Vocês viram quando o Nume condenou o “idioma comum” a uma sentença de morte — foram boas justificativas e pouco tenho a adicionar sobre o assunto. Me chamou a atenção, contudo, o comentário de Allana:
Tipo, se a cada cidade-estado que você viajar em uma tarde você se deparar com um idioma diferente, o jogo não vai andar e vai ficar maçante a busca eterna por um tradutor poliglota.
Não consigo reunir suficiente ênfase para discordar dessa afirmação. E assim me posiciono por um motivo: se vejo alguma “dificuldade” no jogo, como o caso dessa “babel de idiomas”, não me ocorre tentar contornar o problema, mas, sim, usá-lo como parte da aventura. As partes legais de uma aventura não são exatamente os problemas e adversidades? Assim sendo, longe de ser um problema, a má comunicação entre sociedades fantásticas pode enriquecer as aventuras.
Primeiramente, vamos delimitar algumas coisas. Quão diferentes são os idiomas de que estamos falando? Aqui na América Lat(r)ina, por exemplo, não há um “idioma comum”, pelo menos para nós brasileiros (entre os falantes de espanhol, o nosso idioma é o estranho nessas bandas) — mas são idiomas suficientemente similares (tanto português quanto espanhol derivados do latim) para permitir uma comunicação em um nível suficientemente básico. Sem falar uma palavra de espanhol, você, lusófono, pode se virar em Buenos Aires, ainda que a comunicação seja limitada — dá para arrumar comida e chegar nos lugares, mas é bem mais difícil, se não impossível, uma discussão filosófica.
Nesse caso, o exemplo da Allana dificilmente causa problemas — em uma tarde, se não se utilizar de teleportação, vai cobrir apenas locais muito próximos, em que o idioma será suficientemente similar para permitir ao menos uma comunicação básica, ainda que desprovida de sutilezas. E, se você passa por várias cidades assim em uma tarde, é o máximo de que você precisa — afinal, estará de passagem, e indicações de direção são suficientemente básicas para alguém que apenas “arranha” o idioma consiga compreendê-las.
Uma coisa ótima de se explorar no caso de idiomas similares são os falsos cognatos: palavras que existem em ambos idiomas, mas cujo significado é bastante diferente. Uma mulher embaraçada estará envergonhada — mas, em espanhol, quer dizer que ela está grávida. Com um pouco de criatividade, o mestre pode pôr falsos cognatos no caminho dos jogadores que, se não percebidos como tal, podem vir a ter conseqüências que, de acordo com a cultura em questão, podem ir de vergonhosas a letais.
Mas isso é facilitar, e queremos dificultar as coisas. Que tal isso: o “idioma comum” não é tão eficiente quanto se gostaria. A coisa mais próxima que se tem hoje em dia de um “idioma comum” é o inglês. Munido dele, dá para sobreviver até no Japão — mas nada além de sobreviver. É semelhante ao exemplo dos parágrafos anteriores — você consegue comunicação rudimentar, como perguntar por direções, mas não uma conversa genuína. Em um mundo de fantasia, o “idioma comum” talvez seja aquele da nação dominante — ele pode ser suficientemente difundido através do comércio (assumo um cenário de baixa tecnologia, sem meios de comunicação capazes de auxiliar uma dominação cultural). Nem todos vão falar o “comum” — mercadores, talvez a maioria dos oficiais da lei, provavelmente falarão o comum fluentemente; já um transeunte qualquer, caso conheça o idioma, provavelmente será rudimentar.
Tais casos, o de idiomas similares e o “comum de eficácia limitada” dispensam tradutores, mas trazem dificuldades. Como Obter Informação se você não pode conversar? Pode no máximo obter informações comuns, e ainda assim incompletas; conhecimento mais obscuro, todavia, torna-se próximo da impossibilidade. O mesmo vale para outras perícias de interação. Será possível, mas com severos redutores.
Deixemos pior: idiomas completamente diferentes (francês e alemão, por exemplo) sem possibilidade de um “comum”, mesmo que pouco eficaz. Agora as coisas melhoram. Primeiramente: o grupo não conta com um Especialista? Pois é, esse tipo de classe não serve apenas para fazer ladrões — a vasta seleção de perícias pode ter com uso em expandir o repertório de idiomas. Cenários que usam o bardo como o cafona contador de histórias também podem tê-lo como o diplomata por excelência, versado em interação e em vários idiomas (natural, já que ele viaja e colhe historinhas em todo lugar). No sistema do D&D, volta e meia tem-se idiomas bônus — use-os para saber idiomas dos locais a que o grupo costuma se enveredar, e não apenas para ser fluente em Abissal ou Dracônico meramente para preencher requisitos de Classe de Prestígio…
Falemos do tradutor, finalmente. O tradutor, longe de empecilho, deve ser visto como gancho. Em aventuras em que novos personagens entram em uma campanha em andamento, é uma ótima maneira de introduzir no grupo um novo personagem de habilidades lingüísticas e diplomáticas. Se não for o caso, melhor ainda — pode-se usar a “solução” de ter encontrado um tradutor como forma de ferrar o grupo.
O grupo de heróis e suficientemente poderoso, e, portanto, notório? Um Estado opressor pode descobrir, mediante espionagem, a presença desse pessoal superpoderoso em seu reino — e designar um agente duplo como tradutor. A investigação dos personagens estará, efetivamente, sendo monitorada pelo inimigo, o que deixaria fácil para o mestre emboscar os jogadores ou até mesmo reunir provas para prendê-los e submetê-los a um julgamento ou similar. Ou nosso tradutor não está ligado a ninguém, é simplesmente desonesto, e pode usar sua mediação de modo a beneficiar objetivos próprios — o que pode colocá-los em enrascadas ou, no mínimo, deixar-lhes as bolsas de moedas bem mais leves. O tradutor pode, ainda, não ser especialmente malicioso (eu sempre assumo o pior) — não colocará os jogadores em grandes problemas, mas pode ser usado como plot device, guiando os jogadores em um caminho de interesse seu ou de alguém que a ele esteja associado.
Não saber o idioma de um local intensifica o sentimento de se estar, genuinamente, em uma terra estranha. O tradutor, assim, passa a ser o único elo dos personagens com aquela sociedade alienígena — e algo visto unicamente pelos olhos de um indivíduo é certo de causar distorções, logo, que essas distorções sejam usadas como ferramentas, partes integrantes da história. E se não se quer usá-lo apenas como gerador de conflitos adicionais, o tradutor pode, ainda, suprir a falta de conhecimento dos jogadores em outras áreas que não o idioma. Um ladino em um reino distante e estranho, impossibilitade de Obter Informação em virtude da barreira lingüística, estará de mãos atadas para atuar no submundo, já que, embora conheça as de seu reino natal, não conhecerá as bocas de fumo, por exemplo, desse lugar estranho — mas o tradutor, um nativo, pode conhecer as bocadas locais. E conhece também os costumes, e pode auxiliar negociações, não apenas traduzindo o diálogo simultaneamente, mas alertando os personagens sobre condutas vistas como ofensivas naquela, de modo que possam evitar tais ofensas e assegurar o sucesso da negociação.
Se suas aventuras giram apenas em torno de matar bichos e a única interação com pessoas que existe se baseia em comprar/vender items e falar com o rei sobre missões (esses reis parecem que não têm outra coisa a fazer se não falar com mercenários; por que sempre a porcaria do rei e não um burocrata subalterno? Reis não deveriam ser pouco acessíveis?), é evidente que a adição de um tradutor vai se tornar um enfado. Mas se as aventuras se passam em sociedades complexas, em que a comunicação complexa se faz vital para investigar e meter-se no matagal social, a má comunicação, os tradutores e pesonagens jogadores versados em idiomas e diplomacia passam a ser não só importantes, mas desejáveis em aventura.