos quanto pude, para evitar de danificar o carro. Mas ainda assim atropelei alguns. O brilho do farol parecia chamar eles. Pensei em desligar, mas aí não conseguiria ver nada. A iluminação pública não funcionava mais.
Engraçado. Quando eu me juntava com os amigos para discutir o que fazer no caso de uma epidemia, sempre pensava em ir para o Extra e dar um jeito de viver no telhado do hypermercado. Não seria difícil usar prateleiras e a estrutura do teto para alcançar produtos, e lá tem bastante comida enlatada e água potável. O difícil seria apenas chegar lá, trafegando por uma Brasília infestada.
Plano imbecil!
Evitando os pontos cheios demais terminei passando no Extra no sentido norte-sul, como quem vem do lago norte. O prédio estava em chamas e o estacionamento estava tomado por uma multidão cambaleante. Por sorte eles não conseguiram passar pelos cacos da cerca do hipermercado a tempo de se colocarem na frente do carro. Virei à direita entre o Extra e o Carrefour e rumei como quem vai para a água mineral.
Parece que entrei em outro mundo. O lugar estava completamente deserto. Podia ser só a iluminação, mas não vi absolutamente nenhum movimento quando saí de perto dos mercados. Pudera, não tem nada por aqui. Só tive de desviar de alguns carros abandonados pelo caminho. Acho que este lugar já ficou cheio em algum momento, mas a turba terminou rumando para outro lugar.
Aí que me bateu a idéia de seguir pela EPIA até o Setor Militar Urbano. E o lugar estava uma zona de guerra após um bombardeio. Cheio de pontos queimando e corpos espalhados pelo chão. Alguns se levantaram quando passei de carro, mas duvido que fossem sobreviventes.
Seguindo pela pista principal do SMU eu vi um cara fardado em cima de um caminhão tombado do exército tentando impedir com um pedaço de metal que três daqueles malditos subissem e o devorassem. Na hora eu me enfureci, acelerei bastante e peguei os três quando passei com tudo paralelo ao caminhão. Freiei pouco depois e gesticulei para o soldado vir. Ele saltou e veio bem rápido, mesmo mancando com uma perna. Quando ele entrou eu arranquei. Provavelmente haviam mais daqueles malditos na área, eu é que não consegui ver. Então não quis arriscar ficar parado no escuro.
Quando o cara entrou no carro, eu o reconheci. Era o Denis. Fizemos pré-vestibular juntos. Naquela época ele era sargento, mas queria mudar de vida. Mas infelizmente ele não conseguiu nem mudar de patente. Culpa das peixadas que tomam a corporação, segundo ele.
Ele me contou que o plano era ir até o Gama, onde havia uma zona livre da infestação. O SMU já havia sido uma zona assim, mas a posição dele é central demais e as ondas desses monstros eram muito grandes até para ele. Então encheram tantos caminhões quanto puderam com os sobreviventes e foram para lá de comboio. O dele era o último, deveria levar só o pessoal que estava agüentando as pontas para que os outros fossem. Bem boi de piranha. Mas algo deu errado e o caminhão quebrou o eixo e tombou. Só sobraram ele e mais sete vivos. Eles tentaram se reagrupar para caçar outro veículo, mas terminaram tombando. O Denis tentou ir à pé evitando os bichos, mas logo se viu cercado e teve de subir no caminhão.
Segundo ele, o ferimento no pé foi uma torção de quando o caminhão tombou. E realmente, apesar de sujo de sangue, o cara não parecia ter nenhum ferimento exposto.
Quando chegamos no Gama, nos deparamos com uma barricada e muitos caminhões do exército. Assim que nos viram moveram os caminhões e nos deram passagem. Paramos rapidinho para o Denis se informar da situação com outro oficial e continuamos para o Setor Central.
Finalmente pude tomar um banho sossegado – apesar de rápido: temos de racionar a água. E agora, com um pouco de eletricidade, pude escrever este relato no notebook (e copiarei para o pendrive, naturalmente). Infelizmente estou sem internet, apesar de terem me dito que poderão conseguir algo amanhã pela hora do almoço. Eu acho ótimo, porque agora são quase cinco da matina e eu estou um caco.
29 de Janeiro – 21º dia
Puta que pariu! Puta que pariu! As coisas no Gama foram tão agitadas que nem tive oportunidade de parar para relatar nada! Passei as duas últimas semanas ajudando a manter a área livre do Gama. Encontrei o Valberto lá, inclusive! Aliás, o Valberto não estava nada mal. Era o encarregado da segurança por lá! O cara disse que tentou me contatar várias vezes antes, mas não conseguiu.
Aliás, desconfio que é por ser amigo do Valberto que me encheram de tarefas nestas últimas duas semanas. Sabe, parece que tem uma galera querendo ver a caveira do cara. Já alertei ele disso, mas ele disse que sabia e que não era para eu me preocupar. Acho que ele trama algo para resolver isso, mas se trama, não dividiu comigo.
Infelizmente o Denis foi infectado. De fato, ele já estava infectado quando eu o encontrei. O tornozelo torcido na realidade foi uma dentada que ele levou na canela e cobriu com o coturno. A entrada do cara infectado foi usada de cavalo de batalha da curriola contra o Valberto. Ele teve de gastar um cartucho para não tirarem o cargo dele. E gastou muitos outros para evitar de me mandarem em missões suicidas nos locais mais críticos.
Inclusive, foi para não piorar ainda mais a situação do Valberto que concordei em ir numa missão de batedor para São Paulo. Não me deram muitos detalhes ainda, mas amanhã vou começar um trajeto até São Paulo passando por algumas áreas militares no Goiás e Minas Gerais para tentar levantar informações de outros locais de resistência.
Dá para ter uma idéia do quão suicida é esta missão porque finalmente me deram um dia de descanso. Por isso consigo escrever agora. Putz, conseguiram me arranjar até uma gambiarrapara eu conectar com a internet! O que é de espantar, porque o cara responsável pela comunicação parece ser o cabeça do grupo que quer ver a caveira do Valberto. Às vezes queria que alguém desse cabo de uma vez daquele professorzinho de música. Acha que é alguém só porque manda nos outros.
Bom. Vou ver se consigo dormir agora. A viagem vai ser bem punk. Se eu conseguir, dou um jeito de relatar mais. Espero conseguir encontrar o Tek e o Tarmann por lá.
Só espero que o servidor do Covil ainda esteja de pé para eu colocar esses relatos.