Quando se fala de pastiche — não é familiar com o termo? Então leia o texto do BURP sobre o assunto –, a coisa que costuma vir à cabeça são “estranhezas” relativamente recentes, como o Perdido Street Station ou o Kill Bill do Tarantino. O pastiche pode ser encarado como aqueles mosaicos de azulejo do Gaudí — montes de fragmentos, pegos daqui e dali, aparentemente desrelacionados, que, graças ao arranjo, formam uma unidade coesa, ainda que peculiar.
Muitos RPGistas encaram o pastiche com algo próximo do horror — são “aberrações”, “colchas de retalhos”, maculam a “pureza” da “boa” fantasia medieval tradicional. “Ai, o Tormenta tem aqueles pistoleiros, e piratas — e aqueles patrulheiros (ou rangers) com pranchas de surfe!”. O Romância não escapou de tais invectivas — segundo um comentário antigo, é uma “mistureba” na qual “só faltava pôr uns E.T.s com poderes psíquicos no meio” (boa idéia, aliás) e que o que era bom era a “boa e velha fantasia medieval”. Mal sabem eles que o “puro” e “tradicional” Dungeons & Dragons é ele próprio um pastichão!
Dê uma olhada no seu Livro dos Monstros e responda: quantas mitologias diferentes o D&D predou para compor seu bestiário? Resposta: um bocado. Temos trolls nórdicos, medusas gregas, couatls com inspiração gritantemente pré-colombiana. E gólens hebreus. E fadas irlandesas. E olha a Grécia atacando novamente com o pégaso, a ninfa, e o titã. Os nórdicos, aliás, não cansam de emprestar: gigantes, anões, elfos. O que não falta ao D&D é diversidade em suas fontes mitológicas.
Isso é o óbvio, logo, avancemos para outras fontes. O Jack Vance, com sua série Dying Earth emprestou o sistema de magia usado no jogo — aquele horroroso, cheio de slots que aprendemos a substituir por outros –; o sistema original de tendências (Ordem-Caos-Neutralidade) , por sua vez, saiu de outro romance — Three Hearts and Three Lions de Poul Anderson. E, é claro, as raças de que todo mundo gosta, os elfos, anões e elfos da obra do Tolkien — que, por sua vez, os emprestou da mitologia nórdica. Esse artigo da Wikipédia fala sobre o assunto, se você tiver curiosidade.
Como vêem, é uma colcha de retalhos, um mosaico de multicoisas. Há sempre o argumento de que “poder, pode, mas tem que ser bem costurado”, mas, em geral, esse “bem costurado” é baseado apenas em gosto. Se eu gosto, é bem costurado; se eu não gosto, aí (vamos em)bora invocar que a coisa é uma colcha de retalhos. Eberron tem hobbits que montam dinossauros, “ciborgues”, os warforged, aqueles robôs meio-vivos-meio-máquinas, tatuagens transmitidas hereditariamente, “aviões” elementais. Tanta “bizarrice” quanto o Tormenta (ou até mais) e, ainda assim, vemos bem menos gente acusando o primeiro de mosaico, enquanto pro segundo não falta gente raivosinha, com uma nuvenzinha de chuva eternamente sobre a cabeça e pés em uma pocinha de ácido, prontos pra arremessarem pedras no “vitral” de Arton.
Talvez o D&D passe batido por ser um pastiche velho. “Já estava assim” quando boa parte de nós veio ao mundo — eu, por exemplo, sou made in the 80s –, logo, jamais vimos a colcha ser costurada. Vimos a colcha pronta, e pronta há um bom tempo, tempo o bastante para a coisa se tornar costumeira, usual ao ponto de podermos ver a floresta, mas não as árvores que a formam individualmente. Tomamos a unidade acabada como algo dado, sem jamais parar para pensar na variedade das partes componentes.
E esse hábito de “ignorar as árvores” criou um hábito muito desagradável entre os RPGistas, o de ver o D&D — e, em conseqüência, a fantasia medieval e, até certo ponto, a fantasia em geral — como algo monolítico, o universo de todas as possibilidades dentro do gênero. No máximo aceita-se D&D e Tolkien, talvez porque o último seja a referência mais óbvia, e, por ser mais literal, mais “pura”. Quantos cenários você vê por aí que não têm elfos e anões? E em quantos os elfos não usam arco e flecha e os anões não são criaturas das montanhas/subterrâneos? Magia arcana e divina — e só essa última, por alguma razão, é capaz de curar ferimentos — alguém? Quando propus elfos “capoeiristas” pra Tormenta — i.e. como tendo desenvolvido uma arte marcial graças à carência de armas em virtude da escravidão –, fui encarado com descrença, na base de que “os elfos não são assim”. Alguém já viu ou conversou com um elfo pra saber se eles são assim ou assado? Pois é.
Nossa fantasia é prisioneira do estereótipo. A coisa saturou, e se tornou incestuosa. E cruzamentos incestuosos, todos sabem, degeneram as linhagens, fazem-nas perder o viço. Como resolver? Parar de visitar somente nossos primos e primas, dar umas voltas pela cidade e conhecer gente nova. E recorrer ao mesmo processo que os pais do D&D se utilizaram para pari-lo: a pastichagem. Mas, repito, não com nossas primas. Se você só freqüenta a casa dos seus parentes, aquela prima über-gostosa é, efetivamente, a mulher mais linda do mundo — e se você não sair pra ver que no mundo existem muitas outras mulheres igualmente (ou até mais) gostosas, você só vai profanar seu corpo pensando na bendita prima. Você, obviamente, sabe que o mundo tem mulheres bonitas de sobra, e que seria um desperdício concentrar todos seus esforços apenas na sua prima. Ainda assim, em se tratando de RPGs de fantasia, o que mais vemos é gente que não vê coisa alguma além da prima!
Não hesitemos em conhecer gente nova. A ficção científica não mora tão longe da casa da sua prima — mas que mudança de ares ela proporciona! Temos literalmente um mundo de culturas além da européia; temos toda uma História além da Idade Média. Por que não usar? Só porque o D&D é medieval, e, portanto, não seria troo fazer de outra forma? Balela. É como viver dentro de um traje hermético, reciclando a água do próprio mijo quando há um enorme rio de águas límpidas bem ao lado.
A filosofia pode nos levar a sistemas de moral e ética bastante diferentes do nosso — o que é apropriado, já que os jogos de fantasia se passam em outros mundos –, então por que nos limitarmos ao judeo-cristianismo? Para quem já pensou no assunto mas nunca soube por onde começar, eu recomendo esse excelente texto do Valberto (que conta com uma continuação que trata de pôr em prática os conceitos abordados). E já que esses links te puseram no blogue do Valberto, aproveite e dê uma olhada nos posts de “repensando raças” — é ótimo material transicional, pois injeta novos ares nas raças com que você já está acostumado, logo, não estará pisando em “terreno estranho e hostil” abruptamente.
Se você tem o hábito de ler, não pense que só os livros de fantasia servem como inspiração. Qualquer coisa serve. Eu, particularmente, gosto mais dos de ficção científica, mas quem disse que os outros gêneros que você lê não têm adições interessantes para a fantasia? Pesquise também. A internet tem praticamente de tudo, só requer um pouco de google-fu (e nem muito, já que eu não sou particularmente habilidoso nessa arte e me viro bem). Seu cenário tem alquimia? Por que não dar uma pesquisada sobre o assunto? Há muito mais sobre alquimia do que misturar dois líquidos ou transformar chumbo em ouro — quem sabe alguma das minúcias sobre o assunto não te dá uma base pra algo bacana?
Claro que não podemos ser hipócritas — é difícil sair de nossa zona de conforto, aquele nicho tão familiar, conhecido, acolhedor e quentinho. Mas se a coisa for gradual, é mais fácil. Não vou mentir: eu mesmo já fui um “tradicionalista hardcore”. Me recusava a jogar Mage por causa da simples presença dos Filhos do Éter e dos Adeptos da Virtualidade — chegava a achar repugnante o pensamento de “magia” com quinquilharias tecnológicas; magia, para mim, era inexplicável, requeria muito abracadabra sem sentido e chapéus pontudos!
De certa forma, foram as guitarras elétricas do Romância que me salvaram. Sem querer, acabei criando uma explicação semi-científica pra possibilitá-las — por alguma razão, “deixei escapar” a chance de explicar com magia –, e, pra minha surpresa, foi a parte que meu grupo mais achou interessante, e isso me incentivou a buscar outras coisas na mesma linha. E isso foi expandindo. Caíram as monarquias (o sistema de governo de 9 entre 10 nações de fantasia) e entraram governos mais estranhos. A magia dos bardos tinha explicações baseadas na física do som, aí pensei “por que não expandir o modelo, pra que possa explicar toda a magia do cenário?” Com isso, caiu facilmente o modelo gygaxiano de magia arcana & divina. Depois em descobri o China Miéville — e tomei um belo choque com esse artigo dele –, e caíram os elfos, anões & cia. E raças não precisam sair necessariamente de mitologias — dá pra tirá-las de qualquer lugar. Os elfos largaram o usual posto de “mais alta civilização” e, no lugar, pus os Eloi — sim, os humanos do futuro de traços delicados da Máquina do Tempo do H.G. Wells –, o que já serviu para tirar os humanos do posto de “macacos mais evoluídos”. Ontem eu terminei de ler Foundation and Earth do Isaac Asimov — e de lá saiu um elemento que era o tempero que faltava por meus Eloi. (Se você leu esse romance, já deve imaginar o que eu tirei de lá.)
Mesmo eu falando excessivamente do Romância e do China Miéville, não quer dizer que pra ser diferente e “estranho de um jeito legal” a coisa precise se enveredar pelo steampunk e afiliados. Longe disso. Dá pra fazer isso com medieval, e mesmo com elfos, anões e orcs. Mas não deixe o D&D, o Gygax e o Tolkien te limitarem. Quer medieval? Pesquisa a Idade Média de verdade — e, com base nisso, dê o seu tratamento. O mesmo com elfos & cia. — vá atrás dos mitos originais. O Tolkien e o Gygax podem ter feito realizações notáveis, mas eles são apenas macacos evoluídos, como você e eu, nem melhores e nem piores.
Então, quando você tiver alguma idéia que pareça “estranha demais” e aquela vozinha chata na sua cabeça começar a gritar “Isso não serve pra fantasia!”, mande-a, educadamente, ir dar meia hora de rabo e trabalhe a idéia. Muita gente reclama que não há nada de novo sob o sol do RPG brasileiro — então não fique só esperando, e ponha as mãos na massa. Os azulejos você tem, então é só montar o mosaico. E dá certo — foi assim, afinal, que o D&D foi feito.