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Para o inferno com os paladinos bonzinhos!

Embora rolem discussões bacanas no fórum da Jambô, volta e meia eu me deparo com coisas como:
Assim, como os Elfos, os Vikins [sic] criaram uma versão, os Celtas outra, Tolkken [sic] outra e o D&D outra. Cada um Com a sua Versão, q não está errada, pq no D&D Livro do Jogador diz q o Paladino é assim embora mais tarde eles criaram as Variações de Campeões, Paladino é esse ser de estrema [sic] Bondade e senso de justiça.
Difícil não revirar os olhos. O ponto é: 9 entre 10 cenários de fantasia são politeístas. Essa polarização de bem-mal é coisa de religião monoteísta judeo-cristã, gente! No politeísto temos mais que bom e mau — existe bêbado, megera, mortuário, artístico, belicoso, ninfomaníaco, doido varrido, anal-retentivo e por aí vai, sem quaisquer rótulos morais de bondade e maldade — todos os predicados, no politeísmo, têm igual importância.
Nessa conjuntura, o que impede os deuses “não-bons” de terem seus campeões guerreiros? Esses campeões precisam estar ligados à bondade ou à maldade, necessariamente, mesmo não se tratando de monoteísmo? Seria errado usar a palavra “paladino” para designar esses campeões divinos “pouco ortodoxos”? A resposta para essas perguntas, como veremos a seguir, é um sonoro “não”.

Paladino. Vamos largar o Livro do Jogador um segundo (que, aliás, na versão 3.5, de que tratamos aqui, nem mais possui o “sagrado” suporte oficial) e nos concentrar no conceito real. Recorro ao meu querido Dicionário Priberam Online:
paladino
do Fr. ant. paladin < Lat. palatinu
s. m.,

cada um dos principais cavaleiros que acompanhavam Carlos Magno na guerra;
cavaleiro andante;
campeão;

fig.,

defensor dedicado, estrénuo;

ant.,

pequeno palácio;

adj.,

notório, público;
sabido, comum.


A grande maioria dos cenários sem problemas intestinais não possuem um Carlos Magno, então, nos concentremos nos demais significados. Alguém aí viu as palavras “bondade cristã”, “justiça baseada em absolutos morais” ou coisa parecida? Pois é, nem eu. Logo, o subterfúgio com que muitos se sentem quentinhos e confortáveis, o uso da palavra “campeão”, é desnecessário. É campeão de um deus? Então é paladino, não importa o deus.

Cortemos a cena para o clérigo. O clérigo nada mais é que um paladino menos porradeiro, nem mais, nem menos. É um religioso guerreiro/milagreiro, como o paladino, só que em diferentes proporções mecânicas — não um sacerdote oficiante ou coisa parecida, como muitos podem pensar. (Para um sacerdote mais milagreiro e menos porradeiro que o clérigo, um clérigo não-guerreiro, sugiro esta variante mui bacana).
Consertar o paladino para que funcione em cenários politeístas coerentes (i.e. que não sejam impregnados de judeo-cristianismo, com o politeísmo sendo uma mera fachada decorativa) é bem simples — basta obter o “código fonte” da mecânica do paladino. Com base no que a mecânica existente quis “dizer” em termos de regras, basta usar a mesma estrutura para que “diga” outra coisa.

Aura do Bem: Essa é fácil, basta substituir por uma aura de tendência apropriada. Se se quiser retirar um pouco do peso das tendências nas regras, basta postular uma “aura divina” — em situações em que isso for relevante, a aura passa a informação de “conexão divina aqui”. Talvez um teste de Conhecimento (Religião) — ou qualquer outra coisa apropriada — possa indicar mais detalhes — “A aura daquele sacerdote possui fortes impregnações de sentimentos como ira e beligerância — é provável que se trate de um paladino devotado a uma divindade da guerra.”
Detectar o Mal: O que é o mal além de “a opção de meus inimigos”? Na ausência de um mal artificialmente absoluto, a definição mais lógica é: “para uma divindade, o mal é aquilo a que ela se opõe”. Onde se ler “mal”, é mais coerente interpretar “inimigo da fé” (que, para os adeptos da dita fé, são, de fato, gente ruim). Isso deixa as coisas mais subjetivas e potencialmente interessantes — cada divindade tem seus inimigos da fé que, a despeito de tendência, “disparam o positivo” na detecção. Em Tormenta, por exemplo, o inimigo da fé do Megalokk, deus dos monstros, pode ser definido como “todo e qualquer humanóide racional”; para Tanna-toh, deusa do conhecimento, podem ser “humanóides racionais que recusem a civilização e a cultura” (ou bárbaros, se quisermos simplificar); para Tenebra, deusa das trevas, pode ser “canalizadores de energia positiva”, e por aí vai.  O único “malefício” disso  é forçar os demais jogadores a pensar um pouco quando o paladino do grupo afirmar com convicção que “Ei, aquele cara é mau!”
Destruir o Mal: Não toque na mecânica, apenas aplique-a sob as mesmas diretrizes de detecção expostas acima.
Graça Divina: Não há por que mexer nesse. Significa que o paladino é agraciado por uma divindade, seja ela qual for, sendo mais resiliente como resultado.
Cura pelas Mãos: Esse é um pouco mais complexo, mas não intransponível. No cânone D&Dêico, cura é efeito da energia positiva, a das coisas vivas, que é oposta à energia negativa, ligada às coisas mortas. Não precisam ser necessariamente ligadas aos nebulosos e relativos bem ou mal. Energia positiva é atração, criação, crescimento, podemos associá-la a conceitos como conforto, paz, calma, proteção. Já a negativa é de dissociação, destruição, relacionável à ira, agressividade, raiva, guerra. Basta inspecionar o portfólio da divindade: uma divindade ligada às artes e ao conhecimento, por exemplo, mesmo totalmente dissociada de moralidade boa ou má (há quem diga que toda boa arte é amoral — não confundir com imoral, por favor), está ligada a conceitos como criatividade e crescimento — então que sua imposição de mãos seja curativa e associada à energia positiva. Por outro lado, um paladino da guerra, mesmo lutando do lado dos “mocinhos”, está ligado à agressividade, então energia negativa para ele, apenas invertendo o efeito — seu toque causa dano a criaturas vivas em vez de curá-las.
Aura de Coragem: Outro que pode muito bem permanecer inalterado — é fruto de uma convicção que um paladino de qualquer deus pode possuir em virtude de seu zelo religioso fanático.
Saúde Divina: Idem. Ficar doente é prejudicial tanto para mocinhos quanto para bandidos. Justifique como “um corpo mais próximo do estado de divindade, alcançado pela fé” e seja feliz. Se a divindade estiver associada fortemente a alguma força elemental, pode-se muito bem substituir por Resistência 5 ao elemento apropriado.
Expulsar Mortos-Vivos: O que essa regra nos diz, tematicamente? “O paladino desse deus se opõe fortemente a esse tipo de criatura”. Mas não precisa ser necessariamente uma oposição. Primeiro, defina os tipos de criaturas que mais possuem relevância em relação à divindade em questão. Destes, decida (ou deixe o jogador escolher) qual o mais relevante de todos. Defina se a relação com a tal criatura é a de afinidade ou oposição. Pronto, o paladino vai expulsar (oposição) ou fascinar (afinidade) o tipo de criatura. Você já viu isso em alguns domínios clericais, e não há razão para não expandir. A deusa das trevas curte mortos-vivos — o paladino dela fascina mortos-vivos. O deus da ordem não vai nada com a cara de criaturas “bagunçadas” — ele expulsa aberrações –, mas o deus do caos as acha bacanas — ele fascina aberrações. O deus das artes não curte tipos grosseiros e feiosos — expulsa humanóides monstruosos.
Magias: Não queremos mexer no equilíbrio mecânico, logo, parta da lista inicial, fazendo substituições apropriadas. Um bom lugar para começar a fuçar é nas listas de magias dos domínios clericais da divindade do  paladino.
Remover Doenças: Esse é o mais fácil, já que se trata do efeito de uma magia, e essas possuem um parâmetro em comum: seu nível. Remover doenças é uma magia de 3o. nível, logo, escolha uma magia apropriada de 3o. nível, utilizável o mesmo número de vezes por semana que remover doenças seria. Você pode deixar o jogador escolher uma dentre as magias dos domínios da divindade (eu não deixaria, mas não me levem a sério, porque sou partidário dos mestres tiranos) ou definir uma para cada divindade, podendo até desrespeitar alguns parâmetros — confusão, como magia divina, é de 4o. círculo, mas seu círculo mais baixo, de bardo, é 3o.; se não vê problemas nisso, é uma boa habilidade similar à magia para paladinos do deus do caos.
Montaria Especial: Essa pode ficar como está, havendo apenas modificações cosméticas — a montaria especial do paladino de um deus da morte seria um corcel negro — ou usar outro tipo em vez de Animal (o tipo de criatura que é a montaria) — a montaria do paladino do deus da morte é um cavalo Morto-Vivo. A única dificuldade é manter o equilíbrio — nosso cavalo morto-vivo deve ter um número de Dados de Vida que corresponda ao Nível de Desafio de um Animal com o número de Dados de Vida da montaria padrão. Se você não curte a montaria, pode utilizar o vínculo divino do Paladino do Pathfinder — que fornece uma (baita) melhoria divina para a arma, que pode necessitar apenas de mudanças cosméticas — a arma vinculada do paladino do deus da destruição emite uma luz arroxeada, de tons frios, por exemplo.
Tendência e Código de Conduta: Ditados pelo que é permitido e proibido para os clérigos da mesma divindade, ora pois.

Como vêem, não há obstáculo real que impeça qualquer divindade de ter seus paladinos — exceto a rigidez de pensamento ocasionada pelo apego à tradição. Seu cenário é politeísta? Então faça os paladinos se comportarem de acordo. Uma das coisas boas no D&D 3a. edição foi eliminar as restrições de classe e raça, níveis máximos para uma raça em dada classe… Por que não dar um passo a mais e eliminar restrições supérfluas de tendência? Cavaleiros de armadura brilhante não precisam ser branquinhos, “celestiais” e bonzinhos — uma armadura de metal negro, se bem polida, fica igualmente lustrosa.

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