Velocidade
“Ataque frustrado por Castigo deixa três mortos”. A manchete não era nada animadora. Interessante como a perspectiva da imprensa sempre está focada na tragédia. Ao invés de contabilizar quantas pessoas foram salvas, narram os prejuízos e as perdas humanas. De qualquer maneira, agora que a máscara repousava novamente sobre o único móvel do quarto alugado, Castigo poderia fazer sua própria contabilização de danos.
O tornozelo estava inflamado e apresentava uma cor azulada característica das luxuações sérias. Dois dedos da mão quebrados e uma costela possivelmetne trincada. Não tinha um espelho a disposição, mas ao passar a língua pelos dentes sentia que dois estavam dependurados frouxamente nas gengivas. Suspirou profundamente, sintonizou o rádio em uma estação qualquer e afundou-se no travesseiro procurando dormir, apesar dos músculos latejarem de dor. O sono nunca vinha fácil. E os sonhos eram atormentados com visões de seu passado recente. Um passado que ele não conseguia enterrar.
Eram três da manhã quando foi acordado pela estática. Havia cochilado por algumas horas e ainda sentia bastante sono. Estendeu a mão até o aparelho e buscou uma nova estação que continuasse no ar madrugada adentro. Parou momentaneamente em alguma AM com plantão de notícias. Demorou até conseguir levar o dial até o ponto correto e discernir as palavras sonolentas do locutor.
” Ataque do inimigo público conhecido como Navalha destrói prédio do Banco Central em São Paulo. No momento, o justiceiro Pietro Daldacci conhecido pela alcunha de Raio Verde está enfrentando o…”
“Navalha” pensou Castigo levando ambas as mãos ao rosto. Não se recordava de nenhum Navalha. Dias atrás o noticiário havia anunciado a forma como o tal Raio Verde havia salvo Marcelo Tirollese, o campeão de Stock Car da morte. Não havia maneira de manter a identidade em segredo com todos os repórteres esportivos gravando as cenas. Se ele tivesse uma televisão até poderia ter assistido a expressão de felicidade do garoto quando notou que tinha um dom. Só não sabia se isso o tornaria apto a enfrentar alguém com um nome desses.
– Soa meio feminino… ou pelo menos dúbio – falou para si mesmo ao levantar-se da cama. Foi até a pequena cozinha onde dentro de uma bacia o trage repousava, ainda parcialmente imundo devido ao mergulho no rio horas antes. Jogou um pouco de água limpa da pia sobre ele e o vestiu ainda molhado. O tornozelo estava perfeito, os ossos da mão calcinados. Quatro horas de sono e estava pronto pra outra. Como odiava aquilo. Voltou-se até a pia e encarou a máscara por alguns instantes. A luz do neon no letreiro do motel piscava lá fora o seu anúncio de “Vagas”, refletindo-se no metal negro da peça. Colocou-a num único impulso e arremesou seu corpo esguio pela janela. Em poucos instantes ganhou a rua. E a partir dela perdeu-se nas sombras da cidade.
Enquanto isso, metade da quadra onde o prédio da sede do BC estava localizada em São Paulo ardia em chamas. Sobre uma Avenida Paulista em ruínas Navalha urrava de ódio. O gigante coberto por uma armadura negra e um elmo metálico agitava furioso uma espada com praticamente o dobro de seu já impressionante tamanho, mas tudo o que podia acertar era o ar em sua volta. Raio Verde era rápido demais para ele.
– Já cortaram o gás encanado, ô grandalhão! Então não vou ter escrúpulos de te fazer… isto!
O golpe de Bio Eletricidade manipulada por Raio Verde atingiu Navalha em cheio, arremessando-o do ponto onde estava para cair tão suave quanto um caminhão de tijolos alguns metros à frente. Colocando-se de pé com certa dificuldade, o vilão ergueu a espada sobre sua cabeça e com um golpe preciso, literalmente cortou a rua ao meio.
– Você não passa de um pequeno incômodo Raio Verde – bradou Navalha – Quando eu o atingir, precisarão de uma equipe inteira do IML apenas para reunir seus pedaços espalhados pelo asfalto!
– Claro! E eu vou ficar paradinho aqui esperando? – respondeu o herói irônico que a esta altura do confronto não passava de uma mancha verde zigue-zagueando e aproximando-se cada vez mais do local onde Navalha estava. Elevando sua carga energética, Raio Verde pulsou dali num estrondo atmosférico, ricocheteando nas paredes de concreto ainda em pé dos prédios ao redor e atingindo o Navalha com cada vez mais força, tanto de impacto quanto de energia.A cada vez de uma direção diferente, a cada vez de um ângulo diferente. No entanto, não poderia manter aquele ritmo para sempre.
– Pois não perde por esperar, inseto! – gargalhou o maníaco agarrando Raio Verde num repente que surpreendeu o herói. O puxão provocado pela velocidade fez com que ambos se deslocassem por vários metros, arrancando o asfalto sob seus pés até pararem enfim – Demorou mais do que eu esperava, mas enfim minha armadura conseguiu calcular a triangulação que você vinha efetuando em minha volta e prever seu próximo movimento… e agora que lhe peguei você está…
– Larga o garoto. A voz rouca provinha do vulto negro que de pé sobre os escombros observava a luta. Tentava não demonstrar, mas sentia-se totalmente sem fôlego àquela altura após atravessar metade de São Paulo saltando sobre telhados e automóveis.
– Se quer ser fatiado, entra na fila – foi a resposta de Navalha voltando sua atenção para Raio Verde. Castigo saltou do ponto onde estava e arremeteu em disparada até a dupla visando salvar a vida do menino. Contudo, para a surpresa tanto de Navalha quanto do segundo herói presente, ao invés de reagir, ele apenas o desafiou.
– Manda seu melhor golpe, Mané Facão! – desafiou Raio Verde. Irritado, Navalha ergueu o leve corpo do menino e o arremessou de encontro a uma caixa de luz que explodiu em milhares de faíscas elétricas, derrubando parte da fiação suspensa. Por um instante o peso de mais uma vida havia recaído sobre a conciência de Castigo. Qual foi a surpresa, sua e de Navalha quando Raio Verde deu sinais de vida. Atordoado, mas bem, ergueu-se lentamente brilhando mais do que nunca.
– Impossível! – urrou Navalha colocando-se em posição defensiva.
– Digamos que eu sou um dínamo vivo, Faquinha. – respondeu Raio Verde – Posso conduzir cargas elétricas pelo corpo. E agora você vai sentir isso na pele.
Uma nova rajada de raios em tons esverdeados brotou das mãos do garoto atingindo Navalha que se defendeu com a arma que carregava, devolvendo parte do golpe para ambos os heróis. Raio não teve dificuldades em esquivar-se, mas não se podia dizer o mesmo de Castigo.
– Hei, cara, tu ainda não fez nada de útil! – comentou por fim o garoto que de uma forma tão veloz que enganava os olhos desapareceu do local onde estava e ressurgiu ao lado de Castigo – Se veio só pra assistir então é melhor cair fora.
– Se eu me for você vai acabar morto – respondeu o mascarado. O veloz adolescente construiu uma careta de descrédito tão nítida que era possível notá-la através da máscara. Ia retrucar as palavras ofensivas quando um elogio, não mais que um murmúrio mas ainda assim um elogio brotou da boca de Castigo – Mas fez um bom trabalho até aqui. Tome mais cuidado na próxima vez.
– Falou o cara que mergulha no Tietê – brincou Raio Verde. No mesmo instante Castigo agarrou alguns dos cabos de energia que rodopiavam em torno e ignorando a dor do choque e a queimadura em suas mãos avançou na direção de Navalha, enterrando os fios nas fendas dos olhos no elmo do inimigo. Navalha urrou por longos e terríveis segundos e então caiu desacordado sobre o que restava da rua.
– Legal! – comemorou Raio Verde surgindo ao lado de Castigo cujos trages ainda fumegavam – Mas o que aconteceu mesmo?
– A armadura tinha alguma proteção contra energia. Vi que ele refletia seus golpes, por isso ataquei diretamente a fonte, atingindo seja lá quem for que está lá dentro.
– Boa! Não sabia que você também era imune a eletricidade!
– Não sou, na verdade – respondeu o vigilante perto de perder os sentidos – Você assume daqui em diante?
– Pode ser. Mas onde é que você vai? Agora é que vem a parte divertida. Imprensa, fotos, a polícia capturando o maníaco, a gente nos jornais.
– Vou… bem, vou pra casa dormir.
O olhar de incredulidade de Raio Verde acompanhou Castigo em seus primeiros saltos até o alto de um viaduto onde ele acompanhou a passagem dos carros por alguns instantes antes de saltar na carroceria de um Ford. A esta altura o sol começava a despontar no horizonte e as primeiras equipes de resgate e combate a incêndios lutavam contra as chamas. Os flashes dos reporteres pipocavam sobre o herói que acenava para as câmeras, mas sua mente divagava em outra direção.
– Putz, e eu nem comecei a arrumar a oficina que o chefe mandou!